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A Revolução urbana na Turquia e Brasil | João Seixas

Um parque verde central e muito popular face a um centro comercial banalizador e imposto por cima; tarifas de mobilidade urbana de um país imenso face a milionários estádios de futebol e outras derivas imobiliárias ‘emergentes’ e efêmeras; não são, de forma alguma, conflitos ‘locais’. São extraordinariamente globais. São conflitos entre oligarquias e democracias; entre vidas artificiais e vidas reais. E são o prenúncio de uma revolução urbana que se sucederá por todo o planeta. E que conviria que fosse acompanhada pela política, de preferência humanista, ecológica e democrática.

João Seixas é professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordena a cooperação internacional sobre estudos de governança metropolitana Portugal-Brasil com o INCT Observatório das Metrópoles. Em agosto de 2012 os dois institutos lançaram o relatório “A Governança Metropolitana da Europa”, propondo uma tipologia da evolução política metropolitana das grandes cidades europeias, bem como uma reflexão conjunta dos seus projetos sociopolíticos metropolitanos.

O texto “A Revolução urbana”, de Seixas, foi publicado no Jornal “Público” (Portugal) no dia 30 de junho de 2013 e cedido ao Observatório das Metrópoles como mais uma ação da cooperação internacional entre os dois países. Nele o professor português mostra as relações entre as manifestações na Turquia e no Brasil e como, em certa medida, começa a explodir uma revolução urbana global.

A REVOLUÇÃO URBANA

João Seixas, Geógrafo

Quinquagésima Quarta Crónica Jornal PÚBLICO (30 Junho 2013)

Sucedem-se as análises em torno do que se passa na Turquia e nas principais cidades do Brasil. Aqui vai mais uma. Quase todas dizem que as revoltas são sustentadas por classes médias insatisfeitas, transmitidas por redes sociais, e que começaram com ‘motivos menores’. Um pequeno parque em Istambul e 20 cêntimos de aumento nas tarifas dos ônibus urbanos brasileiros. Coisas pequenas, rastilhos enormes. Estes motivos são, porém, tudo menos menores. São elementos fortemente urbanos, e de vida urbana por excelência, pelo que compreendem e significam. Um parque verde central e muito popular face a um centro comercial banalizador e imposto por cima; tarifas de mobilidade urbana de um país imenso face a milionários estádios de futebol e outras derivas imobiliárias ‘emergentes’ e efémeras; não são, de forma alguma, conflitos ‘locais’. São extraordinariamente globais. São conflitos entre oligarquias e democracias; entre vidas artificiais e vidas reais. E são o prenúncio de uma revolução urbana, que se sucederá por todo o planeta. E que conviria que fosse acompanhada pela política, de preferência humanista, ecológica e democrática.

Frase mais que batida, desde o início deste século, a de que mais de metade da população mundial vive já em cidades. Pois uma frase falsa. Por ‘cidade’, devemos entender – e defender – uma paisagem social e física que permita intercâmbios e realizações humanas, das mais variadas formas, em graus razoáveis de direitos, de confortos, de possibilidades e de seguranças. E, como bem sabemos, ainda uma enorme fatia da ‘população urbana’ de hoje vive em proto-cidades, em favelas, em urbanizações que não são ‘cidade’, em paisagens fragmentadas, e com difícil mobilidade. E é, sem dúvida, em grandes metrópoles como as do Brasil e da Turquia de hoje, que mais se espelha a fortíssima e explosiva conjugação entre uma enorme sede de desenvolvimento e de urbanidade e as falhas da política em realmente se aproximar do que realmente importa. Embora no Brasil as buscas nesse sentido sejam bem mais sinceras. Mas este ‘gap’ existe, em quase todo o lado, e é enorme.

Escreveu no PÚBLICO Alexandra Lucas Coelho que este é o Maio de 68 que o Brasil nunca teve. Nem mais. O Maio de 68 foi, para a Europa, o início da sua revolução urbana. Quando se começou a perceber, como escreveu Henri Lefébvre, que ‘nem o capitalismo nem o Estado conseguem gerir e manter o contraditório e caótico espaço que produziram’. Uma revolução urbana que ainda dura, e que durará; pois entretanto, encurralada pelo mundo novo, a política Europeia rendeu-se a um tecnicismo mediático e pseudo-liberal.

Mas voltemos ao Brasil. Ao contrário de Erdogan, Dilma percebeu e procura agora fazer pontes e mesmo reformar a política. Só tinha que perceber. Tem sido no Brasil que alguns dos maiores avanços de política urbana têm sido dados. Desde logo, no entendimento que as políticas urbanas são cada vez mais centrais às políticas humanas. O Brasil é a pátria do orçamento participativo, do Estatuto da Cidade, da observância do Direito à Cidade.

As sociedades estão muito mais fractais, como muito bem explicou Giorgio Agamben. Da era das utopias iguais para todos, passámos para a era das utopias diferentes para cada um. A revolução tecnológica e informacional, verdadeira explosão gutemberguiana, e o crescente acesso à educação de muitos, proporcionou essa transformação. E o desejo, de quase todos, a uma vida urbana condigna. Não são as ‘classes médias’ que estão nas ruas. São as ‘classes urbanas’. Pobres e menos pobres, ricos e menos ricos. Querem mais cidade, e mais direitos na cidade. Porque a cidade é o lugar possível, por excelência, de todas as utopias.

É assim vital não ser arrogante para com a cidade e os seus cidadãos. Agir ecológica e equitativamente, construindo os suportes para a materialização dos direitos urbanos, e assim actuar sobre as dimensões e os espaços mais pertinentes, como é o caso da mobilidade e da inclusão social; da escala da metrópole à escala de cada bairro. Em diversidade, em pluralidade, em convivência. A revolução urbana é inevitável. Temos tudo a ganhar se a compreendermos e acompanharmos. Aproximando a Polis da cidade; e vice-versa.