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Publicado no último dia 28.12.10 no Jornal O Globo, o texto escrito pelo coordenador nacional do Observatório, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e pelo coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF, Roberto Kant de Lima, trata dos acontecimentos recentes entre as forças de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro.

A quem interessa administrar conflitos com estratégias de guerra, no Rio de Janeiro?
Roberto Kant de Lima,
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Os acontecimentos recentes entre as forças de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e segmentos vinculados a negócios da chamada criminalidade demandam uma primeira análise crítica, preâmbulo de uma abordagem futura de maior fôlego.

Uma primeira constatação: o enfrentamento de criminosos e policiais, com cobertura da imprensa, não é nenhuma novidade na cidade do Rio, com a curiosa coincidência de acontecer próximo a passagens de governos estaduais. Nestas situações, assistimos à integração das forças policiais e armadas, como parte de uma produção imagética de “combate” ao “tráfico”, com alta exposição de apetrechos próprios de contextos bélicos.

Essa situação, que não parece causar estranheza no Rio, não é comum em outras cidades, embora estas também convivam com mercados de armas e drogas ilícitas. Contudo, no Rio de Janeiro – e essa é nossa segunda constatação – a Polícia conta com o apoio de setores da sociedade civil e da mídia para adotar táticas incisivamente repressivas, inclusive à margem, ou contra a lei. Tais práticas em muito contribuíram para o crescimento deste mercado, bem como para o acúmulo da violência urbana com o crescente armamento do Estado e, consequentemente, dos traficantes.

Nesta escalada, foi forçoso aos traficantes varejistas buscarem ampliar a arrecadação de recursos para garantir a manutenção de seus negócios, sobretudo diante da crescente oferta de “mercadorias políticas”: a “vista grossa”; o “arrego”; o repasse de narcóticos e armas apreendidos ou a proteção a criminosos, patrocinados por agentes policiais e estatais. Tal fenômeno sinaliza para uma terceira constatação: a viabilização desses negócios exige uma extensa e complexa malha que envolve diversos setores ligados ao Estado e às instituições privadas, operando não apenas à margem da legalidade, mas nas entranhas do aparelho estatal, sustentando as ligações desse mercado com o mercado formal.

Então, o que há de diferente nos acontecimentos da última semana? Parece possível inferir que estamos assistindo aos espasmos violentos de um mercado em crise, em virtude da transformação da Cidade do Rio de Janeiro em uma cidade commodity, ingressando na divisão internacional da indústria global do entretenimento. É uma indústria a qual demanda que a cidade seja centralmente gerida como territórios de consumo delimitados, organizados e protegidos de possíveis ameaças de desvalorização dos investimentos imobilizados.

Por outro lado, como mercadoria a cidade deve atender as necessidades de consumo de entretenimento promovido pelos Mega Eventos, como os Jogos Olímpicos e Copa do Mundo. Sua comercialização adequada para o público internacional requer a embalagem da “pacificação”, justificando o uso de meios violentos em lugar do Direito. Não se trata da violência para instaurar o chamado Estado de Direito, mas da consolidação de nosso Estado de Exceção, no qual a gestão da crise social funda-se no uso unicamente da força.

Os interesses dessa cidade commodity para um público seleto de investidores e consumidores, entretanto, parecem estar causando conflito com outros atores, inclusive aqueles que vêm lutando pela cidade como riqueza social acessível a todos. Um processo complexo, que se choca com a imaginação das elites políticas que, historicamente, representam o direito à cidade e à igualdade como restrita a certos segmentos sociais. Diferentes entre si, tais segmentos instituem, conforme princípios de uma hierarquia por “status”, uma desigualdade espacialmente definida na falsa dicotomia do “morro” e do “asfalto”. Assim, os demais segmentos sociais não se concebem partilhando de uma ordem com direitos e deveres iguais, universalistas e republicanos, como também como agentes simetricamente capazes de participar no mercado, de acumular e de multiplicar riquezas, tendo a lei e o judiciário como garantidor de suas transações.

Enquanto os direitos civis e os serviços públicos forem concebidos como “direitos” privilegiados dos semelhantes e “benesses” a serem concedidas aos diferentes, rotulados como desiguais, o protagonismo estatal, sempre encarnado por seus iluminados administradores e funcionários, limitará a eficácia e o alcance das políticas públicas, cujas “populações-alvo”, seguindo uma tradição vetusta do pensamento social brasileiro, continuam a ser vistas como obstáculos incivilizados e desordeiros, a serem tutelados fora do mercado e colocados à margem da cidade commodity, a ser vendida ao mundo.

 

Roberto Kant de Lima é coordenador do do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, da UFF (INCT-InEAC/UFF)

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é coordenador do Observatório das Metrópoles, da UFRJ (INCT-OM/UFRJ)