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Mariana P. Ximenes Ponte¹

O Carnaval no Pará possui uma diversidade de manifestações, como escolas de samba, blocos de rua, com presença ou não de trios elétricos, festas de salão realizadas em clubes, casas de festa ou bares, ou uma combinação dessas modalidades. Estas agregam elementos comuns aos carnavais de diversos locais do país, combinados com elementos diferenciados e locais. Há práticas, brincadeiras de carnaval que são peculiares, a exemplo do bloco “Pretinhos do Mangue”, no município de Curuçá, em que os brincantes se cobrem da lama dos mangues que são paisagem significativa do lugar; o “Arrastão do Boi Faceiro”, em São Caetano de Odivelas, que mistura elementos do boi de máscara, os palhaços que são os pierrôs mascarados, e os cabeçudos; e o “Cordão da Bicharada”, em Cametá (Vila Juaba), onde se realiza um desfile de crianças e adultos vestidos de bichos.

Bloco “Pretinhos do Mangue” em Curuçá. Foto: Carlos Sodré (Agência Pará).

Alguns municípios, sobretudo os do nordeste paraense, por serem balneários, recebem um considerável número de banhistas e brincantes no carnaval, principalmente os que possuem programações específicas para a época, como shows (locais e nacionais), blocos de carnaval famosos e desfile de escolas de samba. É possível citar aqui Bragança, Marudá, Vigia, Cametá (sede), Salinas etc. Os distritos de Belém, que possuem orlas e/ou praias também são atrativos, principalmente a Ilha de Mosqueiro, que na década de 1990 era um dos lugares mais disputados para passar o carnaval, mas também Icoaraci e Outeiro. Estes carnavais cresceram enquanto o de Belém esvaziou, e seu pré-carnaval cresceu, não de maneira sincrônica, mas gradualmente estes movimentos acontecem, crescem, diminuem, retornam, banzeiam.

Em Belém, há escolas de sambas quase centenárias, como é o caso do Rancho Não Posso Me Amofiná. Fundado em 1934 por um sambista que havia morado por um tempo no Rio de Janeiro, remonta deste período e sobre forte influência do modelo carioca. O Rancho, como é comumente chamado, possui uma relação interessante com o bairro do Jurunas, que é simbiótica desde sua origem e pode ser demonstrada a partir da construção da ideia de nação jurunense. Isso porque diz respeito a um encontro de elementos da modernidade e da tradição que constroem uma ideia de comunidade ideal e relacionada às práticas cotidianas atravessadas pela relação do bairro pobre, de periferia, com o rio e sua população ribeirinha que vai e volta, vem e fica. Envolve o sentimento de pertencimento a esta nação que conta sobre seu mito de origem, sua história nos sambas-enredos e outras narrativas, e que (re)inventa ao passo que mantém suas práticas rituais, festivas e suas formas de sociabilidade ligadas a estes (Rodrigues, 2008).

Rancho Não Posso Me Amofiná no Carnaval de 2019. Foto: Tássia Barros (Comus).

O carnaval das escolas de samba ao longo dessas décadas passou por momentos áureos, em que muitas pessoas estavam envolvidas, prestigiavam os desfiles e apoiavam as escolas de diversas formas. A elite, classe média, empresários, intelectuais e políticos produziam, financiavam, desfilavam e assistiam. Período de ascensão na década de 1970, as escolas desfilavam na Avenida Presidente Vargas, uma das mais importantes da cidade, onde se localiza a Praça da República, o Teatro da Paz – e palco de muitas festas –, Círios de Nazaré, Festas da Chiquita, manifestações políticas e culturais. Pelo aumento de público e exuberância dos carros alegóricos tornou-se inviável permanecer no local, e o carnaval passou a acontecer na Avenida Visconde de Souza Franco, a Doca, esta que possui um canal de esgoto ao centro, em toda sua extensão. Este período do Carnaval da Doca é o que permanece na memória como sendo os bons tempos (Rodrigues; Palheta, 2015). Esta avenida divide os bairros do Umarizal e do Reduto, sendo uma área extremamente valorizada e que com alta concentração de equipamentos urbanos, em contraste com outras vias com canais que ainda sofrem, frequentemente, com alagamentos, urbanização precária, acúmulo de resíduos, violência e moradia precária ao redor.

Um bloco de carnaval importante, mas extinto, é o “Afoxé do Guarda Chuva Axado”. O primeiro cortejo foi realizado no bairro histórico da Cidade Velha, descendo a ladeira da rua estreita (de paralelepípedo), a primeira de Belém, e indo em direção à Feira do Açaí, que é a parte do Mercado Ver-o-Peso em que há a comercialização do fruto do açaí. Em poucos anos, o bloco que iniciou como uma brincadeira de um grupo de amigos com uma caixa de som/autofalante, ganhou grandes proporções para o que se propunha. Ele “fez história” pela música que ficou famosa – tema do bloco –, pela multidão que passou a reunir, pela reunião de uns boêmios e “malucos” que iam atrás do adaptado carro de pipoca transformado em carro de som, uns com fantasias produzidas e performances elaboradas, outros com camisetas com pautas políticas, pois ele também se torna uma espécie de estandarte para pautas progressistas que vigoravam no período da redemocratização do país.

Imagem do documentário “Belém aos 80”, dirigido por Alan Kardek e Januário Guedes.

O nome do bloco vem de um guarda-chuva que foi encontrado – achado – por um dos fundadores, muitos dos quais músicos e compositores, de modo que o fato corriqueiro em Belém na época do carnaval foi transformado em refrão e fez história.

A chuva é um elemento central no carnaval que sempre acontece em pleno inverno amazônico, período em que chove por horas seguidas, e são dias nublados, abafados. Ir para o carnaval, seja em bloco, no desfile das escolas de samba, na praia, no igarapé, na cidade, no interior, a certeza é que a chuva fará companhia e ditará o ritmo, devendo ser considerada ou encarada.

A chuva tem seu período intenso de dezembro a março, mas o ano inteiro, o modelo que me parece mais exitoso para festas populares é o do cortejo. Cortejo para santo, cortejo de um terreiro a outro, cortejo de igreja até a casa do dono do santo, cortejo carnavalizado para a Santa, cortejo do Rancho para comemorar o Natal. Andar nas ruas é uma das práticas de festejo mais utilizadas na região. Mesmo quando se faz um carnaval, de tempos para cá chamado indoor, geralmente há um cortejo, um elemento povo na rua primeiro.

Voltando às escolas de samba, apenas na década de 1990 começa a ser construído em Belém um local específico para o desfile. Trata-se da então chamada Aldeia Cabana [de Cultura Amazônica Davi Miguel], no bairro da Pedreira, na Avenida Pedro Miranda. Bairro periférico, com forte presença de população negra, terreiros de religiões de matrizes africanas, que num período recente recebeu urbanização e foi valorizado. Passou a ser conhecido por Pedreira, o bairro do samba e do amor. A Aldeia Cabana passou a receber outros eventos, como os carnavais fora de época, shows, ações sociais, entre outros. No entanto, por ter sido construído na administração municipal de Edmilson Rodrigues, hoje novamente prefeito pelo PSOL, na época pelo PT, o local sempre foi identificado como um lugar “popular” e ligado à “esquerda” de maneira pejorativa, assim como outros equipamentos também inaugurados naquela gestão, a exemplo do Ver-o-Rio, que é uma praça às margens da Baía do Guajará. Enquanto símbolos da gestão de esquerda, os prefeitos posteriores buscaram apagá-las da cidade, precarizando a manutenção e, consequentemente, o uso.

Desfile das Escolas de Samba na Aldeia Cabana. Foto: João Gomes (Comus).

Em 2017, não houve desfile de carnaval sob alegação de falta de recursos para a realização. Em 2018, o desfile das escolas de samba, organizado pela prefeitura de Belém, deixou de ser realizado, como acontecia desde 2000, na então renomeada Aldeia Amazônica. A mudança de nome reflete a vontade de apagamento histórico, tanto da corrente ideológica da gestão que a inaugurou, quanto da memória da Cabanagem. Há anos sem manutenção, com laudo de falta de segurança estrutural para a realização do evento, a prefeitura junto à liga das escolas de samba, presidida por um aliado, decidem realizar o Carnaval na Avenida Marechal Hermes, bairro do Umarizal, próximo ao Ver-o-Rio, portanto, próximo ao rio.

Esta mudança de local demandou a mobilização de toda estrutura – temporária –, para a realização do evento: coberturas, arquibancadas, camarotes, local para os jurados, banheiros, postos de segurança, locais para alimentação etc. As fortes chuvas, já esperadas para o período, junto à maré alta e seu impacto intensificado pela proximidade do rio Guamá, no primeiro dia de desfiles dificultou muito sua realização, o “corredor do carnaval” alagou, dificultando e prejudicando tanto os foliões quanto os carros alegóricos de desfilar, sem falar do acesso ao local. No segundo dia, a quantidade de água foi tamanha, chegando a alcançar os joelhos de quem tentava ir ao local, que impediu a realização dos desfiles, então cancelados e adiados.

As chuvas e marés altas, culpadas pela sequência, que parece sem fim, de alagamentos na cidade segue a prumo neste carnaval, que mais uma vez promete colocar ao fundo parte da cidade. Mas o belenense deu seu primeiro grito de carnaval em 25 de dezembro com o bloco Império Romano e sua alegoria, a galinha do ramalho. Ou será que foi ainda em outubro, em pleno Círio de Nazaré, na Festa da Chiquita ou no Auto do Círio? Duas máximas se encontram neste período e deixam um limbo na contagem do tempo: “Acabou o Círio, acabou o ano”, e “O Ano só começa depois do Carnaval”.


¹ Antropóloga e docente Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Contato: marianaximenes@ufpa.br

REFERÊNCIAS

RODRIGUES, C.I. Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e construção de identidades entre ribeirinhos em Belém-PA. Tese (Doutorado), Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Recife, 2006. 360f.

RODRIGUES, Carmem Izabel; PALHETA, Claudia Suely dos Anjos. Escolas de samba de Belém: do princípio ao meio. MOARA – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras. Edição 43, jan – jun, 2015. Disponível em: Escolas de samba de Belém: do princípio ao meio | Rodrigues | MOARA – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras ISSN: 0104-0944 (ufpa.br). Acesso: 05/02/2024.

Alagamento na avenida Marechal Hermes marca os desfiles de carnaval de Belém. G1 Pará. Data: 03/02/2018. Disponível em: Alagamento na avenida Marechal Hermes marca os desfiles de carnaval de Belém | Carnaval 2018 no Pará | G1 (globo.com)

BELÉM aos 80. Direção: Alan Kardek e Januário Guedes (Entrevistas). Roteiro: Alan Kardek Guimarães. Argumento: Januário Guedes e Celso Eluan. Fotografia e Câmera: Diógenes de Carvalho Leal. Produção: Alan Kardek Guimarães, Guaciara Freitas, Patrícia Araújo. Belém. Edição: Jorge Oliveira. 2009. 114 min. Cor. Son. Filmado em Betacam Digital. Disponível em: (184) Belém aos 80 (2009) – YouTube

Boi Faceiro faz a festa dos foliões no tradicional carnaval de rua de São Caetano de Odivelas. O Liberal.com. Data: 25.02.20. disponível em: Boi Faceiro faz a festa dos foliões no tradicional carnaval de rua de São Caetano de Odivelas | Pará | O Liberal

Chuva forte alaga avenida do samba e desfile oficial do Carnaval de Belém é adiado. G1 Pará. Data: 03/02/2018. Disponível em: Chuva forte alaga avenida do samba e desfile oficial do Carnaval de Belém é adiado | Carnaval 2018 no Pará | G1 (globo.com)

‘Cordão da Bicharada’: tradição une carnaval, crianças e meio ambiente no Pará. Portal Amazônia. Data: 22/02/2023. Disponível em: ‘Cordão da Bicharada’: tradição une carnaval, crianças e meio ambiente no Pará – Portal Amazônia (portalamazonia.com)

Curuçá e o bloco Pretinhos do Mangue: como é o carnaval da cidade onde Joelma já se banhou de lama no Pará. G1 Pará. Data: 15/02/2023. Disponível em: Curuçá e o bloco Pretinhos do Mangue: como é o carnaval da cidade onde Joelma já se banhou de lama no Pará | Pará | G1 (globo.com)