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Passado 30 dias do início do mandato de Jair Bolsonaro, o professor de Economia Política Internacional, José Luís Fiori, reflete sobre as forças ideológicas em jogo no contexto nacional e internacional, concluindo que o país atualmente não possui projeto de futuro.

Foto de Alessandro Dantas/Fotos Públicas

José Luís Fiori*

Os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.

Foucault, “Uma certa enciclopédia chinesa”, in As Palavras e as Coisas, Martins Fontes, São Paulo. 2002

Bastou um mês para que as pessoas mais avisadas percebessem que Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos não têm preparo nem estatura para governar um país com 220 milhões de habitantes, que está dividido e destruído moralmente, literalmente caindo aos pedaços. Nesse mesmo tempo, ficaram visíveis também as divisões e as lutas internas dentro dessa coalizão que se formou às pressas para barrar o caminho eleitoral de Luiz Inácio da Silva, e muitos analistas já preveem, para breve, inclusive a “defenestração” de alguns membros do governo ou do próprio presidente. De qualquer maneira, aconteça o que acontecer, no curto prazo, existe uma questão mais importante que se mantém de pé e sem resposta no longo prazo: qual é afinal o projeto de país deste governo?

Com ou sem Bolsonaro, o que é que este conglomerado tão heterogêneo de pessoas está se propondo a fazer diante do desafio de uma economia que está estagnada há anos; de uma sociedade que está cada vez mais desigual e violenta; e de um povo que está cada vez mais pobre e sem esperança de futuro para seus filhos e netos, que estão abandonando o país. Dizer que se trata de um governo de extrema-direita, populista e com impulsos fascistas não responde automaticamente a nossa pergunta, porque existem muitos governos que hoje se definem da mesma maneira, em vários lugares do mundo, e que são inteiramente diferentes entre si. Tampouco resolve o problema dizer apenas que se trata de um “governo militar”, apesar de que, de fato, já existam mais de 60 militares ocupando postos de comando e posições técnicas em quase todos os ministérios, autarquias ou empresas estatais do governo, além, obviamente, do próprio presidente e seu vice-presidente. Provavelmente, em maior número do que houve no governo do General Castelo Branco e seus sucessores, durante o regime instalado pelo golpe militar de 1964. O mundo mudou e as circunstâncias nacionais são muito diferentes, mas assim mesmo, esta comparação ainda possa ser a melhor pista para entender e decifrar o futuro deste novo governo brasileiro. Senão vejamos, começando por algumas semelhanças mais expressivas.

Em 1964, como hoje, os Estados Unidos (EUA) apoiaram ativamente a derrubada dos governos constituídos e depois ajudaram a sustentar os novos governos militares que foram instalados. Nos dois casos, a coalizão vitoriosa incluiu os militares, o Poder Judiciário junto com o STF, a Igreja Católica, a imprensa conservadora e os partidos de direita, sustentados pela burguesia financeira, mercantil e agroexportadora, apoiados por setores populares e da classe média mobilizada pela hierarquia católica. Além disso, em 1964, como agora, depois de assumir o governo, os militares convocaram economistas ortodoxos e ultraliberais para comandar a política econômica do governo, como foi o caso, de Otavio G. de Bulhões e Roberto Campos, discípulos diretos de Eugenio Gudin, que já havia sido Ministro da Fazenda do governo do governo de transição, depois do golpe militar que derrubou Vargas, em 1954. Por fim, em 1964 como agora, o governo do General Castelo Branco alinhou-se imediatamente com a política externa dos EUA, apoiando o boicote econômico a Cuba, e participando – em 1965 – da invasão de Santo Domingo, que depôs o presidente eleito Juan Bosch, para colocar no seu lugar Joaquin Balaguer, escalado pelo governo norte-americano. Mas apesar dessas semelhanças, o futuro deste novo governo parece esconder-se nas diferenças mais do que nas suas semelhanças com 1964.

A primeira grande mudança, e a mais visível, sem dúvida, foi o deslocamento da Igreja Católica do centro do poder e sua substituição por várias seitas evangélicas e neopentecostais. Esse novo grupo de poder é o que mais chama atenção dentro do governo recém-instalado. Em geral são fundamentalistas e usam uma linguagem extremamente agressiva mas não propõem nada de concreto para o Brasil que não seja apenas a propagação da sua própria fé. que é transcendental. Suas ideias e seu conservadorismo têm raízes muito antigas e remontam às seitas evangélicas norte-americanas. Mas é muito pouco provável que esse grupo consiga impor suas obsessões morais à imensa parte da sociedade brasileira, que é laica, moderna, liberal e cosmopolita. Desta facção ideológica do governo, a principal ameaça que paira sobre o futuro do país se concentra no campo da educação, que foi entregue a um teólogo estrangeiro reacionário, agressivo e desrespeitoso com o povo brasileiro; e no campo da política externa do país, que foi entregue a um diplomata entusiasta de Donald Trump, com convicções milenaristas e teses delirantes sobre a conjuntura internacional.

O segundo grande grupo ideológico do novo governo é formado por seus economistas ultraliberais, e também aqui existem diferenças com relação ao regime militar de 1964. Do ponto de vista retórico, todos repetem sempre a mesma ladainha da desregulação dos mercados, da contenção dos gastos públicos e da defesa do “Estado mínimo”, com a diferença de que, em 1964, logo depois da estabilização inicial, os ultraliberais foram substituídos pela heterodoxia pragmática e desenvolvimentista do ministro Delfim Neto, que se mantem no governo durante o período do chamado “milagre econômico” brasileiro que foi seguido pelo “salto a frente” proposto pelo governo do General Geisel. Hoje a agenda dos novos ortodoxos se reduz à reforma da Previdência e algumas privatizações, sem nenhuma proposta, expectativa ou horizonte de maior fôlego que mobilize ou interesse ao conjunto da sociedade brasileira. Deve-se sublinhar, além disso, que essa mesma reforma da Previdência, somada às privatizações, já foi experimentada em dezenas de países, nas duas últimas décadas, sem ter nenhum impacto significativo sobre seu ritmo de crescimento.

Por isso talvez muitas pessoas olhem hoje para o segmento militar do novo governo brasileiro com a expectativa de que esteja ali o projeto de futuro do país, sem se dar conta de que é exatamente neste lado do governo que se encontra a maior diferença entre o passado e o presente. A começar pelo fato de que, em 1964, as Forças Armadas assumiram o governo como uma instituição hierárquica e de Estado, e hoje esses 60 ou 70 militares que estão no governo são da reserva, não compartilham as mesmas posições ideológicas e estratégicas, e não pertencem mais a uma mesma hierarquia de comando.

É fato sabido que, no século XX, os militares brasileiros tiveram papel decisivo na elaboração e execução do “desenvolvimentismo conservador” que orientou a estratégia econômica do Estado brasileiro, entre a década de 30 e o final dos anos 70. O que não se diz, em geral, é que desde o início do século XX, os militares brasileiros optaram por uma aliança estratégica com os EUA para contrabalançar a aliança da Argentina com a Inglaterra. Uma aliança que foi reforçada depois da Segunda Guerra Mundial, no contexto da Guerra Fria, envolvendo o apoio dos EUA ao projeto desenvolvimentista e conservador dos militares brasileiros. O que era perfeitamente compreensível, uma vez que norte-americanos foram grandes promotores do desenvolvimentismo nos anos 50 e 60. Neste sentido se pode dizer, inclusive, que o sucesso econômico do Brasil, depois da Segunda Guerra Mundial, foi mais um caso de “desenvolvimento a convite” dos norte-americanos e dos europeus. Tudo isto até o momento em que o projeto de “capitalismo de Estado” e de “potência intermediária” do General Ernesto Geisel foi vetado e interrompido, com ajuda decisiva dos próprios norte-americanos.

Hoje o mundo está em plena reconfiguração geopolítica e econômica, mas os militares brasileiros seguem pensando como no século XX, de forma binária e sem conseguir pensar uma nova estratégia na qual o Brasil não está mais obrigado a considerar como seus adversários, aqueles que são apenas concorrentes e inimigos dos EUA. A nova geração de militares brasileiros não é menos inteligente nem menos bem-formada do que seus antecessores do século XX. O que passou foi que eles perderam a bússola estratégica e econômica do século passado, e estão com dificuldade de retomá-la e refaze-la em sintonia com o século XXI. Talvez porque já não contem com o apoio externo e a sustentação externa que lhes permitisse retomar e refazer o projeto que eles mesmos ajudaram a construir no século XX.

Ou seja, resumindo: neste momento o Brasil é uma nau sem comando e sem rumo  Pior do que isso, o Brasil não possui hoje nenhum tipo de utopia nem de estratégia de futuro.

*Professor permanente de economia política internacional da UFRJ, pesquisador do INEEP e coordenador do GP “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, do CNPQ.  Último livro: “Sobre a Guerra”, Editora Vozes, 2018.