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Questão urbana e envelhecimento populacional

Crédito: InfoHabitar

Neste artigo da Revista Cadernos Metrópole, Maura Bicudo Véras e Jorge Felix discutem a questão urbana em sua relação com o envelhecimento populacional. E mostram o efeito do capital financeiro, nos séculos XX e XXI, sobre o espaço urbano, o trabalho e a seguridade social. Os autores defendem que a perda do direito à cidade é o último estágio do desmonte do Estado de Bem-Estar Social, sendo que com o avanço do capital imobiliário, amplia-se a segregação dos moradores e os mais pobres se alojam em condições precárias nas cidades, onde vivem 84% dos idoso brasileiros.

O artigo “Questão urbana e envelhecimento populacional: breves conexões entre o direito à cidade e o idoso no mercado de trabalho”, de autoria de Maura Pardini Bicudo Véras e Jorge Felix, é um dos destaques do dossiê “A Saúde na Cidade”, presente na edição nº 36 da Revista Cadernos Metrópole.

Abstract

In this paper, we discuss the urban question and its relation to population aging. We show, in a summarized way, the effect of financial capital, in the 20th and 21st centuries, on urban space, labor and social security. We argue that the loss of the right to the city is the last stage of the dismantling of the Welfare State. With the advance of the real estate capital, the segregation of residents increases, and the poorest ones settle in precarious conditions in the cities, where 84% of Brazilian elders live. Thus, this process contributes to the construction of a paradoxical discourse about old age, especially with regard to the right to work and the postponement of retirement due to increased longevity. We have produced a hypothesis to be explored in further research regarding the role of the built environment in the decision about retirement.

INTRODUÇÃO

Por Maura Pardini Bicudo Véras Jorge Felix

Na análise da pós-modernidade, dois fenômenos saltam como protagonistas para o entendimento da dinâmica capitalista contemporânea: o processo acelerado de urbanização e o também acelerado processo de envelhecimento da população. Do ponto de vista socioeconômico, esses temas se apresentam dialeticamente relacionados ao avanço do capital financeiro, hipertrofia da sociedade de consumo, individualismo, insegurança pública, efeitos da mundializaçãoe do liberalismo; além disso, os tempos atuais carregam significados ligados à valorização da liberdade, da construção da identidade, assim como de questões de gênero e etnia, entre outros tópicos caros aos analistas da sociedade dos séculos XX e XXI.

Do ponto de vista do aumento da população em cidades brasileiras, essa proporção chegava a 84% em 2010 e foi estimada em 86% em 2015 (IBGE, 2011; Ipea, 2014). De 1991 a 2011, a expectativa de vida do brasileiro ampliou-se em 9 anos, saltando de 66,9 para 74,1 anos e, atualmente, 84% da população com mais de 60 anos vive nas áreas urbanas (IBGE, 2011).2

No caso das cidades sob o impacto do neoliberalismo nessa primeira década do século XXI, pode-se questionar e constatar as formas pelas quais se persevera a desigualdade social, mesmo quando ocorrem substanciais progressos econômicos e apesar de algumas ferramentas de proteção social. A desigualdade urbana é estável, resistente, mesmo que mutante. Acompanham tais contrastes sociais, o esvaziamento do espaço público; a proliferação de moradias precárias; a autossegregação das elites, quer nos condomínios fechados, quer nos bairros de melhor qualidade urbana; o espraiamento da pobreza para zonas periféricas, com deficiência de serviços e equipamentos, em combinação perversa de fatores ligados à concentração de renda e da propriedade do solo com ingredientes ligados simbolicamente a cor/etnia, origem e práticas culturais, pois incluem-se valores, hábitos, costumes e significados de todo um fazer humano com suas ex- pressões individuais e distinções sociais.

Pode-se dizer, assim, que a cidade contemporânea não apenas reflete as desigualdades geradas em outras esferas, como, por exemplo, a distribuição de renda, mas que ela mesma é produtora de desigualdades. Nesse sentido, o direito à cidade e ao lugar, como espaço identitário, é o que lhe possibilita aos indivíduos ser mais ou menos cidadão e lhe permite o acesso a direitos e à participação política (Santos, 1987). Como nos diz Harvey (2012), a cidade capitalista global, sustentada pelos fortes pilares do livre mercado, transformou-se em um bem de consumo, e seus habitantes vivem dependendo de sua capacidade de consumir o que a cidade lhes oferece. Nesse cenário, insere-se a questão do envelhecimento.

O envelhecer nas grandes cidades tem sido um objeto de pesquisa cada vez mais presente na Sociologia e outras áreas. O interesse crescente no tema surgiu, entre outros marcos, a partir do documento da Organização Mundial de Saúde, publicado em 2008, “Cidade Amiga do Idoso” (OMS, 2008). Desde então, as áreas de economia, urbanismo, direito, sociologia, saúde e gerontologia voltaram-se ao tema seja para avaliar a execução de políticas públicas destinadas a atender às recomendações da OMS em busca do bomenvelhecimento, seja para fazer conexões entre essas recomendações e a realidade proporcionada pela configuração da economia no século XXI. Por exemplo, no direito à moradia.

É o caso de Rolnik, quando destaca que o aumento da propriedade privada da moradia, vis à vis os modelos de moradia social do pós-Segunda Guerra Mundial, e a mobilização crescente desse patrimônio imobiliário como forma de riqueza “coincidem com o processo de envelhecimento da população e com a enorme pressão que isso representou para os sistemas públicos de aposentadoria”. A casa própria, destaca a autora, transformou-se em um esto- que de riqueza para a vida mais longa devido à aposta em sua valorização ao longo do tempo, que acaba sendo efetivada pela ampliação da especulação imobiliária, e, na prática, termina por substituir os sistemas públicos de previdência (Rolnik, 2015, p. 38).

A intenção aqui é estabelecer relações entre a dinâmica demográfica, o “uso do ambiente construído”, no dizer de Harvey (1982), e o discurso econômico defensor da postergação da aposentadoria como um impositivo para uma suposta necessidade de dar sustentação ao sistema de previdência social público (e por repartição). A questão previdenciária em si – quanto ao equilíbrio orçamentário do sistema – está fora do âmbito deste texto, estando presente apenas no bojo do que se entende como Estado do Bem-Estar Social.É válido, porém, destacar a existência de profícua literatura sobre o componente político e ideológico na análise de seu financiamento dentro de cada concepção de Estado.4

O objetivo é analisar, portanto, como o movimento do capital financeiro, em forma de sua fração imobiliária, interfere na construção do espaço urbano de maneira que limita as possibilidades do viver do trabalhador idoso (60 anos ou mais) nas grandes cidades.A hipótese a ser discutida é como essa “construção” corrobora para a decisão de antecipação da aposentadoria e desmistifica o discurso de uma possibilidade universal, diante da maior longevidade, de uma reinvenção do trabalhador na fase pós-laboral, por meio de uma segunda carreira profissional. Esses dois pontos (postergação da aposentadoria e nova carreira) foram selecionados por sua relevância no debate econômico internacional sobre o fenômeno do envelheci- mento da população, estabelecido sobretudo na defesa da adoção de idade mínima para a elegibilidade aos sistemas de aposentadoria.

Na próxima seção será feita uma exposição breve do desmonte do Estado do Bem-Estar Social a partir do fim dos anos 1970 e, sobre- tudo, depois da crise financeira de 2007/2008. Em seguida, serão relatadas a construção de uma nova velhice na pós-modernidade e o uso desta representação no discurso da economia mainstream em relação ao mundo do trabalho e à aposentadoria. Na quarta seção, será analisado como o avanço do capital financeiro constrói o ambiente à sua mercê e em detrimento da “classe-que-vive-do-trabalho” (Antunes, 2011). Na última seção, à guisa de considerações finais, será discutida a dissonância cognitiva do discurso econômico neoliberal sobre o alongamento da vida laboral com a realidade imposta pela questão urbana.

 

Acesse o artigo completo na Revista Cadernos Metrópole nº 36.

 

Publicado em Artigos Científicos | Última modificação em 15-06-2016 18:49:33