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Democracia participativa: por uma governança popular

Democracia participativa e orçamento participativo: por uma governança popular

Quais as contribuições dos chamados Orçamentos Participativos (OPs) na construção das democracias contemporâneas? Quais são os potenciais, limites, desafios e riscos desse instrumento para a construção de uma governança mais democrática? Para o professor Luciano Fedozzi, os OPs podem efetivamente auxiliar o processo de qualificação da democracia, de ampliação do espaço público e de promoção da equidade social no acesso à cidade e à cidadania. “O espaço público requer o tempo público, isto é, a reflexão crítica permanente”, como dizia o filósofo Castoriadis.

O professor Luciano Fedozzi é doutor em Sociologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi coordenador do Gabinete de Planejamento da Prefeitura Municipal de Porto Alegre na gestão que implantou o Orçamento Participativo (1989-1992).

O artigo “Os Orçamentos Participativos e a discussão sobre as questões práticas envolvidas na construção dessa instituição da democracia participativa” foi apresentado na XII Conferência do Observatório Internacional de Democracia Participativa (OIDP), realizada nos dias 11 a 13 de junho, em Porto Alegre.

Surgimento e expansão dos Orçamentos Participativos

Os chamados Orçamentos Participativos (doravante denominados de OP’s), se constituíram como um novo paradigma das formas de democracia participativa contemporâneas, especialmente em nível local. Desde o seu surgimento no Brasil durante a década de 1980, em especial no caso “paradigmático” de Porto Alegre (1989-1992), que ora completa mais de 20 anos consecutivos, se verifica a expansão da adoção dessa ideia em vários países de diversos continentes do mundo, periféricos e centrais.  Certamente, se tratam de práticas diversificadas entre si, que correspondem aos condicionantes históricos, políticos, socioeconômicos, ideológicos e culturais de cada lugar. Portanto, o OP não pode ser entendido como um modelo passível de ser “replicado” e nem como “tecnologia social” isenta de conteúdo político-ideológico. Mas essa diversidade não significa que não se deva analisá-los a partir de certos parâmetros que possam indicar os distintos níveis de potencialidades e de limites que cada caso apresenta frente ao desafio da democratização da democracia, por meio da promoção da cidadania ativa na gestão dos recursos públicos.

Pode-se identificar três fases no processo de surgimento e de expansão dos OP´s. A primeira se refere à construção e consolidação desse novo dispositivo ambientado no processo de redemocratização, descentralização político-administrativa e vitalização da sociedade civil brasileira, após 25 anos de ditadura militar. Dentre os dez casos deste período (1989-1992), destacou-se o de Porto Alegre. Com a vitória inédita da Frente Popular na capital gaúcha (1989-1992), (Estado do Rio Grande do Sul), a construção do OP se consolidou, tornando-se referência nacional e internacional quando a ONU o selecionou como uma das 40 melhores experiências de gestão local para a conferência Habitat II (Instambul,1995) e, posteriormente, quando Porto Alegre foi escolhida para sediar o I Fórum Social Mundial, em 2001. A reeleição por quatro vezes consecutiva do PT foi decisiva para a institucionalização do OP. Apesar da alternância de poder a partir de 2005 o OP continua em funcionamento, em que pese sua fragilização iniciada na última gestão do PT (2000-2004) e posteriormente agravada.

A segunda fase corresponde à ampliação nacional de casos de OP´s no Brasil. O número de OP´s aumentou de 10 casos (1989-92), para 30, entre 1993-1996, e em torno de 140 nas gestões 1997-2000, segundo pesquisa do Fórum Nacional de Participação Popular (Ribeiro e Grazia, 2003, p. 88-94). Posteriormente, devido ao efeito-demonstração de experiências relativamente bem-sucedidas (inclusive em capitais com alta densidade populacional e importância política), bem como devido à valorização do discurso participacionista nas eleições municipais, desde a redemocratização do país, outros partidos também passaram a adotar a ideia da participação no orçamento público, ainda que por vezes sob o viés da replicação mecânica do “modelo de Porto Alegre”. Inexistem dados atuais sobre o Brasil, mas estima-se que, hoje, cerca de 180 cidades adotem algum tipo de participação nas decisões do orçamento público.

A terceira fase pode ser identificada com o fenômeno da mundialização das experiências de OP´s. Desde os anos 1990, no contexto de crise de legitimidade da representação política nas democracias, a expansão dos autodenominados OP´s vem ocorrendo em praticamente todos os continentes, como uma das práticas de democracia participativa que desperta grande interesse por parte de distintos atores sociais. Essa expansão chamou a atenção das principais agências multilaterais de financiamento ou de cooperação, as quais passaram a incentivar os OP´s como “boas práticas de controle dos gastos públicos”, como é o caso do BID e do Banco Mundial (BIRD).

Por sua vez, a União Europeia, no âmbito do Programa URB-AL, criou, entre outras redes de cidades, uma específica sobre o tema, a Rede 9 – Financiamento Local e Orçamento Participativo, coordenada por Porto Alegre, que chegou a congregar 255 cidades. Um novo projeto foi então aprovado, entre 2007 e 2009, reunindo 9 cidades com experiência significativas e peculiares de participação, que criaram o atual Sistema Intermunicipal de Capacitação em Planejamento e Gestão Local Participativa (PGLP), que vem desenvolvendo capacitação virtual e presencial.

Não há dados empíricos sobre o número total de cidades com OP´s hoje no mundo (alguns investigadores calculam mais de mil casos). A maior parte deles ocorre em países da América Latina e, em número menor, embora crescente, na Europa (entre 40 e 60 localidades, em especial, na Espanha, Portugal, França, Alemanha e Itália), na África e na Ásia (URB-AL, 2006; Allegretti; Herzberg, 2004; Cabannes, 2004; Sintomer; Herzberg; Röcke, 2008; Fernández y Fortes, 2008). Alguns países, como Portugal e Espanha, constituíram inclusive redes e observatórios de OP´s.

Assim como na América Latina, são formas muito distintas entre si. Mas, em que pese a existência de práticas aprofundadas e exitosas baseadas na idéia dos OP´s em território Europeu, estudos pioneiros no continente revelam que, em alguns países, como a Alemanha, eles vem sendo adotados não para democratizar a democracia ou promover a equidade social, mas sim para implementar uma “modernização” com ajustes fiscais e diminuição do papel do Estado nas políticas sociais (Sintomer; Herzberg, Röcke, 2008).

O retorno do discurso participacionista e descentralizador desde a década de 1980 não significou um revival dos movimentos contestatórios dos anos 1960. A descentralização, como reforma do Estado, foi e é defendida por forças políticas inclusive antagônicas (Mello, 1993; Arretche, 1996). Nesse sentido, os experimentos participativos locais não significam per se mais democracia e mais equidade social. Como afirma Zicardi (2004:188): “A pesar de que el município es la instancia de gobierno más próxima a la ciudadania, las resistencias que operan en espacio local para construir uma cultura y práticas democráticas nos son facilmente removibles para dar paso a la construcción de uma governabilidad democrática que torne más eficazes y eficientes las políticas públicas”.

Os OP´s não escapam a esses desafios e riscos. Por isso, precisam ser analisados em cada caso quanto ao seu real significado democrático.

Acesse o artigo do professor Luciano Fedozzi aqui.