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Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil (Reprodução)

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Coordenador Nacional
INCT Observatório das Metrópoles

A natureza pandêmica da COVID-19, bem como a sua dinâmica de difusão, revela uma pedagogia com a qual as sociedades podem apreender os limites da reprodução do capitalismo como modo de produção e distribuição da riqueza e da civilização material por ele instituída.  Ao se difundir a partir da vida coletiva e das relações humanas, a pandemia evidencia os impasses da reprodução da vida quando a natureza e a própria sociedade foram submetidas à lógica da acumulação ao infinito do capital como riqueza abstrata e apropriada por uma pequena minoria de proprietários, em detrimento das necessidades de uma grande maioria. Ela nos ensina que os seus efeitos explosivos resultam da combinação da hiper-riqueza capitalista circulante pelo mundo, com a imobilidade territorial nas grandes metrópoles de vastos segmentos populacionais vivendo sob o flagelo do desemprego e subemprego, habitações precárias, insalubres, densamente ocupadas e desprovidas do acesso aos serviços urbanos, como o saneamento básico, transporte público, sistema de saúde e tantas outras necessidades não atendidas para a reprodução da vida.

Temos, portanto, que aprender com os ensinamentos que a COVID-19 está nos deixando, sobretudo considerando as previsões dos especialistas a respeito de novos ciclos pandêmicos. E a maior lição a retirar é a necessidade de um amplo e profundo programa de reforma das nossas metrópoles, capaz de gerar um meio social urbano em condições de atender as necessidades da reprodução da vida. Assim, assegurar o direito à cidade a todos pela superação dos flagelos sociais que imperam em nossas grandes cidades torna-se um imperativo civilizatório de proteção da vida diante das futuras ameaças pandêmicas que muito provavelmente acontecerão, em razão da entrada da humanidade em um novo ciclo geológico conhecido como antropoceno[1]. Esta possibilidade torna-se evidente quando consideramos a COVID-19 como o mais recente evento de ciclos mais ou menos pandêmicos de natureza zoonose: H5N1 (1997), SARS (2003), H1N1 (2009), MERS (2012), EBOLA (2014) e ZIKA (2016).

Como contribuição ao despertar desta consciência coletiva, o INCT Observatório das Metrópoles, em parceria com o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), apresenta o Dossiê Nacional As Metrópoles e a COVID-19”. O objetivo de sua elaboração é analisar as iniciativas empreendidas pelo poder público – nos âmbitos federal, estadual e municipal, visando o enfrentamento da pandemia da COVID-19 e denunciar eventuais situações de violações de direitos humanos e sociais, com foco nos territórios populares e grupos sociais vulneráveis. Visamos com a difusão subsidiar ações de incidência e exigibilidade de direitos, promovidas por organizações, movimentos sociais e instituições de proteção de direitos.

Trata-se de um amplo e sistemático mapeamento realizado pela ação coletiva, colaborativa e coordenada do conjunto da rede de instituições e pesquisadores que integram os 16 núcleos do Observatório das Metrópoles espalhados por todas as grandes regiões do país. O dossiê constitui-se em um rico e denso panorama do impacto da pandemia sobre os principais aglomerados metropolitanos da rede urbana brasileira, no qual se buscou destacar as diferenças destes impactos sobre os territórios populares e grupos vulneráveis. Como pode ser percebido pela sua leitura, o presente documento evidencia que apesar da importância societária e civilizatória, foram poucos os governos estaduais e municipais que adotaram políticas específicas para favelas, cortiços, palafitas e demais territórios populares, bem como para grupos sociais vulneráveis, como os camelôs, população de rua, e outros.

No caso do governo federal, prevalece a notória política de omissão, descompromisso e irresponsabilidade. É muito evidente a sua ausência de empenho para gerar ações coordenadas e de proteção no conjunto do território nacional. Mas, a inação do governo Bolsonaro não deve ser entendida apenas como resultante da evidente incapacidade governativa da coalizão direitista-financeira apoiada por grupos militares. A nosso ver, é possível perceber sinais claros do tratamento da pandemia como expressão de uma necropolítica no sentido atribuído pelo filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe[2]. Isto é, a utilização da morte como estratégia de governo dos corpos e da vontade política das camadas populares, com objetivo de anular a sua capacidade de contestação e revolta frente aos flagelos a que são submetidas e tornadas evidentes pela pedagogia da pandemia. O descaso com a difusão exponencial dos casos das mortes é um outro braço desta necropolítica, pois ela também se manifesta na prática policial de confronto que tem gerado o crescimento dos homicídios cometidos em sucessivas operações realizadas nos territórios populares, ou à narrativa e medidas que buscam incentivar o armamento da população como prática supostamente de autodefesa. A necropolítica entre nós, enquanto periferia do capitalismo, não pode ser compreendida como deformação política, mas o outro lado da moeda do exercício do biopoder a serviço do projeto ultraliberal que busca por surdas violências a legitimação da destruição dos aparatos de proteção da sociedade em favor da soberania do mercado.

Mas, como dissemos anteriormente, a pandemia da COVID-19 possibilita maior transparência dos horizontes anti-societários e descivilizatórios desta estrutural prática de controle dos conflitos na sociedade brasileira. A nossa intenção com este dossiê é justamente atuar a partir do conhecimento na direção de dar maior visibilidade a este impasse, fortalecendo a capacidade de resistência e de insurgência das camadas populares submetidas às práticas da necropolítica. Por outro lado, pretendemos que a sua ampla circulação torne mais consciente os ensinamentos que a pedagogia da pandemia está promovendo e ajude na construção de um amplo consenso na sociedade sobre a imperiosa necessidade de assegurar o direito à cidade como caminho do direito à vida.

Para tanto, optamos por fazer um dossiê dinâmico, que será complementado com novas análises e atualizado sempre que possível e necessário. Queremos que estes documentos se constituam em subsídio para o FNRU e para outras redes e articulações que estão promovendo ações de incidência e exigibilidade de direitos.

O dossiê está estruturado em duas partes. A primeira se dedica a análises nacionais, contando também com o documento político unificado “O combate à pandemia Covid-19 nas periferias urbanas, favelas e junto aos grupos sociais vulneráveis: propostas imediatas e estratégicas de ação na perspectiva do direito à cidade e da justiça social”, elaborado e subscrito por dezenas de organizações e redes nacionais, entre as quais o Observatório das Metrópoles. A segunda parte se dedica as análises locais, focadas nas realidades locais, compreendendo a descrição e compreensão dos territórios particulares e das políticas dos governos estaduais e municipais de enfrentamento da pandemia, bem como o registro de eventuais denúncias de situações de violações de direitos humanos.

O dossiê também reconhece o importante papel que as organizações sociais e os movimentos populares estão cumprindo nos territórios populares e junto aos grupos vulneráveis, organizando ações de solidariedade, distribuição de cestas básicas e materiais de higiene, campanhas de informação e adoção de medidas protetivas. Sem estas ações, certamente os impactos da COVID-19 seriam muito mais aterrorizadores.

A seguir, confira os documentos que compõem “As Metrópoles e a COVID-19: Dossiê Nacional”.

PARTE 1 – ANÁLISES NACIONAIS
PARTE 2 – ANÁLISES LOCAIS

 

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[1] A hipótese segundo a qual o planeta deixou a atual fase conhecida como holoceno. Antropoceno é um termo formulado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995. O prefixo grego “antropo” significa humano; e o sufixo “ceno” denota as eras geológicas. Este é, portanto, o momento em que nos encontramos hoje: a Época dos Humanos. Para alguns pesquisadores existem fortes evidências sobre a relação entre esta hipótese com a natureza financeira e extrativa do capitalismo atual voltado para a acumulação infinita do lucro. O conceito de capitoloceno formulado pelo sociólogo Benjamin Coriat busca dar conta desta relação em razão da exploração de novas fronteiras naturais como geleiras, florestas e espaços naturais ainda intocados e as possibilidades da liberação de novos e desconhecidos vírus. Ver Benjamin Coriat, «L’âge de l’anthropocène, c’est celui du retour aux biens communs».

[2] Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.