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Luciano Fedozzi¹

Em grande parte das metrópoles brasileiras, o final do século XX e as primeiras décadas do século XXI foram marcados por intensas transformações econômicas, políticas e sociais, que influenciaram a lógica de produção das cidades. Em Porto Alegre, essas mudanças aparecem de forma mais intensa em meados dos anos 2000, quando o planejamento urbano passa a ser mais fortemente orientado para acelerar a apropriação privada do espaço urbano. Esse novo regime urbano aparece em consonância com os processos de financeirização mundial do capitalismo e, no caso brasileiro, com a inflexão ultraliberal das políticas a partir de 2016 (RIBEIRO, 2020), favorecendo, na escala local, a implementação do modelo conhecido como “empreendendorismo urbano” e citymarketing (HARVEY, 1996; ARANTES et al, 2000).

As transformações da Orla do Guaíba estão incluídas nesse roteiro e sobre ela recai um grande interesse para a expansão da fronteira de acumulação capitalista urbana e sua transformação na ponta de lança do projeto mercadológico de marketing da cidade. Cabe analisar as razões dessa transformação radical e suas consequências, à luz da ideia do direito à cidade (LEFEBVRE, 2009), historicamente identificada com a busca de uma ordem urbana justa, democrática e sustentável.

Fonte: Melnick Even (Divulgação). Disponível em: https://melnick.com.br/pontal/

As mudanças aceleradas da urbanização em Porto Alegre representam a implementação de um novo regime urbano cada vez mais caracterizado pela transformação da cidade em “máquina do crescimento”, definida pela situação em que uma coalizão, interessada em maximizar a valorização capitalista do espaço, passa a dominar o tipo, a amplitude e a direção do desenvolvimento urbano. Já descrita por inúmeros estudos internacionais, a ideia da cidade como “máquina de crescimento” designa um conjunto de transformações institucionais e territoriais que passam a orientar o desenvolvimento urbano para adequá-lo o máximo possível a uma relação ótima entre capital e a estrutura urbana (MOLOTCH, 1976). Tal relação apresenta-se fortemente no interesse e na ação do capital imobiliário que, juntamente com outros capitais de grupos econômicos dominantes, atuam articulados em distintas escalas nas disputas pelo espaço e suas múltiplas formas de valorização.

A partir da reestruturação produtiva e da globalização neoliberal, vem sendo desenvolvida a ideia de que as cidades precisam ser inseridas na lógica de expansão internacional do excedente capitalista. Para isto o objetivo maior dos atores dominantes na escala local é o de transformar as formas de organização e distribuição da produção imobiliária, seja pública ou privada, em valorização capitalista do espaço. Nesta inserção, as grandes metrópoles precisam se transformar em empreendimentos capazes de gerar atratividade de capitais nacionais e estrangeiros, sendo as cidades “vendidas” como um bom empreendimento. Essa transformação da cidade em mercadoria requer mudanças políticas e institucionais capazes de adequar o território da cidade e sua legislação urbana ao modelo empreendedor, que passa a ser entendido como o único possível, além de ser supostamente capaz de beneficiar todos os/as moradores/as.

Nesse novo ciclo da construção do espaço, a gestão do planejamento urbano é baseada na exploração do uso potencial do solo e no entendimento que o empreendedorismo da cidade seria a solução para a sua falta de desenvolvimento econômico e social. O empreendedorismo urbano exige que a administração pública da cidade seja transformada em formas utilizadas na gestão empresarial privada, já que o Estado deve se colocar como facilitador dos negócios que passa a orientar o objetivo do desenvolvimento. A partir de coalizões, econômicas, sociais e midiáticas, são adotadas medidas de liberalização e flexibilização das regulamentações urbanas e o incentivo das diversas formas de conceder ao mercado privado a função de comandar e executar as políticas públicas. O papel do Estado, em sua fração local, passa a ser subsidiário ao dos mercados. Em geral, essas transformações vêm acompanhadas da necessidade da coalizão dominante de combater a dissidência crítica e a pluralidade do tecido social e político da cidade, a fim de impor a ideologia do “patriotismo da cidade”, onde demandas para o debate público sobre projetos urbanos são condenadas e classificadas como sendo “contra o desenvolvimento” e “contra a cidade”.

Uma das formas de operar estas transformações é a adoção de Grandes Projetos Urbanos (GPU), que impactam áreas já estruturadas, a serem remodeladas e refuncionalizadas, ou áreas a serem incorporadas ao crescimento e à valorização. É o caso da Orla do Guaíba, um extenso território de cerca de 72 km que passou a ser alvo da “máquina de crescimento” e do modelo empreendedorista de citymarketing, comandado pela coalizão que dirige a metrópole. A margem do Guaíba, berço natural e histórico de Porto Alegre, vem sendo objeto de intensa e acelerada transformação por projetos de intervenção pública e privada (Figura 1).

Figura 1 – Empreendimentos, data de implantação e caráter do projeto na Orla do Guaíba. Fonte: baseado em SIQUEIRA (2019), p. 78.

Nesse processo acelerado dos últimos anos, a intervenção do poder público local, como agente ativo e impulsionador da coalização pró-crescimento, está orientada menos pela integração sustentável e socialmente equilibrada da área à cidade e mais para efetivar a sua incorporação ao novo ciclo de expansão e valorização do território produzido na cidade. São projetos que constituem uma nova frente de valorização daquele território, beneficiado em larga medida pela ação (des)regulatória e pela entrega à exploração e apropriação de agentes privados (Figura 2). É o caso emblemático do empreendimento do Pontal, na antiga área do Estaleiro Só, projeto polêmico que motivou um raro plebiscito na cidade para decidir sobre a permissão de residências na Orla do Guaíba, que acabou sendo vetado.

Mapa da Orla. Fonte: Rodrigues (2019, p. 14).

Contrariamente ao que vem sendo propalado, a forma atual de ocupação e uso intenso da Orla não é um jogo de ganha-ganha, onde supostamente toda a população ganharia. As formas de privatização do território que vêm sendo adotadas baseiam-se no suposto da mercantilização da relação com o espaço. Esse modelo é produtor de desigualdades socioespaciais e promotor do acesso privilegiado ao patrimônio natural comum, além de aumentar a agressão ambiental – características fortes da ordem urbana brasileira. Por isso, a implementação do modelo vem acompanhada de relações que negam o debate público sobre a cidade, estigmantizando seus atores, e do enfraquecimento ou supressão da participação nos destinos comuns. Apesar disso, é possível perceber que existem muitas formas de resistência pautadas pela proposição² de outro modelo de desenvolvimento sociourbano orientado para uma relação socialmente equilibrada e ambientalmente sustentável na relação da cidade com a Orla do Guaíba.

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¹ Professor Titular de Sociologia da UFRGS. Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

² Veja-se o caso do Projeto Cais Cultural, alternativa apresentada para a revitalização do Cais Mauá.  Cf. Proposta de ocupação do Cais do Porto – UFRGS e Coletivo Cais Cultural Já. Porto Alegre,  22 nov. 2021. Disponível em: https://propostacaisdoportoalegre.blogspot.com/p/diretrizes-gerais-cais-cultural.html Acesso em: 26 jul. 2022.

REFERÊNCIAS

ARANTES, O. (org.).; VAINER, C. (org.).; MARICATO, E. (org.). A cidade do pensamento único – desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2009 [1968].

HARVEY, D. Do gerencialismo ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço e Debates, v. 16 I, n. 39, 1996, p.48-64.

MOLOTCH, H. The city as a growth machine: toward a political economy of place. American Journal of Sociology, Chicago, v. 82, n. 2, p. 309-332, set. 1976.

SIQUEIRA, L. F. Democracia e cidade. Da democracia participativa à desdemocratização na experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Tese de doutorado), 2019.

RIBEIRO, L. C. Q. As metrópoles e o Direito à Cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira. Texto para Discussão, nº 12. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, 2020.

RODRIGUES, M. B.  A Orla do Guaíba em transformação: Pontal do Estaleiro, o Grande Projeto Urbano da Orla Central. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Geografia) – Instituto de Geociências, UFRGS, Porto Alegre, 2019. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=001113498&loc=2020&l=7141155594687581. Acesso em: 28 jul. 2022.