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Foto: Carl de Souza/AFP

Por Marcelo Gomes Ribeiro
Professor Adjunto do IPPUR/UFRJ
Pesquisador do Observatório das Metrópoles

A crise provocada pelo coronavírus explicitou o racha já manifestado há alguns meses entre os segmentos sociais e políticos que endossaram o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, por ele ter se comprometido com as reformas do Estado, mesmo que isso fosse conduzido em meio a um conjunto de barbaridades manifestadas pelo próprio Presidente. Até a aprovação da reforma da previdência esses segmentos de apoio não tinham qualquer constrangimento em se associar ao governo Bolsonaro. Depois de aprovada essa reforma e de perceber que os outros temas teriam dificuldades de entrar em pauta no debate público, como a reforma tributária e a reforma administrativa, aqueles apoiadores começaram a abandonar o barco, agora constrangidos com o comportamento do Presidente. Em meio a essas mudanças de atuação política, é necessário termos bem claro que estão em disputa dois de projetos que estão no mesmo espectro político. Por isso, é importante conhecê-los.

Há dois projetos em disputa no Brasil que se localizam no espectro político da direita. Esses dois projetos estão hegemonizando o debate público no Brasil, apesar das forças políticas do campo democrático e progressista de esquerda em contrário. A diferença entre eles poderia ser caracterizada como um sendo representativo da direita liberal e o outro da direita conservadora. O primeiro é mais aberto às pautas relativas às questões de valores, por isso reconhece as desigualdades de gênero, as desigualdades raciais e as discriminações à população LGBTQI+, é favorável à liberalização das drogas (pelos menos algumas delas, como a maconha), tende a concordar com a maioridade penal a partir dos 18 anos de idade, mas tem dificuldade em aceitar a legalização do aborto. O segundo projeto político é conservador porque não reconhece nenhuma das questões colocadas acima, seus integrantes são misóginos, racistas, homofóbicos, contra a legalização das drogas e do aborto e favoráveis à redução da maioridade penal.

Apesar das diferenças no campo dos valores, esses dois projetos políticos têm em comum serem liberais na economia, sem qualquer compromisso com algum projeto de desenvolvimento do país, e serem antidemocráticos. Antes de aprofundar cada uma dessas características comuns desses dois projetos políticos, convém identificá-los. A direita liberal está constituída pela grande mídia-imprensa do país, por parte do chamado mercado financeiro, das principais federações da indústria, por segmentos-chave do Judiciário, do Ministério Público e do Executivo, e são principalmente representados pelo PSDB, DEM, PPS etc., que muitos insistem em chamar de centro, a meu ver de modo equivocado, servindo apenas para confundir o debate político brasileiro. A direita conservadora é constituída pelos ruralistas, pela maioria das igrejas evangélicas e parte da igreja católica, pelas polícias militares e parte das forças armadas, está conseguindo adentrar mais no Judiciário, no Ministério Público e no Executivo, e tem sido representada pelo Bolsonarismo. Contra as pautas do campo democrático e progressista de esquerda, esses dois projetos políticos caminharam de mãos dadas desde o resultado das eleições presidenciais de 2018 até a aprovação da reforma da previdência, ocorrida no ano passado. E agora o que se vê é o confronto aberto entre eles, como se esses fossem os únicos projetos em disputa e, ainda, como se eles fossem muito diferentes entre si.

Os dois projetos políticos de direita assumem o liberalismo econômico como única doutrina econômica explicativa do funcionamento do mercado. A partir da perspectiva de que as forças do mercado são autorreguláveis, são contra a intervenção do Estado na economia. Mas a oposição à intervenção do Estado chega a ser tacanha para muitos dos que defendem aquela premissa. Tacanha porque não consideram a atuação do Estado mesmo em setores que são essenciais para a sociedade, que podem contribuir para o seu desenvolvimento econômico ou mesmo para garantir a sua coesão social. Esses posicionamentos levam a compreensão de que as áreas fundamentais da educação, da ciência, da saúde, e até mesmo da segurança pública podem ficar a cargo da iniciativa privada. Além disso, colocam-se contra as políticas de assistência social, porque consideram que as pessoas precisam garantir suas condições de sobrevivência somente a partir do seu mérito. Por isso, são contra o Bolsa Família, as políticas de renda mínima e etc. De modo geral, os defensores do liberalismo econômico no Brasil, representados por esses dois projetos políticos, orientam-se na defesa dos interesses dos grupos sociais que podemos denominar de elite econômica, como os agentes do mercado financeiro e os grandes empresários da indústria, dos serviços e do agronegócio. Não importa para esses dois projetos políticos que as desigualdades sociais sejam enormes e que têm se elevado, que a informalidade chega a atingir quase a metade da força de trabalho, que as formas de moradia se caracterizam pela precariedade para mais de 25% da população que vivem nos grandes centros urbanos. O que importa é que o mercado funcione de modo a garantir rentabilidade para a elite econômica e que essa rentabilidade possa ser cada vez mais imediata.

Assim, compreendemos que a elite econômica, representada pelos dois projetos de direita, não tem qualquer projeto de desenvolvimento para o país. Nem projeto de desenvolvimento econômico, tampouco projeto de desenvolvimento enquanto Estado-Nação, de um povo soberano. Nossa elite econômica é arcaica, provinciana e ignorante. Um projeto de desenvolvimento econômico requer que a economia seja pensada de modo estratégico a garantir não apenas o crescimento econômico, mas que esse crescimento seja sustentado em atividades econômicas que estejam ancorados no setor produtivo do país, além disso, que esse processo possa contribuir para a melhoria das condições de vida da população em geral. E isso é fundamental para retroalimentar a própria dinâmica econômica que passará a requerer mais e mais dos agentes consumidores que, para tanto, precisam ter renda para que esse processo ocorra. Quanto melhor é a qualidade de vida das pessoas, maior se torna seu potencial de consumo. Mas, para isso, é necessário enfrentar as mazelas sociais historicamente presentes na sociedade brasileira. Isso significa constituir um sistema de proteção social, porém para a nossa elite econômica isso é um horror. Para ela, é melhor garantir a superexploração do trabalho, manifestada nos baixos salários, na informalidade e no desemprego, e rentabilidades imediatas. Por não ter projeto de desenvolvimento econômico para o país, faltam-lhes também projeto de Estado-Nação.

Por estes motivos, não é difícil perceber que para garantir o funcionamento do mercado de acordo com aqueles preceitos, esses projetos políticos de direita são também antidemocráticos. O que importa é assegurar na esfera política-institucional representantes partidários que estejam de acordo essas concepções econômicas, custe o que custar. Por isso, esses projetos políticos sempre demonizaram a política e os políticos, construindo uma narrativa de que os nossos problemas são decorrentes tão somente do fato de que a população não sabe votar, sem problematizar que esse não saber votar colabora para a manutenção desses projetos políticos de poder. São contrários ao financiamento público eleitoral e reivindicam que esse financiamento possa ser feito por empresas, o que favorece os políticos e partidos afinados com os interesses da elite econômica. Tratam os adversários políticos como inimigos, por isso não se incomodam que as eleições sejam manipuladas, desde que essas manipulações favoreçam esses projetos políticos. Não surpreende, portanto, que retirar da disputa eleitoral o candidato com a maior intenção de votos em todas as pesquisas e que poderia ser eleito ainda em primeiro turno não seja motivo de incômodo, pelo contrário, mesmo que as justificativas dessa retirada fossem contestáveis, o que importava era garantir a direita no poder. O problema é que no campo da direita há também divergências.

Estas divergências estão mais acirradas nos últimos meses e se intensificaram a partir do comportamento errático do Presidente da República em relação ao coronavírus, o que tem contribuído para que vários segmentos da sociedade que o apoiaram nas eleições de 2018 busquem o seu distanciamento. Esse distanciamento, entretanto, tem o sentido de demarcar as diferenças existentes em relação ao Presidente da República e ao projeto conservador que ele representa, mas, ao mesmo tempo, de garantir aquilo que é o princípio integrador da direita deste país, ou seja, um modelo econômico liberal e excludente e um projeto político antidemocrático – mesmo em momento que o próprio governo tenha que socorrer a população mais vulnerável contra os efeitos do coronavírus. Inclusive, a perspectiva de médio e longo prazo apontada pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, na solenidade de anúncio das medidas de socorro à população foi de aprofundamento das reformas do Estado. Ou seja, passado o período de crise provocada pelo coronavírus, está no radar o aprofundamento do projeto da direita. A questão que se coloca, e que está em disputa, é se esse projeto será conduzido pela direita conservadora ou pela direita liberal. Não é por acaso que o impeachment passou a ser pautado pela grande mídia-imprensa.

Caberá ao campo democrático e progressista de esquerda saber aproveitar essa oportunidade política que está sendo dada pela crise provocada pelo coronavírus. Essa crise tem demonstrado a importância do SUS, um sistema público de saúde com enraizamento em todos os municípios brasileiros e com competência sanitária indiscutível, tem demonstrado a importância dos centros de pesquisas, como a Fiocruz e as instituições de ensino superior públicas, tem demonstrado as enormes desigualdades sociais existentes no nosso país (que o mercado é incapaz de solucionar), assim como as mazelas sociais e urbanas que estão submetidas a maioria da nossa população. O campo político de esquerda progressista e democrático tem a oportunidade de estabelecer outro nível de diálogo com a sociedade, justificando a importância do Estado não apenas para o desenvolvimento econômico do país, mas também para a garantia da coesão social da Nação. Nesse momento, é preciso furar a barreira do debate público hegemonizado atualmente pela direita, dado que a própria direita não tem justificativa para políticas públicas que contrariem a sua perspectiva ideológica.