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A cidade contemporânea é produzida coletivamente, apesar de ser apropriada como fonte de renda, juros e lucro de uma pequena parcela da população. A partir da produção capitalista do espaço que cria uma massa de sujeitos que tem o direito à cidade negado: o precariado urbano. Neste artigo Thiago Canettieri e William Azalim propõem umà reflexão sobre o intenso processo de despossessão ao qual os trabalhadores urbanos são submetidos e sobre as possibilidades de mudança desse quadro social, a partir da formação de um sujeito coletivo urbano.

O artigo “Dos excluídos da cidade à revolução urbana – definições de um novo sujeito político” é um dos destaques da edição nº 23 da Revista eletrônica e-metropolis.

Thiago Canettieri é professor no IFMG Ouro Preto e doutorando em Geografia UFMG.

William Azalim do Valle é mestrando em Engenharia de Produção UFMG.

A seguir um trecho do artigo sobre os excluídos da cidade.

INTRODUÇÃO

As cidades contemporâneas têm sido produzidas (e reproduzidas) sobre uma dimensão cada vez mais segregada. Realidade que se escancara, inclusive sendo noticiada pela mídia com manchetes que revelam este seu caráter: “1% mais rico de São Paulo abocanha 20% da renda da cidade; há dez anos eram 13%”; ou, no contexto europeu, “OCDE aponta aumento de abismo entre pobres e ricos na Europa”. Este foi o tom do frisson causado pelo livro de Piketty (2014), “O Capital no século XXI”, que mostra o aprofundamento das desigualdades decorrentes do capitalismo contemporâneo.

No processo de globalização (ou globalitarização), observa-se a crescente onda neoliberal que passa a pautar a economia dos países e cidades. Os direitos sociais conquistados foram transformados em serviços, mercadorias a serem vendidas. O cidadão, segundo Santos (1993, p.121) se torna “[…] ensombrecido pelo usuário e consumidor, dificultando a formação do homem público.”. Este processo é verificável na dinâmica urbana contemporânea. David Harvey (2008, p.31) afirma que a “[…] “qualidade da vida urbana se tornou um produto a ser consumido, assim como a cidade.”. É essa a base que garante a morfogênese do urbano contemporâneo.

Apresenta-se, portanto, a cidade como resultado da sociabilidade capitalista, marcada pelo processo de produção, circulação e acumulação de capital. Por isso, o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Boulos (2014), afirma:

 

“A cidade privada para poucos é a cidade da privação para a maioria”.

 

Para entender este contexto, deve-se aumentar o escopo de análise do marxismo tradicional. A luta de classes ultrapassa os muros das fábricas, como foi descrito por Marx (2013) durante o século XIX. Como ressalta Maricato (1988), a questão urbana nem sem- pre fez parte da análise da esquerda, que priorizou, durante muito tempo, a luta operária e camponesa em senso estrito. No entanto, uma nova tradição de intelectuais da esquerda3 se debruçam hoje sobre a cidade para entender seus processos.

Esses autores concordam que a luta de classes, hoje, é expressa e materializada nas cidades. Pode-se falar que a metrópole de hoje está para o circuito contemporâneo do capital como a fábrica esteve para o capitalismo do século XIX. A produção e apropriação de mais-valia não acontece, prioritariamente, no chão da fábrica, nas linhas de montagens, nos latifúndios do campo; mas nas relações sociais cotidianas que se tornam cada vez mais mercantilizadas. O produto dessas relações sociais, o urbano, como argumenta Harvey (2009, 2012) em diversas oportunidades, torna-se mercadoria essencial para a sobrevivência do capitalismo.

Muito da história recente, referente aos estudos urbanos críticos, tem sido marcado com um compromisso dos autores na construção de uma política de transformação emancipatória e com a criação de um sociedade mais justa (Swyngedouw, 2014). O presente artigo é uma contribuição a esse entendimento, refletindo sobre o intenso processo de despossessão ao qual os trabalhadores urbanos são submetidos, (Harvey, 2012) até a abertura de uma possibilidade de mudança a partir da cidade (Lefebvre, 2001). A reflexão que aqui consta é a tentativa de sistematizar, em linhas gerais, como está organizada a classe de trabalhadores precarizados no espaço urbano para, então, questionar suas possibilidades de emancipação.

O URBANO COMO EXPLORAÇÃO DO TRABALHO

O urbano foi tornado mercadoria em um intenso processo de sobreposição do valor de troca sobre o valor de uso da cidade. Como descrito por Marx (2013), a mercadoria é produzida a partir do trabalho explorado e alienado do trabalhador, portanto, a mercadoria lhe é estranha. Com a cidade não foi diferente: Produzida coletivamente, mas apropriada de forma privada. Acontece, então, no urbano, a separação de classes. A organização social da separação do trabalho – capital passa a se materializar no urbano, seguindo os mesmos padrões. É a partir da contradição social entre capital e trabalho que ocorre, de maneira expressa no espaço urbano, a criação do centro e da periferia (Lefebvre, 1981).

A expressão da desigualdade é observada no conteúdo da segregação espacial. As cidades revelam em sua cartografia socioespacial o funcionamento de diversos mecanismos que atuam, de forma sinérgica, a reproduzir a desigualdade entre as classes. A divisão de classes em âmbito social é expressa espacial e materialmente no urbano (Harvey, 2012). Esta organização possui um forte impacto na estrutura urbana da cidade. Sua organização espacial – das vias, dos aparelhos públicos e privados, das amenidades, das áreas de lazer e cultura, e até da legislação do uso e ocupação – é influenciada pelo fenômeno da segregação.

No entanto, o fenômeno da urbanização capitalista procura integrar seus elementos em um todo de forma coerente, em diferentes níveis, segundo diferentes modalidades: Pelo mercado, pela ideologia, pelos valores e pela ação do Estado. Embora integrados ao funcionamento estrutural do sistema sócio-econômico-espacial, muitos indivíduos sofrem a perversidade desta lógica. Ao mesmo tempo, essa sociedade capitalista pratica a segregação, produzindo e mantendo espaços que são destinados aos diferentes grupos sociais. Ou seja, integra-se para segregar; segrega-se para integrar.

A integração do todo à lógica capitalista só é possível com a manutenção de um grupo de indivíduos que são excluídos de quase tudo, mas que cumprem uma função dentro do sistema; a pobreza e a exclusão gerada pelo próprio funcionamento da sociedade capitalista a mantêm. A segregação então ocorre para determinar de que forma esses indivíduos atuarão dentro da estrutura capitalista.

Sobre isso, destacam Mayer e Assis (2008, p.12) que “as relações sociais na cidade também estão estruturadas sobre aquela intransponível contradição que caracteriza o sistema capitalista.” De certa forma, essa estruturação urbana é responsável por sustentar as condições necessárias para a reprodução social. Esse é um dos pontos desenvolvidos por Lefebvre (1981) em seu livro The survival of capitalism. Só é possível para o capitalismo sobreviver ao produzir espaço e reproduzir as relações sociais de produção que incidem, dialéticamente, um sobre o outro.

Harvey (2012) observa que o processo de urbanização se tornou um instrumento essencial para a reprodução do capitalismo. Assim, o capitalismo está sempre produzindo os surplus product que a urbanização necessita, ao mesmo tempo em que o capitalismo precisa da urbanização para absorvê-los. Este processo envolve diversas frações do capital (em diferentes níveis de abrangência): Capital industrial, capital imobiliário, capital fundiário, capital especulativo, capital financeiro, entre outros.

Esclarece Harvey (2012) que, ao iniciar a urbanização de uma

proletariado) e políticas (governantes/ governados) até o nível da contradição do espaço: centro-periferias que reproduzem em vários níveis as desigualdades que passam a expressar a segregação.

A área (muitas vezes ligada a uma ação do Estado e de seu tesouro), as instituições financeiras fazem o empréstimo aos responsáveis por desenvolver a terra, que a compram dos proprietários. Assim, inserem-se as companhias construtoras que iniciam a intensa transformação do espaço. Ao final, o capital imobiliário parcela a terra, constrói as benfeitorias e coloca-as à venda no mercado. Para comprar, o consumidor final faz empréstimo a uma instituição financeira, e assim o ciclo se completa. Em todas estas etapas ocorre, de alguma forma, a acumulação de capital (seja pela exploração da mão de obra, pelos juros ou pela renda da terra).

Mas este processo só é possível, de acordo com Harvey (2012), a partir de um perpétuo processo de displacement and dispossession que possui uma clara dimensão de classe. Em primeiro lugar, afirma o autor, a produção de mais-valia sempre pressupõe que esta deve ser extraída de algum trabalho humano, no caso, da classe trabalhadora. O processo incide sobre as populações mais pobres que acabam perdendo seus espaços na cidade.

Em especial, se focarmos no desenvolvimento urbano brasileiro, percebe-se a produção de uma intensa segregação espacial em consequência da inserção do Brasil como um país capitalista dependente (Tonin, 2015), ao desempenhar um papel muito específico dentro da economia global. Como em outras sociedades capitalistas, a urbanização brasileira está ligada às práticas da reprodução ampliada do capital. No entanto, enquanto um país de industrialização tardia, baseado no que Oliveira (2013) chamou de uma industrialização dos baixos salários, por consequência, afirma Maricato (2003), se tem uma urbanização dos baixos salários. Como aponta Tonin (2015), se pensarmos o acesso à habitação no Brasil, poderíamos dizer que o mesmo é determinado pelos baixos salários dos trabalhadores, tanto pelo lado da demanda, por conta alto custo da terra, quanto pelo lado da oferta, o que encarece o produto habitação, criando um mercado restrito e, portanto, que gera exclusão (Maricato, 2003).

Maricato (2003, p.153) demonstra que, no Brasil, “a produção do ambiente construído e, em especial o ambiente urbano, escancara a simbiose entre modernização e desenvolvimento do atraso” (Marica- to, 2003, p.153). Isso significa reconhecer que a urbanização brasileira está relacionada com a produção habitacional baseada na autoconstrução (Oliveira, 2013), majoritariamente de maneira informal, o que implica uma interdição de vários direitos sociais (Maricato, 2003), em um intenso processo de espoliação urbana (Kowarick, 1980).

Pode-se afirmar que a urbanização brasileira está assentada em um processo de superexploração da força de trabalho (Marini, 2005) no qual se forja a classe de trabalhadores urbanos precarizados, que David Harvey (2012) denominou de “precariado”.

Acesse a edição nº 23 da Revista e-metropolis e veja o artigo completo “Dos excluídos da cidade à revolução urbana – definições de um novo sujeito político”.

Última modificação em 13-01-2016 17:10:40