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As instituições de Segurança Pública no Brasil funcionam sob a lógica do segredo

By 24/08/2011janeiro 29th, 2018Entrevistas

Quais seriam as saídas para a questão da violência nas grandes cidades brasileiras. Em entrevista ao Observatório das Metrópoles, a coordenadora executiva do NUFEP/UFF e pesquisadora do InEAC, Ana Paula Miranda, aponta a consolidação de sistemas de inteligência como uma das soluções para a melhor eficiência das policias brasileiras. Responsável pela sistematização dos dados no Instituto de Segurança Pública (2003-2008), Ana Paula que tem coordenado uma pesquisa pelo InEAC sobre gestão da informação afirma de forma categórica: “Não existe planejamento por parte das instituições de Segurança Pública no Brasil”.

A antropóloga Ana Paula Mendes de Miranda é professora do Departamento de Antropologia e do programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF; coordenadora executiva do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF) e pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC). Há mais de uma década ela desenvolve pesquisas sobre a produção, sistematização e acesso à informação por parte das instituições públicas, com foco na consolidação de banco de dados para o planejamento de políticas públicas, sobretudo na área de Segurança.

Em 2003, Ana Paula assumiu a Coordenação do Núcleo de Pesquisa em Justiça Criminal e Segurança Pública (Nupesp), do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro, vindo em 2004 a assumir o cargo de Diretora Presidente do Instituto, onde permaneceu até 2008. Durante sua gestão coordenou a organização de um banco de dados a partir dos registros da Polícia Civil fluminense. Nesse período, foi realizada a pesquisa Perfil dos Municípios Fluminenses: Segurança Pública – uma análise dos registros de ocorrência policiais do Rio de Janeiro, nos anos 2002 a 2004. O estudo é um dos primeiros no Estado a sistematizar as informações sobre segurança e território.

A passagem da antropóloga pelo ISP representou um momento importante para as políticas públicas de segurança, pois destacou a questão da informação como ferramenta central para a eficiência das Polícias e da Justiça Criminal, ao mesmo tempo em que explicitou a ausência de serviços de inteligência por parte dessas instituições.

Em seguida, a pesquisadora coordenou o Núcleo de Informações sobre Segurança e Violência do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (2008). Ao ingressar na Universidade Federal Fluminense como professora do Departamento de Antropologia, Ana Paula deu continuidade ao trabalho que realizava como pesquisadora colaboradora junto ao NUFEP; dentre os projetos de pesquisas mais recentes, destaque para Desenvolvimento e análise de banco de dados com os registros relativos aos atendimentos realizados pelas Guardas Municipais de São Gonçalo e de Rio Bonito. Segundo a professora, esse projeto representa a primeira colaboração por parte do InEAC a fim de produzir uma base de dados nacional sobre Segurança Pública. Uma tarefa que está longe de terminar, mas que começa a ser desenvolvida.

Nesta entrevista, Ana Paula Miranda conta sobre a sua experiência na direção do ISP e as barreiraspolíticas e institucionais para a produção de sistemas de inteligência no estado do Rio de Janeiro; comenta a ausência de políticas para a gestão da informação na área de Segurança Pública e Justiça Criminal, a falta de legislação específica e muitos outros desafios para o planejamento em segurança.

Ana Paula Mendes de Miranda, coordenadora executiva do NUFEP e pesquisadora do InEAC

Entrevista:

No ano de 2003, você entra no Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro com a função de coordenar a parte de pesquisa e sistematização de dados sobre segurança. Qual era a realidade naquele momento? E como as instituições de Segurança Pública planejavam suas ações através da gestão de informação?

Ana Paula: Quando comecei a trabalhar no ISP havia alguma coisa estruturada. Desde 1999 havia uma tentativa de organização de dados a partir dos registros da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Na verdade, se a gente retroage um pouco mais vemos que esse processo começou na época do Nilo Batista [secretário de Polícia e Justiça durante o Governo Leonel Brizola], esse foi o primeiro movimento de estruturação dessas informações.
Em 1999, quando Anthony Garotinho é eleito, há todo um movimento entre pesquisadores e profissionais de segurança sobre a necessidade de organização das informações. Eu não morava no Rio, morava em São Paulo; mas lembro que participei de algumas dessas reuniões. A Jaqueline Muniz era coordenadora de pesquisa do Instituto de Segurança Pública e tenta fazer uma primeira reestruturação. Mas com a saída do Luiz Eduardo do governo esse processo é desmontado. Quando o Michel Misse assume a coordenação de pesquisa, a convite de Jorge da Silva, que assume a coordenação de segurança, passa três anos lutando para ter acesso aos dados, mas encontra fortes resistências.
Quando eu entro no ISP em 2003, nos três primeiros meses em que estava na coordenação de pesquisa também não tive acesso a nenhum dado. Nesse período, ocorreram uma série de crimes de grande repercussão no Rio, como os incêndios a ônibus [num único dia em fevereiro aconteceram 25 ataques a ônibus em 20 bairros, no dia que ficou conhecido como Segunda-feira Sem Lei]. O caso mais grave ocorreu em Botafogo, onde 13 pessoas ficaram feridas, gerando muito impacto no início do governo da Rosinha. A governadora então chamou o Secretário de Segurança, e solicitou um relatório sobre os dados relativos a segurança. O secretário chama o Jorge da Silva, então presidente do ISP, e a mim para pedir o relatório sobre os dados. Mas todos sabiam que naquele momento nós no ISP não tínhamos acesso a eles.
Nesse momento, o secretário de Segurança é substituído e quem entra é o Garotinho – ex-governador e marido da governadora. E eu nunca vou me esquecer uma coisa que ele disse e que é esclarecedor sobre esse ambiente: “Eu precisei virar secretário de Segurança pra ter acesso aos dados, porque quando eu era governador eu mandava, mas nada acontecia”. O Jorge da Silva trabalhava no governo do Garotinho, o Michel Misse trabalhava vinculado ao Jorge; todo mundo pedia os dados, e as Polícias enrolavam, enrolavam e não passavam os dados, não permitiam o acesso. Não havia uma ordem política do governador para não dar os dados; pelo contrário, havia uma ordem para dar, mas havia uma resistência dissimulada, que criava um jogo de empurra-empurra. Este fato é importante porque é revelador de como esta questão é complexa, as pessoas acham que basta o governador mandar, o secretário decidir, mas não é tão simples assim. Muitas vezes o governador nem sabe o que está acontecendo efetivamente, ou até sabe, mas não consegue intervir. Essa miríade de relações que existem nas instituições se configura com o problema mais difícil a ser enfrentado. Esse é o grande obstáculo: como os policiais controlam o acesso à informação.
Depois que os registros foram disponibilizados ficou claro que constatei o núcleo de pesquisa não tinha estrutura nenhuma para trabalhar aquelas informações. No ISP era eu e mais duas pessoas na pesquisa, computadores velhos e sem softwares adequados para trabalhar os dados. Começamos uma disputa institucional para viabilizar um mínimo de estrutura para começar a trabalhar. Foi um período de estruturação do ISP, de diálogo com as universidades em busca de parcerias e com a Polícia. Há que se destacar que o apoio que a FAPERJ [Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro] foi fundamental. Outro aspecto positivo foi que naquele momento havia o projeto da Delegacia Legal, que estava sendo ampliado, voltado para a informatização e geração de dados. Num primeiro momento a Polícia Civil ficou com dois bancos de dados – Delegacia Legal e Asplan – mas depois a unificação permitiu que tivéssemos a senha de acesso dos dados totais da Polícia Civil.


Você foi convidada a coordenar o setor de Pesquisa do ISP e não tinha acesso aos dados? A questão do acesso às informações se configura com um primeiro problema para o planejamento da Segurança Pública no País?

Ana Paula: A primeira coisa para pensar a estruturação e organização desses dados é o acesso a eles. Sem o acesso aos dados não é possível fazer qualquer tipo de trabalho. Para se ter uma idéia, até hoje não se tem acesso aos dados da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
E estou falando aqui de dados da Segurança Pública? Não. Estou falando dos dados provenientes de registros realizados pela Polícia Civil. Não existem dados sobre a área de Segurança Pública no Brasil. Não existem dados sobre as Guardas Municipais, a Polícia Federal, a Polícia Militar, os Bombeiros, não existem dados oriundos da Defesa Civil, não existem dados da Justiça. Então, estou falando de uma fonte de dados apenas; que tem sua importância é claro. Eu não estou desqualificando os dados da Polícia Civil, estou dizendo que não temos um dado estadual ou nacional sobre Segurança Pública.
Todo o esforço que foi feito no ISP durante o tempo que estava ali foi um esforço e uma disputa constante para ter acesso aos dados, para organizá-los. E o queríamos era construir chaves analíticas que nos possibilitasse dialogar com outros dados.

Durante a sua gestão no ISP foi realizado o projeto “Perfil dos Municípios Fluminenses: Segurança Pública”, cujo objetivo era analisar os registros de ocorrência policiais no Estado do Rio de Janeiro, no período de 2002 a 2004. Essa pesquisa pôde mostrar o nível dos serviços de inteligência e informação das instituições de Segurança Pública do Rio?

Ana Paula: Depois desse percurso, vem a pesquisa sobre o perfil dos municípios. O Garotinho sai e o Marcelo Itagiba assume a Secretaria de Segurança e reforça o pedido para organizarmos minimamente o perfil dos municípios por regiões. E a estruturação foi total, porque o primeiro grande levantamento que nós fizemos se referiu às áreas integradas de segurança pública [AISP], nele descobrimos que não havia delimitação clara de todas circunscrições policiais. O mapa que havia era cheio de buracos, com várias áreas de “sombra”, as quais não eram monitoradas por ninguém; e outras com sobreposição de circunscrições. Isso ocorre porque a divisão das áreas de atuação policial não tem nada a ver com planejamento, tem relação sim com uma história de ocupação da cidade do Rio de Janeiro, sua ocupação militar e divisão em freguesias.
Realmente, nesse contexto, a delimitação territorial precisava ser feita, porque as áreas dos batalhões da Polícia Militar não tinham relação com as áreas das delegacias de Polícia Civil, o que era um obstáculo ao funcionamento das AISP. A pesquisa sobre o perfil dos municípios surge dentro dessa estruturação; o nosso esforço naquele momento foi em direção a organizar as informações e sistematizá-las de alguma maneira para que pudessem ter cruzamentos possíveis. Outro objetivo das pesquisas era mostrar à imprensa e à Polícia como lidar com esses dados.

Ao demonstrar que não havia uma base de dados ficou claro que a Polícia Civil não tinha um serviço de inteligência e tampouco gestão da informação?

Ana Paula: Sim. A inteligência era entendida como realização de grampos telefônicos. Não se poderia falar de avaliação de eficiência, porque eficiência, eficácia, qualidade de serviços só existe se houver planejamento. E não existia serviço de inteligência por parte da Polícia para tratar os dados por meio da análise criminal. Não há uma cultura do uso de informação pública, o que é pior.

 

Mas as instituições de Segurança Pública continuam produzindo dados?

Ana Paula: Sim, elas produzem muitos registros. Mas não fazem nada com isso, porque elas continuam sendo pautadas pelo que sai na imprensa. E aí o que saí na mídia indica que é preciso policiar a zona Sul, que é a mais policiada da cidade. Agora, estamos sendo pautados pelas UPPs, temos dados de outras regiões indicando que há muitos problemas, mas isso não importa, o que é relevante está relacionado ao projeto do governo estadual. Dessa forma, para que a gente pense o uso de dados como planejamento, como serviço de inteligência, avaliação de metas etc., é preciso trabalhar com os dados sistematicamente; no entanto, isso continua não sendo feito para o conjunto do Estado do Rio.
É claro que isso é diferente do que encontrei quando entrei no ISP, porque naquela época havia o caos e não havia dados, não havia nenhuma estruturação. Atualmente, nós não temos o caos, o ISP continua produzindo dados, com alguma eficiência, mas com vários problemas ainda.

Quais bancos de dados existem atualmente sobre Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro?

Ana Paula: O banco de dados público é da Polícia Civil somente.

E qual é a sua avaliação sobre o trabalho com a gestão da informação do período em que você entrou no Instituto de Segurança Pública até hoje? Tivemos avanços na organização de banco de dados sobre segurança?

Ana Paula: Eu não posso falar em nome do ISP hoje; mas como pesquisadora da área eu acho que tivemos poucas mudanças depois que saí do Instituto. Porque eu saí e deixei um projeto montado, com financiamento da FAPERJ, vários bolsistas, para integração de dados da Polícia Civil com a Polícia Militar. Esse projeto não foi a lugar nenhum. Eu e minha equipe escrevemos esse projeto e tentamos, a duras penas, viabilizá-lo; na medida em que não funcionou e que eu saí da direção do instituto, continuei me dedicando a discutir o tema, mas com o foco na integração dos dados a partir de registros produzidos por Guardas Municipais.
Eu então fiquei um ano no Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, onde tentei pesquisar os registros da Guarda Municipal do Rio. Mas quando o Eduardo Paes foi eleito, fui exonerada e o núcleo de pesquisa do IPP foi extinto [Núcleo de Informações em Segurança e Violência]. Isso coincidiu com a minha  aprovação num concurso para o Departamento de Antropologia da UFF. Eu já estava envolvida na criação do InEAC, com uma proposta para trabalhar os dados da Guarda Municipal do Rio, mas com a mudança do meu vínculo institucional surgiu a ideia de realizar a pesquisa junto a Guarda Municipal de São Gonçalo, que já possuía parcerias com o NUFEP, e posteriormente, o município de Rio Bonito foi incluído no trabalho, como referência comparativa.

Existe alguma legislação específica para a publicização desses dados?

Ana Paula: Quando eu estava no ISP nós regulamentamos a publicação dos dados oriundos da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro [Decreto n. 36.872, de 17 de janeiro de 2005]. Existe legislação sobre isso em São Paulo, existe em Minas, mas não existe nenhuma legislação nacional. O que a Senasp [Secretaria Nacional de Segurança Pública] tentou fazer, mas não conseguiu, foi tentar criar alguns parâmetros de registro [Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal – SINESPJC], que alguns estados seguiram e outros não. E também se disse que a liberação de verbas seria condicionada ao envio de dados à secretaria. O que também funcionou em alguns casos e em outros não.
Então, não há uma política de gestão da informação para essa área. Há esforços, há várias pessoas pensando, demandando, discutindo, mas não há uma política pública. São pessoas da polícia, do meio acadêmico, da guarda municipal – há um grupo que considera importante, mas é um grupo pequeno. Em esfera nacional, a Senasp demonstrou essa preocupação, formulou uma política, porém não conseguiu implantar. E não me parece que seja por falta de interesse da secretaria, é porque isso é muito complexo.
Você encontra forças muito grandes contrárias a consolidação dessas bases de dados. Informação vale dinheiro em qualquer lugar no mundo. Na Polícia principalmente. Não basta a Senasp decidir, não basta fazer um decreto. É claro que isso é importante, pois se há um decreto que exige a publicação a sociedade civil pode cobrar. Quando eu saí do ISP, a divulgação dos dados atrasou; a imprensa caiu em cima e cobrou. Isso é fundamental, tem que acontecer sempre. A imprensa cumpriu um excelente papel neste caso.

A pesquisa sobre as Guardas Municipais de São Gonçalo e Rio Bonito, com a construção de um site e a organização dos dados, representa o primeiro passo da proposta do InEAC de produzir um banco de dados nacional sobre segurança pública?

Ana Paula: Representa sim, é um primeiro passo. E pode auxiliar um dia a consolidar um banco de dados nacional, eu só não sei quanto tempo isso vai acontecer. Penso que vai demorar porque são muitas forças contrárias para isso acontecer.

E existe um planejamento por parte das instituições de Segurança Pública para o uso dos dados? Como isso é feito hoje em dia no Brasil?

Ana Paula: Não existe um banco de dados consolidado e, portanto, não existe planejamento sobre segurança pública no país. Essa é uma questão que ainda está engatinhando. Não funciona ainda e não há planejamento. Não nesses termos, mas em outros. Uma cena que representa bem isso está no primeiro filme Tropa de Elite, é uma cena de ficção, mas é clássica para representar o conflito no funcionamento das instituições de Segurança Pública quando o assunto é serviço de inteligência e gestão de informação. A cena mostra o Aspirante [André Matias] que está apresentando um mapa das ocorrências do batalhão para o comandante. O Coronel, quando vê aquele mapa com uma grande quantidade de ocorrências, reclama e diz: “Você vai refazer este relatório. Olha aqui: Corpo encontrado na praia. Morte na praia, meu filho, é afogamento!”. Ao que Matias retruca: “Mas Comandante, tinha uma perfuração no corpo…” E o Coronel encerra a conversa: “Você é legista, por acaso?!”. Isso, infelizmente, é o cotidiano que temos no Brasil. Então, não posso dizer que não há planejamento; mas existe planejamento a partir de outras lógicas, de outros modelos. E é principalmente uma lógica pautada pela imprensa, ou seja, o que os jornais sinalizam é para onde a polícia vai.

E como podemos falar de um planejamento de território, se não existem dados e informação. Ou seja, como a Segurança Pública pode ser pensada para as grandes cidades, se não há um sistema de informação.

Ana Paula: Tem uma lógica de território hoje no Rio, mas que não é a do planejamento público para ocupação do território. A lógica que existe é a da milícia, lógica do loteamento e da apropriação privada desse território. E é nessa lógica também que a polícia funciona. Então, a questão é que as lógicas da milícia e da polícia funcionam a partir do mesmo modelo – a apropriação privada, e para quebrar isso é demorado, é um processo lento e complexo, e que obviamente depende de vários fatores.
Por outro lado, existem grupos que têm interesse de quebrar essa lógica. E isso tudo se dá dentro de um espaço de contradições e o papel da universidade é fomentar a explicitação dessas contradições. E isso acontece porque a universidade tem a liberdade que essas instituições não têm. Se não fosse o projeto, os guardas municipais de São Gonçalo e Rio Bonito jamais poderiam falar o que eles discutiram com a gente. Porque eles não têm espaço na instituição para falar sobre isso. Se você sentar com um policial militar, ele vai te contar um monte de coisas. O Comandante dele não sabe daquilo? Por quê? Porque ele não quer saber. A ordem na PM é: vai lá dá seu jeito e resolve, e não traz problema para o comando. Esse é o comando básico de planejamento de ação na rua. Aí o cara vai lá e faz o que quer, do jeito que quer. Se der errado o problema é só dele. Existe uma consequência que é visível no território a partir dessa lógica, os serviços são ofertados e apropriados de forma particular e não institucionalmente, como deveria ser num Estado com  democracia.
A desarticulação desses universos, simbólicos e cognitivos distintos, só faz piorar esse cenário. E há também  interesses divergentes e há o mercado. E é bom que existam núcleos como o Observatório das Metrópoles, o InEAC e outros que estão aqui para formar profissionais para refletir sobre isso. Precisamos formar a massa crítica para pensar essas questões, para fortalecer esse outro lado. Porque não dá para defender isso sozinho. Para pensar em planejamento é preciso também que as instituições sejam autônomas, e nós não temos instituições hoje em dia na área da Segurança Pública, temos sim corporações. E as corporações funcionam na lógica do segredo, na lógica da defesa de seus interesses próprios. Para pensar a questão da Segurança Pública como um sistema, primeiro é preciso que haja instituições para haver interface. Dessa forma, as instituições podem definir os seus papéis e negociar o modo como vão atuar no espaço público. Mas isso não existe ainda. Historicamente as Polícias nunca conversaram, é muito recente esse processo de aproximação.

E preciso que haja instituições e públicas, mas sem segredo?

Ana Paula: Ou com segredos regulados. Porque o Estado funciona a partir do estabelecimento de que algumas informações são segredos, mas são segredos regulados por critérios claros. E não por critérios pessoais e subjetivos: “Pra você eu passo informação, para aquele outro não, não merece”. O critério tem que ser público, explícito e transparente. Mas isso são processos de séculos, a gente não pode comparar os nossos modelos com a Europa, que têm séculos de informações oriundas dos sistemas de Segurança Pública. São lógicas e modelos diferentes. A questão é como vamos sair dessa lógica da corporação, do segredo, pra pensar uma sociedade onde a informação é pública, onde há transparência e prestação de serviço? Tudo isso que a gente está falando se resume nessa frase: a Polícia não foi criada para prestar serviço para a sociedade no Brasil; ela presta serviço ao Estado, aos governantes. Agora, há um processo de mudança. Nós não estamos como há vinte anos. Há vinte anos era impossível termos acesso às ocorrências de uma guarda municipal, mas ainda existem muitos desafios.