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A pesquisadora Tarcyla Fidalgo Ribeiro, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), analisa neste artigo as normas aprovadas recentemente sobre o patrimônio da União. Segundo a autora, estas compõem o arcabouço institucional montado para a entrega desses bens. Confira:

Uma nova rodada de neoliberalização da terra: a entrega do patrimônio da União

Nos últimos anos temos nos deparado com um processo cada vez mais acelerado de desmonte do Estado brasileiro em todas as suas instâncias. Uma delas, e que vem ganhando atenção pela dimensão das perdas que lhe são impostas é a do patrimônio imobiliário da União.

Com um complicado histórico fundiário e dimensões continentais, o governo federal reúne um vasto patrimônio imobiliário: terras devolutas, áreas litorâneas, áreas de fronteira, imóveis afetados ou não para funções de sua administração direta e indireta, entre outros, formam um acervo bastante substantivo no cenário nacional.

Estes imóveis são, em tese, geridos pela Secretaria de Patrimônio da União – SPU – presente em diversos estados brasileiros. Entretanto, há muitos anos se assiste ao desmonte progressivo desta estrutura de gestão, especialmente através de um processo contínuo de sucateamento da estrutura das SPUs que, sem infraestrutura e pessoal, perdem sua capacidade de gestão passando apenas a solucionar demandas pontuais, quando provocadas por algum agente externo.

Tal processo de sucateamento, agravado pelo desinteresse e mesmo desídia de outros órgãos, contribuiu para um cenário importante de abandono e subaproveitamento dos imóveis públicos, muitos deles – em especial os situados nas grandes cidades – ocupados e funcionalizados pelo trabalho e militância de movimentos sociais pró-moradia.

Este contexto de abandono e subaproveitamento foi utilizado como justificativa para diversos atos administrativos no sentido de alienação e transferência destes imóveis que, entretanto, deveriam se pautar por processos burocráticos e atingir finalidades específicas, via de regra relacionadas com objetivos de interesse social. No entanto, a burocracia e limitação de motivações fazem destes atos medidas excepcionais, preservando-se, no geral, o patrimônio imobiliário nacional.

A situação geral de preservação do patrimônio imobiliário da União vem sofrendo, entretanto, alterações expressivas nos últimos anos, seja por medidas desburocratizadoras de processos de alienação e transferência, seja pelo aumento das hipóteses de cabimento destes processos.

Neste sentido, a Lei 13.240/15 é um marco no tema, ao dispor sobre a administração, a alienação e a transferência de gestão e uso de imóveis da União para a constituição de fundos. Esta lei, para além de diversas determinações sobre transferências entre entes federativos e formas de alienação a partir do paradigma do interesse social, insere hipótese de alienação patrimonial até então inédita no ordenamento jurídico: a utilização de patrimônio imobiliário público para a integralização de cotas em fundos de investimento, por meio do Programa de Administração Patrimonial Imobiliária da União – PROAP.

Neste cenário, excepcionando apenas os imóveis administrados pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Ministério da Defesa e pelas forças armadas, bem como os imóveis situados em área de fronteira, permite expressamente a utilização de imóveis da União – bem como de suas autarquias e fundações – para a composição de tais fundos de investimento que possuem permissão legal para efetuar negociação de seus títulos em bolsas de valores, bem como a permissão para adquirir ou integralizar cotas, inclusive com imóveis e com direitos reais a eles associados, em outros fundos de investimento.

Além disso, o art. 20, par. 3, permite que a própria União constitua o fundo, arcando com as despesas de constituição, de estruturação, de administração e de gestão dos mesmos, podendo solicitar ressarcimento posterior.

E como fechamento do pacote de medidas atentatórias ao patrimônio imobiliário nacional, o artigo 22 da mesma lei autoriza que os imóveis que componham o patrimônio do Fundo do Regime Geral de Previdência Social sejam transferidos para a União de modo que esta possa lhe dar livre destinação, inclusive para a composição dos fundos acima destacados.

A gravidade desta lei é alta e escancarada. Medidas de flexibilização de hipóteses de alienação e transferência de patrimônio público só deveriam ser admissíveis em casos de comprovado interesse público, o que certamente não se apresenta na hipótese em destaque de composição de fundo de investimento. Trata-se de medida paradigmática da prevalência de interesses financeiros nas definições político-legislativas do país nos últimos anos.

Entretanto, esta Lei foi apenas a precursora de uma série de outras medidas com o objetivo de flexibilizar a preservação do patrimônio público em prol de interesses sob dominância financeira.

No ano de 2017, o novo marco nacional de regularização fundiária, Lei 13.465/17, criou diversos mecanismos de facilitação da transferência de imóveis da União para fins de regularização fundiária, incluindo os casos de regularização fundiária de interesse específico, voltada para moradores de renda mais elevada.

Inclusive, no seu instrumento principal que pretende realizar a transferência de imóveis públicos diretamente para beneficiários para fins de regularização fundiária – a legitimação fundiária (art.23) – a lei torna mais difícil aos mais pobres obterem imóveis públicos para a regularização de sua moradia em relação aos mais ricos, visto que aqueles necessitam preencher requisitos que são dispensados para estes[1].

Mais uma vez assistimos a uma clara afronta ao princípio básico que deveria guiar qualquer medida de alienação de patrimônio pela União: o interesse público, consubstanciado em medidas mediatas ou imediatas de promoção do combate à desigualdade e construção de uma sociedade mais justa conforme objetivo trazido por nossa Constituição Federal.

Por fim, temos a recém-editada Medida Provisória 852, que dispõe sobre a transferência de imóveis do Fundo do Regime Geral de Previdência Social (FRGPS) para a União, sobre a administração, a alienação e a gestão dos imóveis da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA e sobre a gestão dos imóveis da União.

Esta MP, ainda não convertida em Lei, mas já em vigor, poderia ser interpretada como um esforço de colocar em prática os preceitos da Lei 13.240/15, aplicando suas diretrizes gerais aos imóveis específicos do Fundo do Regime Geral de Previdência Social e da extinta Rede Ferroviária Federal S.A.

No que se refere à gestão do patrimônio imobiliário, um dos principais pontos a ser destacado desta MP se refere à extinção do fundo de contingência da RFFSA, que tinha por objetivo a gestão patrimonial de modo a efetuar o pagamento de dívidas e garantias da extinta Rede Ferroviária. Essa extinção abre caminho para a alienação e transferência de um significativo patrimônio imobiliário sem qualquer destinação específica, inclusive para a composição de fundos de investimento, ao mesmo tempo em que obriga a União a assumir um passivo importante com seus próprios recursos.

Ou seja, é a União, a suas próprias custas, liberando patrimônio imobiliário conforme interesses de um capital altamente financeirizado.

Quanto ao patrimônio do FRGPS, a Medida Provisória autoriza a alienação de seus imóveis desnecessários ou não vinculados a suas atividades operacionais, dispensando a obrigatoriedade da destinação social. Com essa medida, mais uma vez afronta o interesse público em privilégio de interesses privados, especialmente relacionados com movimentos financeiros.

Uma análise conjunta destas três normas, todas vigentes e duas na forma de lei, nos fornece um panorama de incremento do arcabouço institucional que vem sendo montado para a entrega do patrimônio imobiliário da União, inclusive com fim especial de alimentar fundos financeiros. Esse arcabouço institucional vem se tornando cada vez mais concreto, no sentido de sair das permissões legislativas genéricas e progredir para normas mais específicas, tratando de patrimônios definidos e determinação de ações concretas, como as promovidas pela MP 852/18.

Percebe-se, assim, um processo de realização das pretensões já anunciadas desde 2015 de relativização das proteções patrimoniais da União em benefício de operações financeiras realizadas por meio de fundos de investimentos e, talvez ainda mais grave, a assunção de custos diretos pela União para a promoção destes fundos.

O processo de entrega de patrimônio imobiliário federal para fundos de investimento terá impactos importantes no processo já acentuado de capilarização financeira em nossas cidades. Ao aprofundar a lógica da gestão acionária em detrimento da lógica da gestão pública, à custa do próprio patrimônio imobiliário nacional, tende a acentuar uma visão privatista e fragmentária das cidades, em sentido contrário a cada vez mais importante visão plural e inclusiva, em busca de cidades mais justas e igualitárias, conforme preconizado em nossa legislação.

Quanto aos movimentos legislativos, trata-se de compreender que, muitas vezes, a lei não vem apenas para formalizar processos já postos na sociedade, mas faz papel de vanguarda na realização de certos objetivos, como parece ser o caso acima descrito. Por isso, é fundamental que os profissionais e pesquisadores do urbano fiquem atentos a tais movimentos, que podem dar pistas valiosas dos rumos que vão sendo traçados para nossas cidades em gabinetes escusos de nossa capital.

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[1] Art. 23.  A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.
  • 1o Apenas na Reurb-S, a legitimação fundiária será concedida ao beneficiário, desde que atendidas as seguintes condições:
I – o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural;
II – o beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto; e
III – em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido pelo poder público o interesse público de sua ocupação.