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Lara Caldas¹
Layessa Vieira²
Rosangela Lunardelli Cavallazzi³

O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), uma associação civil de profissionais, pesquisadores e estudantes de atuação nacional coordenou, em 2021, uma pesquisa com o intuito de investigar como o Estado brasileiro, via poder judiciário, atuou frente à questão das remoções forçadas de famílias de suas moradias durante a pandemia. A pesquisa teve como foco as remoções de ocupações, ou seja, moradias com algum nível de informalidade, constituídas por imóveis públicos ou privados, mas excluídos os despejos processados por falta de pagamento de aluguel, ou outra quebra contratual.

Durante os nove meses de pesquisa, foram reunidas 505 decisões judiciais de segunda instância, em 17 estados brasileiros: Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Norte, Pará, Roraima, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás e Mato Grosso do Sul. A pesquisa abrangeu os Tribunais estaduais e federais, além do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em uma primeira análise das decisões coletadas, o que espanta é a subutilização das legislações, instrumentos e políticas urbanas existentes. Dentre as mais de 500 iniciativas jurídicas catalogadas pela pesquisa, apenas duas mencionam o Estatuto da Cidade, sete citam a função social da propriedade, e outras 31 mencionam o direito à moradia em suas ementas.

O Brasil conta com um arcabouço de normas urbanísticas progressistas, com especial destaque para aquelas que visam à proteção do direito de morar, uma vez que o direito à moradia digna é uma previsão constitucional. Essas normas são conquistas históricas dos movimentos pelo direito à moradia que, desde 1940, vêm lutando para seu reconhecimento e garantia pelo Estado. O acúmulo dessas lutas resultou em dois artigos constitucionais em 1988 (artigos 182 e 183 respectivamente), que visam estabelecer a função social da propriedade pública e privada. Cabe destacar que esse conceito já estava presente em Constituições brasileiras anteriores, contudo ganha uma nova dimensão na Constituição Federal de 1988 ultrapassando a mera limitação das faculdades do proprietário. Seu objetivo é estabelecer limites sociais para a propriedade privada, permitindo, por exemplo, que propriedades subutilizadas sejam convertidas em moradia. Com o microssistema do Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, as possibilidades de ação por via jurídica para a defesa da moradia de interesse social foram ampliadas, permitindo que o município possa vir a estabelecer diretrizes e proteções específicas a partir da elaboração de um plano diretor. Dessa maneira, é grave e denota retrocesso dos direitos sociais que durante uma das maiores crises humanitárias das últimas décadas, tais direitos raramente saiam do papel ou sejam reconhecidos pelo poder judiciário.

O direito à moradia é fundamental para a manutenção da dignidade e saúde de qualquer pessoa, estando sua eficácia social no bojo do feixe de direitos sociais fundamentais que compõem o direito à cidade. Assim, a moradia é central para a reprodução social no espaço urbano e ganha maior relevância na conjuntura da pandemia de Covid-19 quando observamos o agravamento das vulnerabilidades, ainda mais extremas à realidade daqueles que não tem onde morar.

Desde pelo menos março de 2020, o mundo sabia da crise sanitária, uma tragédia a partir da circulação desenfreada do novo coronavírus. As primeiras informações difundidas já assinalavam a necessidade urgente de isolamento e distanciamento social, além de medidas de higiene mais rígidas, que só são possíveis quando se tem acesso à moradia digna. Nesse sentido, a legislação brasileira já teria no conceito de “função social da propriedade” um potencial aliado: poder-se-ia, por exemplo, discutir a possibilidade de ocupação emergencial de imóveis vazios, a construção em massa de abrigos em terras já ocupadas informalmente, ou a provisão de infraestrutura a assentamentos precários. Tudo isso tem viabilidade do ponto de vista legal, mas nem mesmo uma catástrofe iminente conseguiu levar tais questões à pauta da política nacional e sequer do poder judiciário.

De fato, a pandemia resultou na morte evitável de centenas de milhares de brasileiros, em razão de uma política pública irresponsável e perversa do Poder Executivo. Além disso, afetou incontáveis famílias economicamente, uma vez que houve um imenso impacto não só no mercado de trabalho, como nas formas à distância, em regra online, impostas na forma de trabalhar. A modalidade “remota” de trabalho, por exemplo, se tornou comum, e depende inteiramente da infraestrutura doméstica do trabalhador. E durante todo esse tempo, despejos completamente desnecessários – porque não resultam na perda nem pessoal nem econômica de nenhum indivíduo – foram realizadas. Desocupações violentas de áreas que muitas vezes eram habitadas há anos por famílias pobres foram realizadas durante picos de contágio e morte com justificativas desconectadas com a realidade como “combater a ilegalidade”, ou “dar fim ao caos urbano”. Ilegalidade por ilegalidade, poderíamos falar sobre o direito à moradia que o Estado deveria prover, a função social da propriedade pública e privada que deveria ser garantida, e a proteção à vida, diante da necessidade de isolamento social advinda da pandemia do Covid-19

Outro indicativo da não condução da política pública segundo os princípios, leis e instrumentos urbanísticos é que análises preliminares dos dados da pesquisa indicam que os instrumentos mais eficazes em impedir que famílias inteiras fossem expulsas de seus locais de moradia durante a pandemia foram, na verdade, normas que especificamente proibiram despejos durante os períodos de calamidade pública. Várias dessas leis surgiram em nível estadual ainda em 2020, muitas como resultado da Campanha Despejo Zero. Posteriormente, em junho de 2021, o STF estendeu a garantia a todo o território nacional até o fim de dezembro de 2021.

O problema deste tipo de ação, ainda que de importância incomensurável por seus efeitos positivos, é que há um prazo de validade. Apesar da prorrogação, por maioria, pelo STJ em 08 de dezembro, da proibição de despejos e reintegrações de posse até 31 de março de 2022⁴, essas normas não reconhecem o direito à moradia em seu caráter essencial e definitivo, ou a prioridade que as pessoas deveriam ter de morar e habitar frente ao direito de propriedade – elas tão somente reconhecem essas premissas em um período excepcionalmente crítico. A realidade, entretanto, é que a grave crise de moradias no Brasil impõe a milhares um “estado de calamidade” permanente. A pandemia há de passar, e os despejos haverão de retornar, expondo assim a interpretação jurídica do direito à moradia como um direito de exceção, e não um direito fundamental.

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¹ Graduada em Arquitetura e Urbanismo, e doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).

² Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

³ Pós-doutorado em Direito Urbanístico na Ecole Doctorale Villes et Environnement – Universite Paris 8 e docente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

⁴ STF valida decisão que suspende despejos até março de 2022. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-12/stf-valida-decisao-que-suspende-despejos-ate-marco-de-2022