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Fonte: Shutterstock/Summit Mobilidade.

Juciano Rodrigues¹

Ao observar o que vem acontecendo nas principais cidades do mundo nos últimos três meses, algumas conclusões já podem ser tiradas dos efeitos da pandemia global da COVID-19 sobre a mobilidade. Duas delas chamam mais a atenção porque terão grandes chances de pautar as políticas de transporte no pós-pandemia.

Em primeiro lugar, as recomendações de distanciamento social e isolamento acentuaram a crise dos transportes públicos. Em segundo, muitas cidades foram forçadas a adotar medidas emergenciais fora do domínio do transporte público para que as pessoas que precisam circular pudessem ter uma alternativa para continuarem se deslocando.

O efeito sobre os transportes públicos, evidenciado pela perda de passageiros, apresenta-se de forma mais clara nas cidades brasileiras, como mostrou matéria do Jornal Folha de São Paulo, em 04 de abril deste ano. O segundo efeito, por sua vez, já não é tão evidente, porque ainda não há no Brasil o registro de cidades que estão seguindo esse caminho.

Apesar de avanços recentes e pontuais, nossas autoridades de transporte e trânsito ainda são resistentes a fugir do receituário que prevalece há pelo menos 50 anos: por aqui, o planejamento do transporte e da mobilidade continua muito centrado em promover a circulação baseada na fluidez do tráfego de veículos particulares motorizados e, em menor medida, dos veículos do transporte coletivo rodoviário movidos a diesel.

Esse planejamento é par de um modelo de urbanização insustentável e, como já bem lembrou Ermínia Maricato², os alertas já foram “ligados” sobre os impactos ambientais da impermeabilização dos solos, das áreas ocupadas pelo automóvel (estacionamentos, vias, viadutos, pontes, garagens e túneis) e da custosa predatória poluição do ar.

No contexto da pandemia, algumas cidades³ têm emitido sinais de que um caminho contrário a esse é possível, com a adoção de medidas voltadas, especialmente, para a promoção do ciclismo urbano⁴.

Rua d’Amsterdam em Paris publicada no Twitter pela prefeita da cidade, Anne Idalgo.

Enquanto cidades do mundo inteiro já começam a discutir a permanência do que foi feito de forma temporária na emergência, o Brasil, infelizmente, parece seguir o sentido oposto. As medidas emergenciais que tratam da circulação passam longe desse enfoque. Ou seja: as ações para a promoção da bicicleta como meio de transporte, que nunca foi incluída de forma séria e sistemática nas ações de transporte e trânsito, continuam sendo igualmente ignoradas nos tempos de pandemia apesar da luta de coletivos e organizações da sociedade civil.

O exemplo negativo vem da maior e mais importante cidade brasileira. Em São Paulo, apesar do questionamento dos membros do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT), nenhuma medida adotada até agora contempla a mobilidade ativa.

Porém, não é por isso que os atores (entre eles acadêmicos, ativistas e técnicos do setor público) comprometidos com a promoção de cidades mais justas e ambientalmente saudáveis deixarão de imaginar e disputar os futuros possíveis no pós-COVID-19.

Diante disso, se existirá um “novo normal” para os padrões de deslocamento da população, é certo de que ele não poderá mais ignorar a bicicleta ou apenas tratá-la como peça de marketing urbano, sobretudo nas grandes cidades, nas quais os efeitos sanitários da pandemia estão sendo mais sentidos e nas quais as consequências da crise econômica são ainda mais graves.

Mas sabemos o suficiente sobre quem atualmente transita por bicicleta para realizar suas atividades, como trabalhar, ir às compras, à escola ou mesmo tarefas corriqueiras do dia-a-dia? Se o “novo normal” vai incluir a bicicleta, quem são as pessoas que estarão nas ruas caso as cidades brasileiras resolvam olhar para outros países e – desta vez com razão – copiar o que está sendo feito lá fora a favor desse meio de transporte?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que o ciclista urbano brasileiro já existe, apesar dos esforços para invisibilizá-lo. Em segundo, existem esforços sistemáticos para coletar informações sobre ele e sobre como ele transita pela cidade e que, por sua vez,  podem orientar as políticas públicas.

Em 2013 e 2015, a partir de iniciativa inédita coordenada pela ONG Transporte Ativo, o Observatório das Metrópoles e o LABMOB/UFRJ, foram realizadas duas edições de uma pesquisa para investigar quem é o ciclista brasileiro e, na segunda delas, também o latino-americano. Essa iniciativa se soma a diversos outros esforços na produção de dados sobre mobilidade ativa⁵. Um resumo dos resultados desta pesquisa especificamente está disponível aqui.

Nas duas edições, a pesquisa foi às ruas em cidades de diferentes tamanhos, perfis socioeconômicos e contextos geográficos. Mas todas elas com traços comuns: (i) a presença resistente de ciclistas práticos, isto é, o ciclista que se locomove para fins de transporte, não de lazer; (ii) o uso resiliente da bicicleta e (iii) uma comunidade ciclística organizada em torno de sua defesa como meio de transporte e agente transformador das cidades.

Foi inclusive a rede dessas comunidades que permitiu que a pesquisa fosse construída coletivamente e realizada de forma voluntária em 25 cidades brasileiras e 7 cidades de outros países latino-americanos. Resgatar os resultados de esforços como esse é fundamental para pensar o papel da bicicleta na mobilidade no cenário que se desenha: crise fiscal de estados e municípios, aumento do desemprego e do emprego precário e acentuação das desigualdades urbanas.

A principal conclusão da pesquisa pode ser ponto de partida para pensar as políticas públicas de transporte no pós-pandemia: as pessoas já estão propensas a pedalar e quem já pedala está disposto a pedalar mais, só não o fazem porque falta infraestrutura adequada. Esse fator está diretamente relacionado à sensação de insegurança e desproteção que, consequentemente, inibe a adoção mais prevalente desse veículo.

Esse ciclista prático, que vai de bicicleta para o trabalho, os locais de compra, para a escola e para o cinema, já usa a bicicleta com bastante frequência. De todos os mais de 7 mil ciclistas que compuseram a amostra da pesquisa no Brasil, 82% usam a bicicleta em pelo menos cinco dias da semana. Lembrando, novamente, que a pesquisa não considerou o uso da bicicleta para lazer e atividades físicas.

Nesse quesito, são verificadas diferenças sensíveis, mas importantes, entre os sexos – um traço fundamental a ser considerado no desenho das políticas. Enquanto 84% pessoas do sexo masculino utilizam a bicicleta em cinco ou mais dias por semana, esse percentual é de 78% entre as pessoas do sexo feminino. Essa diferença entre a intensidade de uso pode ser resultado justamente de aspectos relacionados às condições oferecidas pela cidade, inclusive para que mulheres se sintam mais seguras para transitar de bicicleta.

Essa hipótese foi reforçada pelos resultados da pesquisa. Embora a falta de infraestrutura prepondere entre as preocupações de todos os pesquisados, no caso das pessoas do sexo feminino, a preocupação com a segurança pública é um pouco maior em comparação às pessoas associadas ao sexo masculino. Quando perguntadas sobre qual seria o principal problema que enfrentam no uso da bicicleta como meio de transporte, 11% das mulheres apontaram a falta de segurança pública contra apenas 7% dos homens.

Nas cidades pesquisadas, a maioria dos ciclistas entrevistados demonstra experiência com a bicicleta. Isso sugeriu que, quanto maior o tempo de experiência com o veículo, maior tende a ser sua fidelização como meio de transporte em tempo integral. Mais de 60% transitam de bicicleta havia pelo menos cinco anos ou mais. Além disso, a experiência explica o uso mais intenso: 51% das pessoas que usam a bicicleta havia mais de cinco anos realizam viagens em cinco dias ou mais durante a semana.

Ciclistas transitam de bicicleta na cidade do Rio de Janeiro. Créditos: Pedro Bastos.

A pesquisa revela também como as desigualdades urbanas podem rebater na acessibilidade por bicicleta. Nas capitais brasileiras onde a pesquisa foi realizada⁶, pessoas que se declaram pretas, por exemplo, combinam menos a bicicleta com outros meios de transporte em relação a outros grupos. A integração com outros modos é realidade para apenas 17% dessa população, enquanto para aquelas que se declaram brancas o mesmo percentual chega a 21%. Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, embora um percentual maior de pessoas que se declaram pretas conseguem acessar outros meios de transporte através do uso da bicicleta (31%), a diferença ainda é considerável, já que 41% das pessoas que se declaram brancas realizam algum tipo de integração.

A desigualdade também existe em relação ao acesso à infraestrutura cicloviária. Segundo levantamento do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) e da União de Ciclistas do Brasil (UCB), 4 em cada 5 pessoas moram distante de vias destinadas à bicicleta. No caso de pessoas com renda abaixo de 1 salário mínimo, a situação é ainda pior. Apenas 13% da população nesse grupo mora próximo a essa infraestrutura.

Considerar a diversidade e as desigualdades, aliás, é uma preocupação importante para a promoção do ciclismo urbano. É preciso considerar as barreiras ao ciclismo enfrentadas pelas pessoas que vivem em bairros mais pobres e como essas barreiras estão interconectadas. Por isso, temas como segurança pública, discriminação racial, cultural local e subsídios não podem ficar de fora. Não reconhecer essas barreiras e não agir de acordo com as necessidades de determinados grupos arrisca comprometer a capacidade desses mesmos grupos usufruírem dos benefícios do ciclismo urbano.

Como lembra Julian Agyeman, professor de Planejamento Urbano e Ambiental da Tufts University, Massachusetts (EUA), à medida que as cidades estão propondo reinventar suas ruas em um mundo pós-pandemia, “políticos, planejadores de cidades e defensores de bicicletas precisam reconhecer melhor que os ciclistas têm status, direitos, necessidades e capacidades diferentes, dependendo de sua origem social e racial”⁷.

O ciclista do “novo normal” já existe e, em certa medida, os problemas que ele enfrenta para transitar de bicicleta já são conhecidos. São as cidades – e não os ciclistas – que deverão se adaptar para acolhê-los de forma segura e protegida, reconhecendo suas necessidades e desejos.

É verdade que a bicicleta não vai resolver todos os problemas, tampouco vai dar conta da carga de transporte de grandes metrópoles. Mas pode, sem dúvida, desempenhar um papel importante no sistema de mobilidade, conectando a vida doméstica ao exterior do domicílio de forma segura, garantido opções para que as pessoas possam driblar a imobilidade na busca por oportunidades na crise que se avizinha. Por isso, a importância de medidas de integração-bicicleta nos transportes públicos, por exemplo: trens e metrôs, sobretudo.

Se durante a pandemia se fala em colocar a vida humana na frente da economia, a construção dessa “nova cidade” implica em colocar as pessoas em primeiro lugar, o que significa colocar o transporte público, as bicicletas e os pedestres na frente dos carros.

Em muitos lugares nos quais essas ações temporárias foram implementadas, já se discute a possibilidade de aproveitar tais medidas para avançar uma agenda de transformações urbanas mais amplas e permanentes a partir da ressignificação dos espaços públicos de convivência e circulação. Esse otimismo, contudo, não está isento de uma avaliação crítica mais aprofundada sobre o seu alcance social e sobre os caminhos políticas para levar as mudanças a cabo.

No Brasil, tudo indica que os ciclistas estejam prontos para as mudanças possíveis: afinal, demonstram estar dispostos a continuar pedalando, preparados para lidar com os aspectos práticos dos seus deslocamentos e organizados o suficiente para participação na elaboração das políticas públicas e fiscalização do poder público. Entretanto, corre-se o risco de se pagar um preço alto pela indiferença dos governantes diante de uma crise aguda do transporte público coletivo.

Nesse momento, quando cidades do mundo inteiro se colocam perante o desafio de enfrentamento de uma pandemia sem precedentes, com efeitos sanitários e econômicos já sentidos, mais uma vez, a bicicleta aparece como parte econômica e socialmente viável das soluções. Falta romper as barreiras políticas.

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¹ Professor e pesquisador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro, coordenador do projeto de pesquisa “O planejamento da mobilidade e do transporte público em Regiões Metropolitanas“.

² MARICATO, Erminia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.

³ Entre várias, vale citar os exemplos de Bogotá, Lima, Paris e Milão onde já se discute a possibilidade de tornar as medidas temporárias em intervenções permanentes.

⁴ A adoção dessa expressão se faz pela necessidade de diferenciar a associação que comumente se faz ao ciclismo recreativo, de aventura ou de contemplação e para designar o uso prático da bicicleta para as atividades de reprodução da vida urbana.

⁵ Para ficar apenas em alguns exemplos importantes, há estudo sobre acessibilidade à infraestrutura (https://itdpbrasil.org/pnb/), sobre a dimensão econômica (http://economiadabicicleta.org.br/) e sobre o impacto social da bicicleta (https://cebrap.org.br/impacto-social-do-uso-da-bicicleta-no-rio-de-janeiro/).

⁶ Aracaju, Belém, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Manaus, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio de Janeiro.

⁷ Poor and black ‘invisible cyclists’ need to be part of post-pandemic transport planning too: https://theconversation.com/amp/poor-and-black-invisible-cyclists-need-to-be-part-of-post-pandemic-transport-planning-too-139145?__twitter_impression=true