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Manifestações? Uma pauta para a redemocratização | Jorge Wilheim

A rua manifestou seu descontentamento e exigiu mudanças tópicas, com uma variedade de palavras de ordem aparecendo nas manifestações. No entanto, à medida que se percebe a eficácia das vozes de indignação, observada na reação assustada do mundo político, os manifestantes podem agora focar dois temas básicos e catalisadores: o da reforma política, e da qualidade de vida urbana. O primeiro constitui amplo guarda-chuva sob o qual se alinha o combate à corrupção, a ética na política e a construção de canais de efetiva comunicação entre governantes e governados. E o segundo trata da qualidade de vida nas cidades e suas deficiências abarcam desde a mobilidade ao bom uso dos espaços públicos.

O artigo “Uma pauta para a redemocratização” é uma contribuição do arquiteto e urbanista Jorge Wilheim para o debate que o INCT Observatório das Metrópoles vem desenvolvendo sobre o atual contexto político que vive o país, no qual parte da população foi para as ruas reivindicar melhores serviços, transparência e representatividade política. Como pano de fundo do debate a gestão e os serviços dos grandes centros urbanos, a metrópole enquanto barreira e também agente da ação da transformação social brasileira.

Wilheim é uma das principais vozes relacionadas à gestão das grandes cidades brasileiras. Sua trajetória profissional, que se confunde com os últimos 50 anos do desenvolvimento urbano do país.  Durante o governo paulista de Antônio Fleury Filho (1991-1994), Wilheim coordenou a elaboração do segundo Plano Metropolitano de São Paulo, projeto pioneiro que pensava a problemática metropolitana dentro dos marcos de um mundo globalizado. Ainda na década de 1990, assume o cargo de secretário-geral adjunto da Conferência Mundial Habitat 2 (ONU), realizada em 1996, em Istambul, Turquia. De volta ao Brasil, retoma projetos de planos diretores para cidades como Campos do Jordão e São Paulo (2000). Nesse período, publica o livro “Tênue Esperança no Vasto Caos: Questões do Proto-Renascimento do Século XXI”, em que procura sistematizar sua experiência no campo do urbanismo.

 

Uma pauta para a redemocratização

Por Jorge Wilheim

Em artigo anterior (“Manifestações: o nome do jogo”) interpretei as atuais manifestações de rua como faceta brasileira de um movimento global de reconstrução da democracia, busca de representatividade e legitimidade das instituições, e eliminação da captura global da política pelo setor financeiro.

Trata-se, portanto, de um processo e não de mero evento, podendo-se prever etapas sucessivas, desde que se mantenha a justificada pressão da sociedade sobre as instituições políticas. Donde a necessidade das manifestações refluírem para temas básicos. A rua manifestou seu descontentamento e exigiu mudanças tópicas, donde a variedade de palavras de ordem que pouco a pouco foram aparecendo nas manifestações. No entanto, à medida que se percebe a eficácia das mesmas, observando-se a reação assustada, precipitada, do mundo político, os manifestantes poderão focar dois temas básicos e catalisadores: o tema central da reforma política, e o tema da qualidade de vida urbana. O primeiro constitui amplo guarda-chuva sob o qual se alinha o combate à corrupção, a ética na política, o combate à impunidade, o ajuste da representação partidária, o injustificado alto nível das remunerações e subsídios para cargos públicos do legislativo e do judiciário, e, finalmente, a construção de canais de efetiva comunicação entre governantes e governados.

No entanto, mais do que a reforma política, o que mobiliza a sociedade em um primeiro momento é o conjunto de subtemas que constituem o mal viver em nossas cidades.  A qualidade de vida urbana e suas deficiências abarcam desde a mobilidade ao bom uso dos espaços públicos, da segurança do cidadão à melhoria ambiental. Em São Paulo trata-se de uma pauta de melhorias pertinentes à discussão do Plano Diretor 2013/2023 e especialmente oportuna quando da elaboração dos planos de bairro, tarefas estas já iniciadas pela Prefeitura. Seu debate, pelo menos nesta cidade, permite a imediata participação da sociedade.

Além da batalha ganha dos 20 centavos, há que desenhar, portanto, uma pauta de ação e os formatos de participação que catalisem a ação da sociedade e constituam o processo de melhoria de qualidade de vida urbana e de redemocratização desejadas. Outras palavras de ordem, além das já ventiladas, poderiam ser lançadas, aproveitando o histórico momento em que a Nação, na rua, evidencia ter o poder de tomar iniciativas com relação ao Estado, fato raro em nossa História.

Eis algumas leis que não conflitam com a Constituição e que poderiam desde já ser propostas: (a) a proibição de pessoas eleitas para um legislativo ocuparem cargos em outros poderes (especialmente no executivo) eliminando a prática imoral de uma pessoa eleita para legislar trair o voto para acomodar-se no poder executivo, com a vantagem suplementar de poder escolher o salário mais alto; (b)  após a explicitação da remuneração individual e dos benefícios agregados dos ocupantes de cargos nos três poderes, achatamento dos valores para caberem nos tetos estabelecidos  e eliminação jurídica dos diversos truques de isonomia que vão aumentando o nível de ganho de quem está em cargo público; (c) a correção das normas eleitorais, sempre de acordo com a Constituição, de modo a tornar a representatividade de fato proporcional, eliminando finalmente os cargos dos senadores biônicos (criados artificialmente pelo presidente Geisel com o objetivo circunstancial de naquela época garantir no Congresso a maioria do partido do governo); (d) estabelecimento de clara diferença entre “informação” e “comunicação” na gestão governamental: enquanto a primeira se traduz pela transparência com que o governante mantém informados os governados, a comunicação é um canal de dois sentidos, destinados a falar e a ouvir a sociedade; neste canal se insere o mecanismo de conselhos setoriais permanentes.

Mas, quem deve tomar a iniciativa dessas medidas? Embora todas possam ser tomadas pelo Congresso é precisamente dele que menos se pode esperar pois está em franca defensiva.  O governo federal e a Presidência podem assumir a elaboração de alguns projetos de lei.  Ao nível estadual e municipal os governantes também podem tomar iniciativas e, no caso de legalmente necessário, enviá-los com urgência aos seus legislativos. O Supremo Tribunal Eleitoral, respaldado pelo STF também poderia emitir normas que digam respeito a eleições, sempre focando a justa representação da sociedade através de partidos, assim como os atributos éticos ampliados a partir da Lei da Ficha Limpa. Os partidos políticos, também acuados, tem a obrigação de se posicionar: os que permanecerem na defensiva e no silêncio ante as críticas da rua, destinam-se ao opróbio público e provavelmente irão desaparecer por falta de votos; os que tiverem sensibilidade e compreensão do significado das manifestações, deverão apoiar reformas e comprometer-se com uma mudança ética de ação, abandonando o pragmatismo oportunista, frequentemente a-ético,  “justificado” pelos problemas de governabilidade.

No que tange à qualidade de vida urbana, a iniciativa caberia à Prefeitura e aos cidadãos e suas organizações não governamentais e creio que em parte o seu processo de elaboração já esteja sendo feito, cabendo, contudo, dar ênfase aos tópicos que compõem o mal viver que a sociedade está denunciando nas manifestações.

Seja quem for tomar a iniciativa, o importante é que a consulta e participação da sociedade constituam o ponto de partida! Por isso, por exemplo, o plebiscito proposto pela Presidente é mais adequado do que um referendo, preferido pelos parlamentares conservadores (embora ambos os procedimentos possam em sucessão ser adotados): no primeiro a sociedade responde a perguntas e seu resultado iluminará a elaboração de lei por parte do Congresso; no segundo, o Congresso elabora uma lei, e esta é consultada em referendo para aceitar ou recusar o trabalho dos congressistas. Um plebiscito enseja o debate público de teses, durante os 2-3 meses necessários à sua organização, tornando-se informativo, educativo, e mantendo focado o movimento das ruas.

Há riscos. O menos provável seria um novo golpe militar, instigado por minorias civis escondidas, sob o pretexto de “por ordem na bagunça”. Outro improvável é o surgimento de um “salvador da Pátria” carismático, talvez apoiado por movimentos religiosos. O risco maior, no entanto, seria o refluir do movimento das ruas, esgotado e sem respostas, permitindo que, sob disfarce retórico, permanecesse o distanciamento entre sociedade e sistema político; pois este risco levaria ao descrédito do próprio regime democrático.