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A Geopolítica do Sistema Imperial | José Luís Fiori

O artigo data de 2002, mas sua (re) leitura foi recomendada pela Carta Maior em edição de julho deste ano. De autoria do cientista político José Luís Fiori, o texto “A geopolítica do sistema imperial” traça um panorama do capitalismo desde a formação dos estados nacionais ao moderno sistema econômico e político mundial. A introdução ao artigo ganhou assinatura de Saul Leblon, sob o título “A engrenagem que mastiga governos e nações”, em que ressalta a relevância do artigo no atual contexto brasileiro que reflete a crise do governo de Dilma Rousseff.

O texto “A geopolítica do sistema imperial”, do cientista político José Luís Fiori, foi publicado no site da Carta Maior e cedido ao Observatório das Metrópoles para ampliar o debate sobre a análise geopolítica internacional.

Fiori é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro “O Poder Global” (Editora Boitempo). Ele pesquisa e ensina há mais de 20 anos no campo das Relações Internacionais, e em particular, na área de Economia Política Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e a economia política do “sistema inter-estatal capitalista”.

Até 2008, publicou 9 livros e organizou 5 coletâneas. Ganhou o Prêmio Jabuti de Economia, Administração, Negócios e Direito, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1998, com o livro “Poder e Dinheiro. Uma economia Política da Globalização”, organizado com a professora M.C.Tavares; e recebeu Menção Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização Mundial e Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros. Desde 1990, publicou cerca de 230 artigos em jornais como Valor Econômico, Correio Braziliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio, e em revistas como Carta Capital, Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso e La Onda.

SAUL LEBLON: A engrenagem que mastiga governos e nações – introdução para o texto “A Geopolítica do Sistema Imperial”
Onde estamos e para onde estamos indo? A pergunta intrínseca a qualquer deslocamento humano ganha pertinência redobrada quando a neblina da história parece embaralhar os pontos cardiais da política conduzindo governos e projetos distintos ao mesmo desfecho: a rendição aos mercados.
Por trás da tragédia grega, mas também a do PT e a de Dilma no Brasil, movem-se forças e interesses que refletem a reacomodação de um poder global  mais geral, a distinguir o método, a virulência e a hierarquia de dominação dentro do capitalismo no século XXI.
Qual a singularidade da dominação hoje aparentemente difusa e sem núcleo, exceto o dos pregões que nunca dormem e o do olho ubíquo dos monitores dos mercados, em sua diuturna vigília global?
Que posição ocupa o Brasil dentro dessa roleta planetária?
Em que medida a interação de sua elite com essa mecânica mudou a natureza da luta pelo desenvolvimento e pela democracia entre nós, tornando anacrônicas, caducas algumas bandeiras e alianças propostas pela esquerda?
São perguntas obrigatórias no momento em que, mais que a sorte da nação e a do desenvolvimento, a formação virtuosa da infância, os valores e compromissos que distinguem uma democracia social de um mero ajuntamento demográfico, há muito deixaram de interessar à elite brasileira.
A expressão ‘vale tudo’ descreve com fidelidade o que tem sido e será, cada vez mais, o bombardeio  para convencer o imaginário social das virtudes intrínsecas  à troca do ‘populismo estatizante’, pela estado de exceção de direitos e conquistas sociais permanente.
Aquilo que se fez com a Grécia agora, processa-se em câmera lenta no Brasil.
Quem vê no capitalismo apenas  um sistema econômico, e não a dominação política intrínseca à sua encarnação financeira atual, subestima erroneamente a dominância global por trás da encruzilhada da luta pelo desenvolvimento em nosso tempo.
Ademais dos percalços macroeconômicos –reais e desafiadores– foi a  tentativa petista de deslocar o capital parasitário para a produção no 1º mandato Dilma – reduzindo os juros reais a 3,3%, o menor patamar da história, contra 18,5% sob FHC e 11,7% com Lula– que acendeu o estopim de um confronto, ora em fase explícita de agendamento golpista.
Interesses que tomaram gosto pelo vício de ganhar sem agregar riqueza ao bem comum, detém hoje uma hegemonia planetária, que se perpetua através de mecanismos de valorização do capital fictício, cuja escalada depende de mercados desimpedidos de qualquer maçaneta protecionistas e Bancos Centrais complacentes às exigências de elevada remuneração e baixa regulação dos fluxos de capitais.
Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, o Brasil atingiu o estado das artes nessa matéria.
A coagulação rentista de uma elite perfeitamente integrada aos circuitos da alta finança, amesquinhou a democracia brasileira, privando-a de instrumentos para dar à riqueza a sua finalidade social.
A regressividade inerente a esse processo está promovendo uma mutação acelerada nas relações sociais, aqui e no resto do mundo.
O locaute do capital diante das necessidades de investimento do país –repita-se, ademais dos entraves macroeconômicos–  é o sintoma desse esgarçamento profundo entre os detentores da riqueza e o destino coletivo da sociedade.
A greve do capital contra a ‘Dilma intervencionista’ começou aí quando a taxa de juro real foi comprimida, sem que se tenha providenciado a musculatura política necessária para enfrentar interesses descomunais  situados do outro lado da pista.
Sem o discernimento engajado da sociedade para enfrentar a riqueza que não reparte, a façanha está fadada a tropeçar na assimetria das forças em confronto.
A Grécia acaba de aprender, da forma mais dura possível, que não basta sequer legitimar uma demanda justa através de um plebiscito vitorioso.
À falta de um amortecedor propiciado pela expansão do comercio internacional, por exemplo, ou de uma ainda inexistente aliança global de interesses populares e de instituições correspondentes, como poderão vir a ser as dos Brics, dá-se o confronto direto entre os interesses das sociedades e das nações e a virulenta captura da sua riqueza pelo aspirador financeiro.
Não terá êxito diante desse xadrez quem não se apetrechar de forma desassombrada para enfrenta o embate que virá, inapelavelmente.
Uma primeira e obrigatória providencia consiste em entender as estruturas globais e as forças motrizes por trás desse enfrentamentos.
É disso que trata o texto do professor José Luís Fiori, ‘A geopolítica do novo sistema imperial’, cuja oportuna releitura Carta Maior recomenda neste fim de semana.
A GEOPOLÍTICA DO NOVO SISTEMA IMPERIAL
JOSÉ LUÍS FIORI
 
A História conta que os estados nacionais e o moderno sistema econômico e político mundial nasceram praticamente juntos, nos século XV e XVI.
Ou mais precisamente, nos conta que o próprio sistema mundial foi uma construção e um produto da expansão extraterritorial dos primeiros estados nacionais europeus.
Depois de nascer, esse sistema mundial se manteve, nos 500 anos seguintes, sob  égide política européia e do seu sistema inter-estatal.
Mas não é verdade que neste período o Estado Nacional tenha destruído ou substituído todas as demais formas de organização do poder territorial, e sobretudo os Impérios, como pensam Paul Kennedy e Charles Tilly, entre outros.
É verdade que os primeiros estados europeus nasceram da luta contra o império muçulmano e da resistêcia ao império dos Habsburgos. Mas todos estes estados também se transformaram depois, por um caminho ou outro, em Impérios, dentro ou fora da Europa.
Impérios que   duraram muito, aliás, e que só foram desmontados na segunda metade do século XX. Por isto, o mais correto é dizer que o império, ou a “vontade imperial”, foi sempre uma dimensão essencial dos próprios estados nacionais europeus,  e que foi esta vontade a grande responsável pelo nascimento do sistema político mundial hierarquizado a partir de um nucleo central composto pelas grandes potências.
Mas este núcleo central nunca foi homogêneo, coeso ou pacífico, pelo contrário, viveu em estado de quase permanente guerra.
Exatamente porque todos seus estados eram ao mesmo tempo impérios, e sempre se propuseram construir um império mundial. Por isto foram chamados de grandes potências ou potências globais, complementares e competitivas entre si.
Como dissemos num livro recente: ” o que a história moderna nos ensina é que os conflitos político-militares dentro deste núcleo do sistema mundial foram sempre provocadas por uma ‘vontade imperial’ que consegue se impor, aos demais estados, durante um certo período da história, e que a partir daí tentou construir o seu império global.
Mas o que a história também ensina é que estes projetos nunca conseguiram se completar. Em todos os casos, o impulso imperial dos poderes políticos e econômicos dominantes, acabaram sendo barrados por outras ‘vocações’, iguais e contrárias. E foi a existência simultânea destas várias vocações iguais e contrárias que produziu, em alguns momentos da história, situações de ‘equilíbrio de poder’, e em outros momentos, as grandes guerras mundiais entre os estados-potências”.
Mas mesmo nos períodos de “equilíbrio de poder”, o que de fato existiu foi sempre uma competição bipolar central que acabou contendo o caos europeu e exportando, muitas vezes,  as guerras para fora da Europa.
Foi o que se passou, por exemplo, com a bipolaridade ibérica nos séculos XV e XVI; e com a competição entre a Holanda e a União Ibérica, nos séculos XVI e XVII. Logo antes do início da longa disputa secular entre a França e a Inglaterra.
Uma complementariedade e conflito político-militar que, como nos ensinou Max Weber,  foi absolutamente decisiva para o desenvolvimento e a acumulação da riqueza capitalista das grandes potências europeias.
O mesmo quadro e as mesmas regras que se mantiveram no século XX, enquanto o sistema mundial foi gerido pela bipolaridade competitiva entre Estados Unidos e União Soviética.
O desaparecimento desta bipolaridade, em 1991, somada à “eutanásia” dos estados europeus que criaram o próprio sistema e suas regras de funcionamento, deu uma impressão inicial de que chegara enfim a hora do Império Mundial, um novo tipo de império sem fronteiras, sem estados e sem um centro de poder com base nacional.
Do nosso ponto de vista, entretanto, o centro de poder deste novo projeto imperial responde ainda pelo nome de Estados Unidos da América.
Como já dissemos noutro lugar, “o espaço deste novo tipo de Império Americano não é contínuo nem homogêneo. Seu poder apoia-se no controle de estruturas transnacionais, militares, financeiras, produtivas e ideológicas de alcance global, mas não suprime os estados nacionais, nem a hierarquia do sistema inter-estatal.
Reconhece a existência de estados, que são seus adversários estratégicos, e exerce seu poder de maneira diferenciada, com relação aos demais: vassalagem, no caso de alguns países do leste asiático e do oriente médio; hegemonia, no caso dos seus aliados europeus.
Só na América Latina, o poder imperial americano é exercido sobre um território contínuo, incluindo todos os seus estados, com a exceção de Cuba.”
O que passou foi que nos anos 90, a vitória na Guerra Fria, somada ao seu sucesso econômico, permitiu aos Estados Unidos proporem aos seus principais aliados e ao mundo em geral um projeto de integração e coordenação global das principais potências e economias nacionais, que se chamou de globalização e que dava a impressão que estivéssemos ingressando numa nova era, sob a tutela de um império mundial benevolente.
Foi o tempo em que muitos sonharam com a abundância fácil e rápida e com o fim dos conflitos e das soberanias nacionais.
Mas este projeto já havia sido engavetado pela nova administração americana empossada no início de 2001, quando ocorreram os atentados terroristas que ajudaram a decantar a “Doutrina Bush”: uma”estratégia de contenção” de longo prazo, como foi a da Inglaterra com relação à França e à Rússia, no século XIX; e a dos EUA, com relação à URSS, na Guerra Fria.
Com a diferença que agora a contenção se refere a  um “inimigo invisível” e global, e os Estados Unidos se atribuem a capacidade quase exclusiva de definir a sua localização e as suas intenções, nos seus momentos de invisibilidade.
Uma estranha “bipolaridade” mundial que delega aos Estados Unidos um direito sem precedentes de repressão interna e de intervenção externa em todo e qualquer território, estado ou sistema de fluxos onde ele localize ou decida que existe o “vírus do terrorismo”.
Mas enganam-se redondamente os que pensam que chegou ao fim o projeto neoliberal de universalização dos mercados “auto-regulados”.
Desde Hiroshima e Nagasaki, os Estados Unidos nunca tiveram receio de explicitar, nos momentos de crise, que: os mercados e as finanças globais só são possíveis, porque existe o poder político do Príncipe capaz de impor ao mundo a sua ordem e a sua moeda.
Foi o que aconteceu em 1973, quando os Estados Unidos se desfizeram do padrão ouro-dólar, instituído em Bretton Woods, dando lugar a um novo sistema monetário internacional sem referência metálica, baseado no dólar e na “credibilidade” do poder global americano.
Agora, no Afeganistão, os Estados Unidos  reafirmaram a superioridade avassaladora de suas armas e a capacidade de sustentar sua vontade e seus valores através do mundo.
A vitória inicial da ofensiva americana, e a destruição exemplar do regime talibã, recolocou o estado e as armas no epicentro do sistema mundial,  mas não engavetou o projeto liberal da globalização, apenas deixou claro para os mais cegos ou iludidos, a dimensão política, imperial e nacional deste projeto.
Por outro lado, do ponto de vista estritamente geopolítico, o consenso que foi construído em torno do combate ao terrorismo é excessivamente universal para ser eficaz.
Além disto, não é difícil de perceber a relocalização russa e o renascimento militar da Alemanha e do Japão, enquanto se dilata a importância político-estratégica da China e Índia – as economias que mais crescem no mundo, apesar da recessão mundial.
Assim mesmo, o mais provável é que por muito tempo, não ocorram conflitos militares diretos entre as grandes potências enquanto se dê  a lenta construção de uma nova bipolaridade política capaz de equilibrar o funcionamento do sistema mundial.
Neste processo deverá pesar decisivamente a estranha troca de cadeiras que está ocorrendo entre a Europa e a Ásia.
Enquanto a Europa tenta se desfazer do modelo responsável pelo seu sucesso nestes 500 anos, a Ásia finalmente se transformou num  sistema inter-estatal complementar e competitivo, igual ao que a Europa está desmontando.
De qualquer maneira, durante este período de lenta transformação do núcleo central, o mais provável é que ocorra uma exportação dos conflitos para a periferia do sistema, como no século XIX.
Por isto, a importância – para quem queira entender a geopolítica do novo sistema imperial emergente – de olhar o que está ocorrendo no Afeganistão e na Argentina. Do nosso ponto de vista, existe no momento um mesmo impasse escondido por trás das duas crises, tão distantes no espaço e no tempo. E este impasse se deve, em grande medida, à inexistência de consenso dentro do governo norte-americano, e entre as grandes potências, sobre  como prosseguir a “guerra” contra o terrorismo, depois da destruição do regime talebã, no Afeganistão; e como fazer a Argentina pagar suas dívidas.
Alguns defendem a continuação da ofensiva militar, com ataques sucessivos ao Iraque, Iêmen ou ao próprio Irã, e todos parecem estar de acordo que o governo argentino tem que honrar seus contratos e se manter nos trilhos da ortodoxia liberal.
Mas muitos temem os efeitos em cadeia da expansão da guerra na Ásia Central, e uma situação de caos social que leve à  ruptura do sistema político argentino.
Para não falar que a moratória latino-americana  trouxe prejuízos desiguais, para os capitais europeus e norte-americanos.
Por trás deste dissenso sobre a condução imediata das duas crises esconde-se, entretanto, um problema mais grave e de longo alcance,  que em geral não é mencionado pelos analistas e estrategistas internacionais.
No fim da Guerra Fria e durante a década de 1990, falou-se muito sobre as novas relações entre as grandes potências, depois do desaparecimento da União Soviética, da consolidação da União Européia e da ascensão econômica e política asiática.
Neste período, contudo, o crescimento econômico americano e a globalização do capital financeiro mantiveram a crença numa coincidência de interesses entre os países desenvolvidos e o resto do mundo.
A volta da recessão mundial , em 2001, a intensificação dos conflitos militares na periferia e as crises econômicas nos “mercados emergentes”, trouxeram para o primeiro plano uma questão muito antiga e permanente do moderno sistema político e econômico mundial: o que fazer ou como renovar suas velhas estruturas de dominação global, articuladas a partir da Europa desde o século XV? o que fazer neste novo milênio, com as antigas colônias e com os estados que  foram inventados pelos europeus, na América, na Oriente Médio, na Ásia e na África?
Como manter a “ordem” e como administrar as crises e as moratórias nacionais que deverão se multiplicar na periferia do sistema? como dividir entre as grandes potências os custos imediatos e as tarefas futuras? quem assume a responsabilidade pelo quê, e onde?
Entre 1940 e 1990, o fim dos impérios europeus e a descolonização da África e da Ásia deram origem a cerca de 100 novos estados nacionais independentes.
Em 2001, dos 188 estados membros das Nações Unidas, 125 haviam sido, em algum momento, colônias europeias que se independizaram de forma concentrada, em duas grandes ondas: a primeira delas no início do século XIX, na América, e esta segunda, depois da II Guerra Mundial, na África e na Ásia. Curtos pedaços de uma história muito longa, a própria história do sistema econômico e político mundial que nasceu no século XV, como uma projeção “extra-territorial” do poder europeu.
Seu primeiro passo foi dado por Portugal, ao tomar Ceuta dos muçulmanos, no norte da África, em 1415.
Menos de um século depois, em 1494, os europeus já se consideravam no direito de repartir o mundo, definindo, na cidadezinha de Tordesilhas, o que foi de fato a primeira “ordem mundial européia”. Depois vieram os impérios marítimos asiáticos e a colonização americana, uma caminhada que nunca mais se interrompeu.
Nos 500 anos seguintes, 8 países, com apenas 1,6% do território global (Portugal, Espanha,Holanda, França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha e Itália) foram conquistando ou submetendo praticamente todo o resto do mundo, através da conquista militar e territorial, ou através do mercado e do poder dos seus capitais.
Movimento expansivo – político e econômico – que acompanha a história do desenvolvimento capitalista e que se transformou numa dimensão constitutiva do sistema mundial moderno. Uma estrutura hierárquica de dominação global, centrada na Europa – e depois, na sua ex-colônia norte-americana – que assumiu várias formas através dos séculos: colônias, domínios, províncias de além mar, mandatos, protetorados etc.
Também neste caso se pode falar em duas grandes ondas, só que ao contrário das outras, estas foram expansivas e muito mais prolongadas: a primeira, que vai do século XV ao XVIII e é interrompida pelas independências dos estados americanos que se transformaram imediatamente em periferia econômica da Inglaterra (no sentido que deu Raul Prebisch a esta palavra).
E a segunda, que vai do século XIX ao XX, e coincide com o período da competição imperialista europeia, pelo controle da Ásia e da África.
Esta segunda onda expansiva é que foi “debelada”, depois da  II Guerra Mundial, mas o controle europeu (ou agora “ocidental”) do mundo se manteve sob a tutela da competição global e bipolar entre a União Soviética e os Estados Unidos, o verdadeiro cinturão de segurança que manteve a “ordem” dentro desta galáxia de estados nacionais que nasceu cinco séculos depois de Tordesilhas.
Immanuel Wallerstein sublinha com razão, a importância que os Estados Unidos e a União Soviética tiveram na descolonização do século XX, defendendo, desde a I Guerra Mundial, o direito à auto-determinação dos povos.
Mas no fim da II Guerra Mundial, as duas novas lideranças mundiais prometeram para todos, o desenvolvimento econômico e uma maior igualdade social.
Em 1990, o fim da URSS enterrou a promessa comunista, mas isto ocorreu no mesmo momento em que o mundo capitalista também declarava o fracasso de sua promessa desenvolvimentista.
No seu lugar colocou a utopia globalitária da integração sem fronteiras e do crescimento convergente.
Uma utopia que virou pó muito rapidamente, e hoje, na Ásia Central como na América Latina só lhes restou às grandes potências, propor ao resto do mundo, a sua velha defesa do livre-comércio, que já foi testada no século XIX.
Neste ponto, pode ser útil um pequeno recuo no tempo, sobretudo para quem queira especular, a esta altura de 2002, sobre os futuros possíveis.
Voltar ao século XIX, para entender como foi que a utopia do livre comércio acabou transformando – entre 1830 e 1940 –  3/5 do mundo em colônia europeia.
Apesar da diversidade das situações nacionais e das relações estabelecidas com a América, Áfria e Asia, sobretudo depois da independência norte-americana,  é possível identificar, na Europa industrial do século XIX,  duas grandes posições frente ao problema do seu relacionamento com o “resto do mundo”.
De um lado, os que se alinharam com Adam Smith e o Lord Shelbourne (que negociou a paz e a independencia com os norte-americano) e que já defendiam, na segunda metade do século XVIII, que as vantagens do livre comércio, para os países mais desenvolvidos, dispensavam os monopólios coloniais e as conquistas territoriais que haviam sido necessárias, nos séculos anteriores.
Estes senhores apostaram, desde o primeiro momento, que a simples superioridade econômica inglesa – acentuada pela Revolução Industrial – seria capaz de promover a especialização “primário-exportadora” das economias periferizadas, segundo as necessidades dos estados mais ricos e poderosos.
“We prefer trade to dominion”, diziam eles, e foi esta idéia que sustentou a defesa inglesa das independências políticas latino-americanas, acompanhadas pela assinatura simultânea dos Tratados Comerciais que abriram os mercados locais aos produtos manufaturados, e aos capitais financeiros  europeus.
Numa posição oposta, se colocaram quase todos os políticos e intelectuais conservadores que, na segunda metade do século XIX,  defenderam a expansão territorial e a missão civilizatória dos europeus, através do mundo.
Foi o caso de políticos como Disraeli e Palmerston, ou intelectuais como Spengler, Dilthey e Scheller que pensavam como o principe-chanceler russo Gortchakov, ou  como Cecil Rhodes, que além de defender as conquistas territoriais europeias, foi o primeiro a sustentar a tese de que o caminho da paz mundial deveria passar pela submissão do mundo às leis anglo-saxônicas.
Na mesma hora em que o alemão Carl Peters assumia, sem nenhum tipo de hipocrisia civilizatória, que “o objetivo da colonização é enriquecer, sem escrúpulos e com decisão, nosso próprio povo, às custas de outros povos mais fracos”.
Se a  posição de Adam Smith predominou na primeira metade do século XIX, a  de Cecil Rhodes se impôs de forma avassaladora a partir de 1850. Mas o mais interessante é que esta vitória não se deu no campo político- partidário, nem tampouco no campo das ideias, se deu como resultado muitas vezes inesperado da conjunção, no mundo real, do livre-comércio com a competição entre as grandes potenciais decididas a apoiar seus capitais nacionais, e impedir o avanço territorial dos seus rivais.
Esta história se repetiu muitas vezes e por todos lados, reproduzindo o modelo testado na América Latina, e que se transformou num princípio geral da política externa europeia.
Tudo começava pela assinatura (muitas vezes imposta pela força) de Tratados Comerciais que obrigavam os países signatários a eliminarem suas barreiras comerciais, permitindo o livre acesso das mercadorias e dos capitais europeus. Esses Tratados foram estabelecidos com o Império Otomano, em 1838, e depois  com a China, o Japão, o Egito, a Tunísia, o Marrocos, o Afeganistão, o Iraque e vários outros países que acabaram se especializando na exportação de matérias primas necessárias à industrialização europeia.
A nova situação obrigou, também, os governos destes países a se endividarem junto a banca privada, sobretudo inglesa e francesa, devido à perda de arrecadação com o fim das tarifas comerciais, e ao seu envolvimento na construção da infra-estrutural indispensável às exportações.
Nos momentos de retração cíclica das economias europeias, estes países enfrentaram, invariavelmente, problemas de balanço de pagamentos, sendo obrigados a renegociar suas dívidas externas ou declarar moratórias nacionais.
No caso da América Latina, as dívidas e moratórias foram solucionadas através de renegociações com os credores e transferências dos custos para as populações nacionais.
No resto do mundo, a história foi diferente: primeiro foram criados, pelos credores, os Comitês de Administração das Dívidas Publicas, que assumiam a tutela fiscal e financeira dos países endividados.
Foi o que aconteceu na Tunísia em 1869, no Egito em 1880; no Império Otomano em 1881 e assim sucessivamente em quase todos os países que haviam assinado os famosos “tratados desiguais”. Quando assim mesmo o problema se manteve ou se agravou, a solução foi a tomada direta do poder pelos estados europeus mais atingidos pelas situações de inadimplência.
Nessa história, o Egito foi um caso paradigmático, no curto período em que viveu o sonho modernizante do Quediva Ismael Paxá – entre 1867 e 1883 – sustentado pelos capitais franceses e ingleses que financiaram suas plantações de algodão, e a  construção de suas ferrovias e do Canal de Suez.
Em 1876, os financistas, os intelectuais cosmopolitas e a alta sociedade europeia foram ao Egito comemorar, junto com as elites locais, o sucesso da modernização do país e a inauguração da Ópera do Cairo, ouvindo a première da Aída de Verdi, composta especialmente para a ocasião.
Mas em 1878, o Egito já começou a enfrentar problemas sérios no seu balanço de pagamentos.
Em 1879, como conseqüência, o Quediva Ismael Paxá renunciou ao governo do Egito. Em 1880, foi declarada a moratória nacional. Em 1881, foi criado pelos credores, o Comitê de Administração da Dívida, que assumiu a tutela do fisco e das finanças egípcias. Mas apesar disto, em 1882, as tropas inglesas invadiram o Egito em nome dos credores, transformando o país numa colônia, e depois num protetorado militar, que durou até 1952.
A grande diferença, até agora, no início do ano 2002, é que em 1880, já havia consenso entre as grandes potências sobre o que fazer: elas já haviam deixado de lado a utopia de Adam Smith e haviam se decidido seguir – em defesa do livre-comércio – o caminho proposto por Cecil Rhodes,  personagem símbolo do expansionismo territorial e do imperialismo europeu.
Fevereiro de 2002