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Ocupação Lanceiros Negros

Ocupação Lanceiros Negros (Crédito da Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Coletivo à Cidade que Queremos Porto Alegre divulgou o Manifesto do Comitê de Solidariedade Revolucionária à Ocupação Lanceiros Negros.

Segundo o documento, o município de Porto Alegre tem um déficit habitacional de 75 mil casas, para aproximadamente 400 mil pessoas, e ao mesmo tempo, tem aproximadamente 6 mil imóveis vazios. Frente a esse cenário social caótico de responsabilidade do governo, o Secretário de Obras, Saneamento e Habitação do estado declarou não estar inteirado do assunto, quando questionado sobre a ação perpetrada na Lanceiros Negros.

O Coletivo A Cidade que Queremos foi criado por organizações e movimentos sociais de Porto Alegre em 2015 como um espaço público de articulação e debate da cidadania sobre o presente e o futuro da cidade de Porto Alegre. De caráter plural, e sem filiação partidária, o coletivo adota a diversidade de demandas, de proposições e das formas de ação coletiva relativas às políticas públicas e a ocupação e uso do espaço urbano, sempre orientados pelos princípios que historicamente constituíram a luta nacional pela reforma urbana, pela gestão democrática das cidades e pelo respeito ao ambiente natural, preceitos esses consagradas na Constituição de 1988 e posteriores regulamentações, como é o caso do Estatuto da Cidade, lei que deve ser seguida pelos municípios do país.

Pesquisadores do Núcleo Porto Alegre da Rede INCT Observatório das Metrópoles integram o coletivo, buscando atuar no monitoramento urbano local.

 

MANIFESTO DO COMITÊ DE SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA À LANCEIROS NEGROS

Viemos manifestar nosso repúdio à ação truculenta da Brigada Militar ocorrida na noite de 14 de junho, a mando do governador José Ivo Sartori (PMDB), no cumprimento do mandado de reintegração de posse da Ocupação Lanceiros Negros. Tal ocupação se constituiu há quase dois anos atrás, em um imóvel estadual abandonado há mais de 10 anos, no centro histórico de Porto Alegre, e abrigava 70 famílias em situação de vulnerabilidade social, as quais, portanto, legitimamente faziam cumprir a função social da propriedade daquele imóvel. As pessoas que ali viviam foram desalojadas violentamente, em uma noite fria, sem que lhes fossem apresentadas alternativas. Não lhes foram garantidos os direitos fundamentais constitucionais, tanto antes, quando necessitavam de moradia, como no momento da reintegração. Dentro do prédio se encontravam pessoas deficientes, mulheres grávidas e até mesmo bebês recém-nascidos e crianças de colo, que assistiram a violência ao lugar que os acolheram quando o aparato policial arrancou a porta de sua casa. Sofreram a ação do pesado aparato de força do Estado, sem policiais mulheres e sem a presença do Conselho Tutelar, em violação à própria decisão judicial que determinou a reintegração. Repudiamos o fato de que o preparo da Brigada Militar para lidar com situação é o treinamento fornecido para conter motins em presídios. Isso nos força a questionar: ofereciam tanto risco ao poder público as famílias vulneráveis que ali viviam?

A desocupação ocorreu apenas dois dias após a decisão judicial, que, por sua vez, autorizou o uso da polícia, bem como que a ação ocorresse fora do horário comercial, fundamentando-se na manutenção da ordem do trânsito e do centro da cidade. Ironicamente, a ordem foi perturbada tanto pela execução da ação em uma véspera de feriado, como continuará a ser perturbada pelo agravamento do conflito urbano, da violência e de todas as questões que derivam do tratamento de um problema social complexo como mero problema de polícia. Salientamos também que tanto a rapidez para a realização dessa ação como a sua ocorrência à noite e em véspera de feriado foram articuladas de forma que não houvesse tempo hábil para uma ampla mobilização de apoio à ocupação por parte da sociedade.

Previamente havia sido convocada uma audiência pública na Assembleia Legislativa a respeito da situação e, de forma sádica, o despejo foi também marcado para o mesmo horário da audiência. Por volta das 19h20 a tropa de choque iniciou a ação já em formação ofensiva, de modo que os deputados estaduais e demais pessoas presentes na audiência se deslocaram para a ocupação às pressas. As tentativas de negociação e conciliação com os oficiais de justiça, inclusive mediadas pelo deputado estadual Jeferson Fernandes na atribuição de presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, foram bruscamente interrompidas, lançando mão do uso da violência policial. Prontamente, foi utilizada força desproporcional, com balas de borracha, bombas de efeito moral e spray de pimenta para atingir as poucas pessoas que estavam mobilizadas em frente à ocupação. Nesse momento, 8 pessoas foram presas arbitrariamente e submetidas à tortura física e outras violações de direitos, estando entre elas o deputado Jeferson.

A Brigada Militar utilizou o camburão para o arrombamento da porta de entrada da ocupação, e bombas de gás lacrimogênio foram jogadas dentro do prédio, onde as pessoas moradoras estavam abrigadas. Em seguida, as famílias foram simplesmente jogadas sem qualquer orientação em um ginásio frio que não dispunha de infraestrutura alguma (não havia água, luz, comida, nem ao menos um colchão para as crianças dormirem na madrugada). Ali as famílias puderam permanecer por somente 24 horas, juntamente com seus pertences, sendo tratadas como se também coisas fossem, para após serem novamente desalojadas. O governo sequer havia avisado os administradores do local de que as famílias seriam encaminhadas para lá. Desse modo, Maria, com apenas um mês de idade, já sofreu a violência do Estado e foi desalojada duas vezes em seu curto tempo de vida. Já Rosa teve a infelicidade de passar por três reintegrações de posse e perder seus bens por três vezes, durante a luta pelo direito à moradia. Os indígenas que moravam na ocupação tiveram não só sua moradia e pertences perdidos, como também seu artesanato, que é a base de sua renda, acarretando em ainda mais prejuízos financeiros.

Em um país no qual as pessoas pobres são as que pagam proporcionalmente mais impostos, o Estado, que as deveria proteger e servir, nega seus direitos e as violenta diariamente. Felizmente, a população de Porto Alegre se mostrou consciente dos complexos problemas humanos que enfrentamos enquanto sociedade, dos direitos sociais que a Constituição Federal de 88 consagra, e do caráter não absoluto da propriedade, que está sempre condicionada ao exercício de sua função social. A solidariedade demonstrada às pessoas da ocupação é um alento em meio à barbárie e à banalização da vida que presenciamos em episódios como esse.

As famílias foram abrigadas e recebidas pela Ocupação Mulheres Mirabal, onde suas necessidades, negadas pelo governo, foram atendidas pela comunidade. Em apenas um dia mais de mil pessoas apoiaram as famílias com doações materiais e financeiras, além de formarem uma rede de repercussão local e nacional da notícia. Ressalvamos que a acolhida pela Ocupação Mirabal, cuja função é o estabelecimento de um Centro de Referência para mulheres em situação de violência, também se deu em virtude da grande quantidade de mulheres e crianças em situação de vulnerabilidades que foram despejadas da Lanceiros Negros. Entretanto, tal abrigo deve ser provisório, pois não pode, vez mais, o Estado se eximir de seu dever de conceder moradia digna a tais pessoas, direito fundamental preconizado pela Carta Magna e pelo Estatuto das Cidades, os quais inclusive prevêem a desapropriação de imóveis que desatenderem a função social da propriedade. Morar dignamente é um direito humano. As mulheres, para além de grandes lideranças das famílias e dos movimentos sociais, são prioritárias nas políticas habitacionais. E todas as pessoas trabalhadoras que na Lanceiros Negros residiam, todas as crianças já matriculadas em escolas da zona central, não merecem acesso aos serviços oferecidos no centro da cidade? Essas pessoas somente podem viver longe das vistas das instituições, nas periferias da cidade? Essas pessoas não dispõe do direito à cidade?

O município de Porto Alegre tem um déficit habitacional de 75 mil casas, para aproximadamente 400 mil pessoas, e ao mesmo tempo, tem aproximadamente 6 mil imóveis estaduais e 50 mil outros imóveis vazios. Frente a esse cenário social caótico de responsabilidade do governo, o Secretário de Obras, Saneamento e Habitação do estado declarou não estar inteirado do assunto, quando questionado sobre a ação perpetrada na Lanceiros Negros. Ao mesmo tempo, é sabido que a juíza Aline Santos Guaranha, que autorizou a desocupação imediata e violenta, recebe além do seu salário, um auxílio moradia de R$ 4.377,73, ambos pagos com dinheiro público. Sabe-se também que a desastrosa ação é de responsabilidade não só do governador do estado e da juíza em questão, como do secretário de segurança pública, Cesar Schirmer. Diante de tantos absurdos e descumprimentos da lei, exigimos: 1. A reparação moral, material e patrimonial das pessoas afetadas; 2. A garantia de moradia digna para as 70 famílias da Lanceiros; 3. O fim do imoral auxílio moradia para magistradas/os; 4. A exoneração de Cesar Schirmer; e 5. O impeachment do governador José Ivo Sartori.

Por fim, ressaltamos que os retrocessos sociais, a crescente violência policial e a criminalização dos movimentos sociais assombram a todas as pessoas e só podem ser combatidos e superados com a união cada vez maior das forças progressistas, tanto em redes virtuais, mas principalmente, de forma física, contínua e orgânica. Sabemos que diariamente famílias são expulsas de suas casas das mais diversas formas, inúmeras outras ocupações estão também ameaçadas de reintegração a qualquer momento, e, se tamanha brutalidade ocorreu no centro da cidade, na presença de deputados e diversas câmeras, o que poderá acontecer na periferia ou em locais afastados, se não estivermos em vigilância e em resistência? É importante ainda lembrar que quanto mais pessoas estiverem presentes fisicamente em momentos de tensão como o que ocorreu, mais proteção podemos oferecer, garantindo a atenuação das violações de direitos ocorridas. E até nesse aspecto o Estado foi violento, isolando várias quadras no entorno da Ocupação e impedindo à força a aproximação de apoiadoras/es. As manifestações que se dão em decorrência do golpe em curso e contra as reformas são fundamentais e contam com milhares de participantes, mas é necessário que o mesmo contingente de pessoas esteja disposto a se mobilizar em prol da luta pela terra, pela reforma urbana, por moradia adequada nos centros das cidades e contra a especulação imobiliária, pois a disputa do espaço é fator estruturante para todos os demais, a afeta diretamente os mais pobres, que já vivem em condições precárias de trabalho, como terceirizados, sem carteira assinada e sem aposentadoria.

O desumano despejo da Lanceiros Negros teve como efeito positivo inesperado a aproximação de pessoas indignadas com tanta injustiça e dispostas a lutar, e é nesse sentido que convocamos todas e todos a permanecerem mobilizadas/os e unidas/os, na formação de um Comitê Permanente de Solidariedade Revolucionária. À luta!

Porto Alegre, 18 de junho de 2017.

MANIFEST OF THE COMMITTEE OF PERMANENT REVOLUTIONARY SOLIDARITY TO LANCEIROS NEGROS

We came here to manifest our repudiation of the truculent military police action that occurred in June 14th, by decision of governor Jose Ivo Sartori (PMDB party), in the fulfillment of the mandate of reintegration of possession of the occupation Lanceiros Negros. This occupation was constituted over a year and seven months ago at a state building which was abandoned for more then 10 years in the Downtown of Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil), and was home of 70 families in social vulnerability situation, therefore legitimately fulfilling the social function of that property. The families that lived there were violently displaced, in a cold night, without being given any alternatives. Furthermore, they weren’t guaranteed fundamental constitutional rights, not before, when they needed residence, not during the moment of reintegration. It’s important to highlight the fact that inside the building, there were people with disabilities, pregnant women, carrying infants and even a 1 month old, just born baby that could only watch while the police apparatus burst open the door of their home, without the presence of female officers or the Tutelary Council, in violation of the judicial decision that determined the reintegration. We won’t tolerate the fact that the strategy used by the military police to force the vacating of the Lanceiros building was the same used to contain prison riots. This makes us question ourselves: did the families that lived there offered that much risk to the public power?

The action that forced the residents to vacate the building happened just two days after the judicial decision, which not only authorized the use of police force but that it could occur out of business hours by basing itself on the upkeep of urban order. Ironically, the order was disturbed by the police action the day before a holiday, and will keep being disturbed by the aggravation of urban/traffic conflict and by the violence of all the issues that derive from the treatment of a complex social problem as a simple police matter. It’s important to also emphasize not only how rapid was the realization of this action but the fact that it came about at night, the day before a holiday in the way that there wouldn’t be time for a large social mobilization in support of the occupation.

Previously, a public court hearing was summoned, at the legislative assembly, about the situation and in a sadistic manner the police action to vacate the building was scheduled to the same time of the hearing. Around 7:20 PM, the shock troop initiated the the act, already in offensive formation, in a way that the state deputies and the others attending the hearing left and went to the occupation in a hurry. The attempts of negotiations and reconciliation with the judicial officers, even with the mediation of estate deputy Jeferon Fernandes, in the attribution of president of the Human Rights Comitee was abruptly stopped by immediate use of police violence. The police, promptly, used disproportional force, firing cores of rounds of teargas and flash bombs against the few people who were mobilized in front of the occupation. In that moment, 8 people were arbitrarily arrested and subjected to physical torture and other violations of rights, being among them the deputy Jeferson Fernandes.

The military brigade used the patrol wagon to prise open the door and threw teargas bombs inside the building, where the residents were sheltered. The families were thrown in a cold gym that lacked any kind of infrastructure (without light, water, or even mattresses for the children). The families were only allowed to stay there for the next 24 hours, along with their belongings and were treated like objects, just so they could be thrown out in the streets again. The government hadn’t even warned the owners of the gym that were being sent there. Thereby, the little Maria, a one month old toddler, has already suffered the violence of the State and was dislodged two times in her brief period of existence. Miss Rosa had the great misfortune of enduring three reintegrations of possession and losing her belongings for three times during her fight for the right of shelter. The indigenous people, who inhabited the building, had their residence and their belongings lost. Not only that, but their craftwork, which is the base of their income, was disposable, leading to even more financial damage.

In a country where poor people are the ones who proportionally pay most taxes, the State, that should protect and serve, denies their rights and violates them daily. Fortunately, the population of Porto Alegre showed awareness to the complex human problems we face as a society. As seen in the social rights established by the Constitution of 88, the nature of property is not absolute because it is always attached to the exercise of its social function.The solidarity shown to the people of Lanceiros Negros is an encouraging act in the middle of such barbarism and banalization of life that was witnessed in a case like this.

The families were sheltered in another occupation (Ocupação Mulheres Mirabal), where their needs, denied by the government, were attended by the community. Within only one day, more than a thousand people showed their support for the families with material and financial donations, and even creating local and national network of the news repercussion. We would like to point out that the shelter given by the Ocupação Mirabal, which it’s function is the establishment of a reference center for women in situation of vulnerability, can only be sustained for a short período of time because the State must not exclude itself from it’s responsibility of providing decent residency for those who are less privileged. It’s a fundamental right established by the Carta Magna and by the Statute of Cities, which include the disappropriation of properties that don’t attend it’s social function. To live with dignity is a human right. Those women, besides the great leadership of the families and the social movements, have priority in habitational policies. So every worker who lived at Lanceiros Negros, every children who had already been enrolled in schools don’t deserve access to the neighborhood services? These people can only live far away from institutions in the suburbs? These people aren’t allowed to live in a city?

Porto Alegre city has a 75 thousand housing deficit to almost 400 thousand people. At the same time, the government has 6 thousand uninhabited properties, added to another 50 thousand empty buildings. We’re in a chaotic social moment because the government doesn’t assume the responsibility of the police procedure that occurred last Wednesday, 06/14, at Lanceiros Negros. Aline Santos Guaranha is the judge who authorized the eviction order in a violent way. She receives a R$ 4.377,73 ($1.3255 US dollars) house subsidy by the government, besides her salary, both paid with public money. We know that this disastrous situation is the governor and government’s public secretary Cesar Schirmer responsibility. With this in mind, we demand: 1. A moral, material and patrimonial compensation for all the damage caused to those people; 2. A decently house to those 70 families from Lanceiros Negros; 3. Suspend the immoral/unethical house subsidy to magistrate; 4. Resignation of Cesar Schirmer; and 5. The impeachment of the governor José Ivo Sartori.

In conclusion, we emphasize that the socials setbacks, the growing of police violence and the fact the law is criminalizing social movements are starting to haunt the citizens and we can only reverse the situation by getting all the progressive forces together, such as those on the internet and also in person. Families are getting pulled off of their homes daily. Countless occupations are threatened by the state. At any given moment, these other occupations could become a target of the military police by the use of a mandate of reintegration of possession. If we witnessed this level of violence at downtown, in the presence of deputies and cameras, what could happen in far way neighborhoods if we don’t stand in a position of surveillance and resistance? It’s important to highlight that the more people are present in moments of tension, how it occurred, the more protection we can offer, ensuring the non attenuation of violations of human rights.

Even in that aspect the state was violent, isolating inumerous blocks on the surroundings of the occupation and preventing by force the approximation of supporters (this occurred next to the Theatre São Pedro). Those manifestations that happened as a result of an ongoing coup in Brazil, against the changes in the retirement work program, are fundamental and depend on millions of supporters. However, it’s necessary that the same people who support this cause stay focused to mobilize themselves for the fight for land, for the urban reform, for decent housing at downtown and against the speculation of the real state. The fight for space is an important factor for all and it affects directly the less privileged, who already live in a poor condition of work and suffer with work outsourcings, without having a “work passport” (it’s a way of protecting the rights of the worker) and without the retiring program.

The inhumane eviction of Lanceiros Negros has had, as an unexpected positive effect, a getting together of people who won’t tolerate such injustices and are willing to fight. In this way we summon everyone to stay mobilized and united in formation of a Committee of Permanent Revolutionary Solidarity. FORWARD!

Porto Alegre, June 18h of 2017.