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Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada

By 15/06/2016janeiro 25th, 2018Artigos Científicos, Revistas Científicas

Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada

Para a história da cidade no século XX, os trabalhadores metalúrgicos e os motoboys são uma voz arquetípica que retrata a mentalidade de uma época. A cidade vista sob a ótica desses dois grupos profissionais revela a brutalidade do processo de aceleração do tempo social. Esse é o tema do artigo “Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada”, de Stela Cristina Godoi. A pesquisadora analisa as memórias de metalúrgicos do ABC paulista de meados do século XX e os relatos orais de motoboys da Região Metropolitana de Campinas, coletados em duas pesquisas distintas, enlaçam-se em um processo de “escovação da história do sistema de circulação da cidade a contrapelo” — seguindo a proposta de Walter Benjamim.

O artigo “Sofrimento e trabalho na cidade em marcha forçada”, de autoria de Stela Cristina Godoi, é um dos destaques do dossiê “A Saúde na Cidade”, presente na edição nº 36 da Revista Cadernos Metrópole.


Abstract

For the history of the city in the 20th century, metallurgic workers and motorcycle couriers (known as “motoboys” in Brazil) are somehow an archetypal voice that portrays the mentality of an entire era. The city viewed in the perspective of these two social-professional groups reveals the brutality of the acceleration process of social time. Thus, in the lines below, the collective memoirs of metallurgic workers of São Paulo’s ABCD industrial belt in the mid-twentieth century and the oral autobiographical reports of “motoboys” in the Metropolitan Region of Campinas, collected in two separate surveys, intertwine in a process of brushing the history of the city’s circulation system against the grain.

INTRODUÇÃO

Por Stela Cristina Godoi

A cidade é “como a lâmpada para a mariposa. Atrai e também mata”, assim afirmou o finado Philadelpho Brás, metalúrgico, sindicalista e memorialista da classe operária paulista, em tom carregado de sabedoria anciã. Por meio da licença poética concedida aos narradores, Philadelpho suscita uma reflexão sobre o caráter contraditório das relações sociais formadoras da cidade. À cidade associa-se a imagem da iluminação, à ideia de iluminação, associa-se a de modernidade. As luzes da cidade como fator de atração a revoadas de migrantes, de mariposas, entre a vida e a morte. Essas mariposas são o Carlitos de Charles Chaplin. Esse “herói solitário e triste” vagando pelo “deserto povoado pela multidão” em que se constitui a cidade (Ianni, 1989). São o homem da multidão de Edgar Alan Poe, o flâneur de Charles Baudelaire ou, ainda, o Mazzaropi, anti-herói caipira da autêntica modernidade brasileira.

Mas a cidade não é uma abstração e, enquanto espaço de interação social, só ganha concretude histórica se associada à categoria temporal e se concebida dentro de um sistema social de produção e reprodução da vida. Desse modo, este escrito buscará promover uma reflexão sobre as mudanças na forma de ser-estar da cidade no bojo do desenvolvimento da indústria automotiva no Brasil, tomando o caso da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e da Região Metropolitana de Campinas (RMC) como base empírica dessa análise. Pretende-se, ademais, pensar a cidade como espaço simbólico do mundo moderno, o que torna necessário levar em consideração as metamorfoses da própria ideia de modernidade no interior da processualidade histórica do capitalismo.

No século XIX, Paris era considerada a capital da modernidade e, nessa condição, exerceu grande influência sobre a configuração da vida citadina na RMSP e na RMC. Em meados do século XIX, com as reformas empreendidas pelo prefeito do Departamento de Sena, George-Eugène, o Barão de Haussmann, a cidade de Paris materializou as aspirações iluministas. Água, esgoto e gás encanados para evitar epidemias que tinham vitimado centenas de pessoas na primeira metade do século. Incontáveis desapropriações e demolições dos casarios para dar lugar às ruas largas e bem calçadas, aos bulevares e dezenas de novas edificações padronizadas, para evitar motins e barricadas, que num passado recente haviam ocupado o enredado das vielas e das ruas estreitas que caracterizavam a topografia do centro de Paris (Benjamin, s/d).

Por sua vez, toda essa nova arquitetura parisiense havia sido inspirada no modelo londrino de urbanização, que estava à frente de toda a Europa na modernização da cidade, sobretudo pelo seu sistema de circulação urbano que, desde o século XVI, já chamava a atenção pela rede de vias fluviais, ferroviárias e rodoviárias que contribuíram para que Londres se tornasse o centro do mercado mundial (Wood, 2000).

Entretanto, com as destruições promovidas pelas duas guerras mundiais no território europeu e o fortalecimento político-econômico e militar dos Estados Unidos da América, a partir de meados do século XX, a própria ideia de modernidade se metamorfoseia em resposta aos novos interesses de transnacionalização da indústria capitalista taylorista-fordista. Portanto, no contexto de hegemonia norte-americana, as cidades, sobretudo aqueles matizadas pela dominação colonial, vivem uma nova onda de modernização que repercutiu na maior adequação de seus espaços de circulação para a espetacularização do consumo de automóveis.

Ou seja, rodovias, grandes avenidas, mais estacionamentos públicos e privados, tudo para assegurar a livre circulação dessa mercadoria-símbolo da modernização capitalista no mundo subdesenvolvido. Assim, no Brasil, em meados do século XX, os bondes e os trens foram parando de prestar seu serviço no transporte de pessoas e foram sendo substituídos pelos ônibus, caminhos, carros e, mais tarde, pelas motocicletas.

Nesse sentido, para se compreender a transformação pela qual passam as cidades brasileiras e o modo de vida urbano no bojo do processo em que a indústria automotiva foi conquistando papel central no projeto de desenvolvimento nacional, é preciso levar em consideração a importância desses espaços de circulação para a economia capitalista. Na medida em que a reprodução social desse sistema societal depende da realização da mais-valia através da distribuição, troca e consumo de mercadorias, as cidades tornaram-se o nervo essencial de uma economia cada vez mais capitalista e monetarizada, justamente porque abrigaram as atividades ligadas à circulação de bens e, consequentemente, ligadas à circulação de excedente (Santos, 1979).

A década de 1960 é marco temporal importante também para as cidades europeias. Com Harvey (2014) podemos asseverar que um novo cenário urbano reflete não só mudanças geopolíticas na divisão internacional do trabalho, como também micropolíticas. A imagem estampada em cartaz na década de 1960, de uma “retroescavadeira devorando vorazmente todos os antigos bairros de Paris”, representa um sentimento de que a cidade antiga “não podia mais permanecer como era, mas a nova parecia demasiado horrível, sem alma e vazia para se contemplar” (ibid., p. 10).

Todavia, o processo de racionalização capitalista não poupou essa cidade industrial, ela também foi sendo transformada, ao final do século XX, na “cidade-mercadoria” marcada por uma segregação de classes ainda maior. Por trás dos muros dos condomínios fechados e das novas barricadas urbanas dos territórios do crime, a produção do espaço urbano, a partir da década de 1990, encarna a face bipolar do ódio e da indiferença blasé ao outro (Caldeiras, 2000).

Ademais, a reestruturação produtiva do capital promoveu uma mudança profunda no mundo do trabalho e nas referências que pautavam e ritmavam a vida social. Amplia-se uma desconexão entre trabalho e empresa, tempo de trabalho e tempo de não trabalho, formal e informal, emprego e moradia. Nesse sentido, a produção do espaço urbano é também a produção de determinados percursos instáveis e desiguais dos sujeitos pelo mundo do trabalho precário e global das prestadoras de serviço terceirizadas, dos vendedores ambulantes, das empresas globais num mercado de consumo cada vez mais sedutor (Telles, 2006).

Assim, para pensarmos a violência implicada no processo de compressão do tempo-espaço que define a produção do espaço urbano, buscamos compreender essa nova tessitura entre trabalho e cidade através do aporte de uma perspectiva epistemológica que historicize a cidade a partir da experiência e da memória da “gente comum”,pois, quando pensamos a transformação da cidade, não basta fazer uma genealogia das ideias daqueles que, no mundo acadêmico, tentam compreender o processo. É preciso levar em consideração o

[…] papel desempenhado pela sensibilidade que surge das ruas que nos cercam, pelos inevitáveis sentimentos de perda provocados pelas demolições, […], ou o desespero que provém do sombrio desespero da marginalização e da juventude ociosa perdida no puro tédio do aumento do desemprego. (Harvey, 2014, p. 12)

Promovendo nexos entre o passado, o presente e o futuro, Walter Benjamin apresenta uma perspectiva histórica dialética que permite analisar essas metamorfoses da cidade ao longo do desenvolvimento capitalista, de modo que a nostalgia do passado se constitua no método revolucionário de crítica do presente (Löwy, 2005). Dialogando com os historicistas, refletindo sob o contexto histórico do fascismo, Benjamin (1994) ensaia, nas teses “Sobre o conceito de História”, outro conceito de história, mediante o qual sejam desnudadas as ameaças – promovidas pelo contínuo processo de modernização capitalista – que o progresso técnico e econômico faz pesar sobre a humanidade: a transformação dos seres humanos em máquinas de trabalho, a degradação do trabalho a uma simples técnica, a submissão desesperadora das pessoas ao mecanismo social.

Nesse sentido, Benjamin (1994) alerta para a necessidade de que a história seja vasculhada a contrapelo. Segundo esse autor, partindo do princípio filosófico de que não há luta pelo futuro sem memória do passado, “escovar a história a contrapelo” significa a recusa em se juntar ao cortejo triunfal dos vencedores e possibilita um salto para fora da marcha do progresso.

Num sentido similar, Thompson contribui com esse esforço de análise histórica na contramão da marcha do progresso com uma chave heurística fundamental que foi pensar a atuação dos sujeitos no processo histórico. Thompson (1981), criticando o estruturalismo althusseriano, propôs a inclusão de um termo ausente no sistema conceptual anterior: “a experiência”. Naquele sistema, a determinação e a autonomia aparecem como as duas pontas de uma mesma cadeia; enquanto, para Marx, segundo Thompson (ibid.), determinação e autonomia são as duas formas de dizer a mesma coisa. Assim, através dessa outra concepção proposta por Thompson, não se compreende a realidade histórico-social como um encadeamento mecanicista, mas sim como um processo histórico aberto.

Desse modo, tomando de empréstimo essas reflexões de Benjamin e Thompson, neste escrito, propõe-se olhar a cidade, bem como seus espaços de circulação e formas de sociabilidade, partindo das memórias e das experiências do conjunto de entrevistados dos dois estudos desenvolvidos pela pesquisadora, sobre os metalúrgicos do ABC de meados do século XX e sobre os motofretistas que atuam hoje em Campinas, com vistas a realizar um processo de reconstrução da história do desenvolvimento urbano paulista a contrapelo.

 

Acesse o artigo completo na Revista Cadernos Metrópole nº 36.

 

Publicado em Artigos Científicos | Última modificação em 15-06-2016 19:19:14