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MITOS cercam Brasília, em vários tipos de discurso, inclusive de Lucio Costa. O texto “Brasília: mitos e fatos”, do professor Frederico de Holanda (UnB) analisa o que é mito construído sobre a capital do Brasil e aquilo que é fato decorrente de transformações históricas. Por exemplo, do esvaziamento do espaço público decorrente das superquadras, Holanda mostra que há sim vida intensa nos espaços públicos, nos parques, nas superquadras e comércios locais.

O texto de Frederico de Holanda, professor da UnB e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles, foi publicado inicialmente como uma postagem no Facebook, em resposta a uma “provocação” de seu amigo Edésio Fernandes (“vamos ver o que Frederico Holanda fala sobre isso…”), no contexto de uma discussão em torno de Brasília, manifestações sociopolíticas, democracia, corrupção, urbanidade. De acordo com Holanda, o texto foi redigido de uma assentada só, na manhã de um domingo, e está sendo divulgado pelo Observatório sem edição, para manter o frescor e a informalidade do original.

Brasília: mitos e fatos

Por Frederico de Holanda

Aceitando o desafio do Edésio Fernandes, lá vão alguns pontos. Deviam ser curtos, como sói acontecer neste veículo, mas me entusiasmei… (por mistérios do Face não consegui publicar como comentário).

MITOS cercam Brasília, em vários tipos de discurso, inclusive de Lucio Costa. Como “livre pensar é só pensar” (Millor Fernandes), temos, não a possibilidade, mas a obrigação de desvelar os mitos, venham de onde vierem – a eles, contraponho FATOS (apesar de alguns acreditarem que adentramos a era da “pós-verdade”).

MITO. “A vida social oscila, sem salvação, entre o trabalho e a residência”; ou: “em Brasília, o público urbano dos espaços abertos em outras cidades brasileiras simplesmente desapareceu”; ou: “[a superquadra] não tem vida própria, não tem sentido comunitário, as pessoas se fecham, se isolam, acham difícil fazer amigos, as pessoas morrem sozinhas”. Por inacreditável que pareça, está escrito por James Holston, no badalado livro A cidade modernista: uma crítica a Brasília e sua utopia.

FATO. Cadê a evidência? Há vida intensa nos espaços públicos, nos parques, nas superquadras, nos comércios locais (shows de música são frequentes), no “Eixão do lazer” nos domingos e feriados, nas manifestações políticas (tenho ido a muitas), religiosas ou de outra natureza na Esplanada dos Ministérios e em outros lugares. Claro, não esperem a Cinelândia ou o Largo do Machado. Mas daí ao salto triplo sem rede no trapézio… Sobre dificuldade de fazer amigos ou de morrer sozinho, de novo, mais evidência e menos wishful thinking, por favor.

MITO. “As camadas sociais mais altas abandonaram os apartamentos das superquadras… e isto resultou em alta e violenta criminalidade” (Joseph Rykwert).

FATO. A periferia é mais violenta que o centro – surpresa?!… No centro, predominam os crimes contra o patrimônio, não contra as pessoas (claro, aqui está a grana). Não houve “abandono” das superquadras, o Plano Piloto continua a terceira região mais rica da cidade. Pelo contrário, há um refluxo das residências das regiões do lago para o Plano, dada a maior segurança nos apartamentos.

MITO. A cidade libertária, para uma sociedade do futuro, em que a tendência “é todo mundo virar, pelo menos, classe média” (sic, Lucio Costa).

FATO. Não viraram classe média nem virarão no horizonte previsível – pelo contrário. Lucio Costa imaginava uma “receita única” (sic) onde todos poderiam viver. Falso. Seus apenas DOIS tipos de espaços domésticos (apartamentos em prédios de 6 pavimentos sobre pilotis e as “casas individuais” do lago) não deram guarida a grandes faixas sociais que não poderiam neles se encaixar. Foram para longe. A cidade é segregadora PELO PROJETO.

MITO. O “Versalhes do povo” (Lucio Costa). “Me comove particularmente o partido adotado de localizar a sede dos três poderes fundamentais não no centro do núcleo urbano mas na sua extremidade, sobre um terrapleno triangular como palma de mão que se abrisse além do braço estendido da esplanada, onde se alinham os ministérios, porque assim sobrelevados e tratados com dignidade e apuro arquitetônico em contraste com a natureza agreste circunvizinha, eles se oferecem simbolicamente ao povo: votai que o poder é vosso. (…) A praça dos Três Poderes é o Versalhes do povo” (LC).

FATO. O tema é mais delicado. LC opta por uma metáfora: o braço estendido oferece o poder ao povo… onde o povo não está. Ele está no centro, a Esplanada é uma península, pendurada na cidade. O povo está no Centro da Sociedade Civil, ao redor da Rodoviária. Contudo, Esplanada e Praça dos Três Poderes são o espaço-símbolo do poder onde se dão as manifestações políticas – mas em gritante contraste com as outras cidades brasileiras. Em Brasília, perde sentido o brado “Vem para a rua, vem!!!”. Não há ninguém, ao longo das empenas cegas dos ministérios, para “vir para a rua”. No máximo, das janelas laterais, espiam funcionários do Estado, não membros da Sociedade Civil. Nas manifestações, sentimo-nos estranhamente isolados, falando (gritando) para nós próprios. A manifestação não cresce enquanto caminha (ao contrário do Rio e de São Paulo, p. ex.). Ah, as redes sociais: as imagens das manifestações postadas on line têm força e importância – também em Brasília, ou talvez mais ainda aqui, dado o simbolismo que carregam.

MITO. Alavanca para o desenvolvimento regional, interiorização do desenvolvimento no país, personalização da iniciativa em JK, respondendo ao Toniquinho, dizendo que “cumpriria a constituição”, num comício em Goiás blá blá blá…

FATO. É tema recorrentemente à tona ao longo de quase 200 anos – e com providências concretas de encaminhamento no tempo. A construção de Brasília não tem NADA a ver com o desenvolvimento econômico do país. O tal “desenvolvimento” (leia-se, a unificação do mercado de norte a sul sob a hegemonia do capital do sudeste) começou, no mínimo, nos 1930s. Gesto habilidoso das capas dominantes, a construção da cidade foi antes de tudo um gesto SIMBÓLICO. Mutatis mutandis, construímos nossas pirâmides. Brasília não determinou desenvolvimento, pelo contrário, foi um investimento improdutivo na SUPERESTRUTURA político-ideológica, e SUGOU a economia regional. Da mesma forma, na escala nacional, foram sugadas as economias do norte e do nordeste, via “incentivos” (incentivos?) fiscais para os capitais do… sudeste, que tiraram de lá (norte e nordeste) seus lucros e reinvestiram no… sudeste, como relata Chico de Oliveira em “Elegia para uma (re)ligião”. Quem, na época, também botou o dedo na ferida foram, ironicamente, dois expoentes do espectro político: um da extrema direita – Carlos Lacerda – outro da extrema esquerda – Luis Carlos Prestes. Brasília TORNOU-SE VIÁVEL pelo desenvolvimento já em curso. Não foi possível realizar o “sonho arqui-secular do Patriarca” (LC) antes.

MITO. Brasília favorece a corrupção. Como o poder absoluto corrompe absolutamente, o poder isolado fisicamente torna-se impermeável politicamente – com as mazelas correspondentes.

FATO. A corrupção é histórica e endêmica no Brasil desde sempre. O isolamento da capital, tem, sim, consequências, mas não há evidência empírica que correlacione a existência DA CIDADE com a corrupção. Chega a ser hilário. Entretanto, histórica e milenarmente, o poder político isolado numa parte especializada do território – para política ou ideologia – é CORRELATO a sociedades mais desiguais, em todos os continentes e todas as épocas: Cidade Proibida, castelos feudais franceses, estados pristinos africanos (pré-coloniais, p. ex. zulus), sociedade maia pré-Colombo… Versalhes. Todavia, correlação não é determinação. Melhor considerar a arquitetura dos lugares como sistema de POSSIBILIDADES e de RESTRIÇÕES, que podem ser exploradas – se houver vontade – ou que podem ser superadas – se houver capacidade. A arquitetura tem bons ou maus efeitos em nossas vidas, e vale a pena lutar por melhores lugares. Tá de bom tamanho. Não somos salvadores da pátria nem responsáveis pelos pecados do mundo. Não há evidência histórica que a arquitetura dos lugares tenha FREADO transformações sociais – menos ainda PROVOCADO revoluções. Os delírios voluntaristas de Le Corbusier (“Arquitetura ou revolução: a revolução pode ser evitada”) viraram apenas piada de mau gosto.

MITO. Brasília = cidade “moderna” – ou depravada, como tal. Zevi: a monumentalidade é incabível no projeto moderno; Tafuri: “Brasília nasce de intenções demagógicas (…) guiada por um plano alegórico infantil que tenta reinterpretar um modelo urbano já experimentado na União Soviética dos anos 1930”; Frampton: “formalismo decadente”.

FATO. Brasília é heterodoxa, aqui LC tem razão: não é, nunca foi, uma “simples cidade moderna” (sic, LC). Brasília é TRADICIONAL, o ponto sendo: de QUAL tradição se trata? Brasília é milenar: perspectivas barrocas, terraplenos monumentais, gregarismo colonial brasileiro, acrópole cerimonial, cidade linear, cidade jardim, urbanidade de áreas comerciais. Uma cidade “pós-moderna” avant la lettre, distinta das manifestações urbanísticas modernas no resto do mundo. Só o faria quem estivesse “desarmado de preconceitos e tabus urbanísticos” (LC). A força do projeto – e da cidade hoje – é principalmente EXPRESSIVO-SIMBÓLICA. Elencados os aspectos pelos quais ela nos afeta, é profundamente contraditória – ótimo desempenho em alguns aspectos, péssimo, em outros. No entanto, se há problemas, há igualmente enorme disponibilidade de espaço – físico, mesmo – para resolvê-los. O futuro não está escrito, apesar das nuvens negras no horizonte. Mas é bom levar em conta que Brasília tem o melhor desempenho, TUDO CONSIDERADO, entre todas as capitais brasileiras, e entre todas as classes sociais, quando perguntadas sobre a qualidade de vida dessas cidades. Brasília é, pois, UTÓPICA e DISTÓPICA, concomitantemente: a primeira por superar as contingências do seu tempo e implicar um lugar SUBLIME atemporal – como o são o Partenon e as Pirâmides do Egito Antigo; a segunda, por reproduzir as perversidades de uma sociedade clivada em profundas desigualdades.

CONCLUSÃO. Chega de voluntarismos. Não esperemos da arquitetura o que ela não pode dar. Não tentemos usar a arquitetura para impedir o que ela não tem capacidade de barrar.