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Megaeventos: Qual legado nós queremos para o Brasil?

By 01/12/2011dezembro 18th, 2017Notícias

Por Breno Procópio, Assessor de Comunicação do Observatório das Metrópoles

“No momento em que a gente deixa parte da população fora da cidade, não há condição de falar em democracia”. A afirmação da professora da FAU/USP Ermínia Maricato foi feita durante o primeiro encontro da série de debates “Copa: Esporte, Paixão e Negócio”, promovida pelo Comitê Popular Rio Copa e Olimpíada. No auditório da ABI, no centro do Rio, Ermínia dividiu o palco com o jornalista Juca Kfouri e com o historiador Luiz Antônio Simas. Eles falaram sobre a falta de transparência nos preparativos dos megaeventos, a elitização do futebol e a ausência de um legado efetivo para a sociedade brasileira.

O jornalista Juca Kfouri começou sua apresentação comentando sobre um dos problemas mais graves dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014: as remoções e desapropriações que estão sendo feitas nas 12 cidades-sedes brasileiras (veja Relator acompanha denúncias de violação do direito à moradia no Rio de Janeiro). De acordo com Kfouri, situação semelhante ocorreu na Cidade do Cabo durante os preparativos para a Copa da África do Sul. “Uma das situações mais angustiantes que eu vi na vida foi a tal cidade de lata. Era o local para onde foram levadas aproximadamente 4 mil famílias desalojadas para a construção de um dos estádios mais lindos que existe no mundo que é o Green Point. O governo africano prometeu que seriam casas provisórias, mas até hoje eles estão lá vivendo em condições deploráveis”, afirma.

O jornalista criticou também a preparação do Brasil para os Jogos Olímpicos de 2016; segundo ele, pela primeira vez, em mais de 100 anos dos jogos modernos, o presidente do Comitê Olímpico Nacional (caso de Carlos Arthur Nuzman) irá presidir o Comitê Organizador das Olimpíadas. “O problema maior é que não há nesse comitê um nome sequer que a sociedade brasileira se sinta representada. Quer dizer, me dê um motivo para acreditar que os Jogos Olímpicos de 2016 serão diferentes do que aconteceu nos Jogos Pan-Americanos do Rio? Porque são as mesmas pessoas que estão organizando. No Pan, eles prometeram os jogos por R$ 400 milhões de investimento público, mas custaram quase R$ 4 bilhões. Prometeram despoluir a Lagoa Rodrigo de Freitas e a Baía de Guanabara, além de ampliar as linhas de metrô da cidade. Eles não entregaram nem uma coisa, nem outra”, argumentou.

A mesma lógica se repete no Comitê Organizador da Copa de 2014. Kfouri contou que Copa da França de 1998, o presidente do Comitê era Michel Platini – um dos mais brilhantes jogadores franceses –, e não o presidente da Confederação de Futebol Francês. Na Alemanha, o presidente do Comitê também não era aquele que presidia a Confederação Alemã de Futebol, mas sim Franz Beckenbauer – talvez o maior jogador da história do futebol alemão. “No Brasil, certamente porque nos falta um grande nome no futebol mundial, o presidente do Comitê Organizador da Copa do Mundo é o mesmo da Confederação Brasileira de Futebol, o senhor Ricardo Teixeira, que logo se apressou em montar um comitê à sua imagem e semelhança: a diretora executiva é a sua filha, Luana Havelange; o homem de imprensa é o mesmo da CBF, Rodrigo Paiva; o diretor jurídico é o advogado pessoal de Ricardo Teixeira e, também, cunhado de Daniel Dantas. Quer dizer, não há um nome que a sociedade brasileira se sinta representada”, afirmou.

“Eu acho que o Brasil pode fazer uma Copa do Mundo, sim. Já fez em 1950 e pode fazer de novo. Fazer a Copa do Mundo do Brasil no Brasil. E não a Copa da Alemanha no Brasil. O que significa isso? Significa que não podemos fazer 12 arenas, ou melhor, vários elefantes brancos. Porque, por exemplo, em Cuiabá não existe sequer futebol profissional. Em Natal, o estádio vai se chamar Dunas – e deve servir ao turismo, acredito. No Recife, cidade que já tem três estádios dos seus grandes clubes, agora vai construir mais um no brejo. Em Brasília, será construído um estádio para 70 mil pessoas, para os jogos do Brasiliense contra o Gama”, ironizou.

Juca Kfouri afirmou ainda que o maior absurdo em relação a estádios é a construção do Itaquerão, na zona Oeste de São Paulo. “Na capital paulista existe um estádio que há 50 anos vem recebendo jogos internacionais da Fifa – da seleção brasileira, da Libertadores, do primeiro Mundial da Fifa –, chamado Estádio do Morumbi. Quer dizer, então, que o Morumbi não serve para receber cinco ou seis jogos durante um mês de evento. Alguém pode me dizer o que isso significa?”, disse e completou: “Podem perguntar se considero o Estádio do Morumbi ideal para receber os jogos da Copa? Ideal não considero, mas ideal deve ser o aeroporto, o sistema hospitalar, o sistema de transportes, as vias de acesso, a rede hoteleira, para que a cidade se prepare na sua infraestrutura para o evento e que, depois, tenhamos algo efetivo para a população. Mas não, vamos construir 12 estádios!”.
Juca Kfouri concluiu a apresentação afirmando que o desejo não é o de impedir a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos no Brasil, mas de fazer com que o processo seja mais transparente, correto e que atenda a população, e não os interesses privados. “Nós sociedade civil brasileira somos capazes de impedir que certas coisas aconteçam, podemos lutar para que esse processo seja um pouco menos selvagem. Isso nós podemos”.

A construção de uma sociedade desigual

O depoimento da professora e urbanista Ermínia Maricato teve o tom do desabafo. Testemunha da história recente da Reforma Urbana no Brasil – primeiro na função de militante e segundo como observadora; professora da FAU/USP há mais de 36 anos; secretária de Habitação do município de São Paulo (1989-1992) e integrante da equipe que formulou a proposta da criação do Ministério das Cidades, Ermínia esteve envolvida com o tema do planejamento urbano brasileiro durante os seus 40 anos de profissão. Ao começar sua apresentação, ela falou da relação entre a Copa do Mundo e a cidade via negócio, já que a Copa representa apenas um grau a mais no processo selvagem de construção das cidades brasileiras.

“Infelizmente, temos de admitir que a elite brasileira não quer que os trabalhadores fiquem na cidade. Durante o dia, os trabalhadores podem ficar na cidade oferecendo sua mão-de-obra, mas depois a elite quer que eles desapareçam, porque eles não querem cuidar da habitação e educação dos trabalhadores, nem do transporte que é uma situação de calamidade para qualquer cidade brasileira. E nós temos no Brasil uma desigualdade que é uma das maiores do mundo. E isso num contexto positivo para o País, já que voltamos a ocupar a sexta posição do PIB do mundo, e, no entanto, temos uma das situações mais desiguais do mundo”, afirmou.

Ermínia comentou que o IBGE divulgou os últimos dados sobre a desigualdade brasileira os quais mostram que 10% da população brasileira concentram 75% da renda, sendo que parte dessa concentração é resultante da renda fundiária e imobiliária.

A valorização imobiliária é um dos grandes negócios da Copa do Mundo. A professora conta que visitou a África do Sul durante a Copa, e conheceu um conjunto habitacional na Cidade do Cabo para 600 mil pessoas. “Dá para imaginar isso? Um depósito de gente, reunindo 600 mil pessoas em situação de pobreza. Situação parecida está sendo vivida pelos moradores de Vila Autódromo, no Rio de Janeiro. Vemos que não há razão para eles sejam retirados dali; a única explicação é a do lucro, é a lógica de valorização imobiliária. Como uma região pode se valorizar se os trabalhadores pobres vivem ali?”.

“Essa questão de que na cidade não cabem os trabalhadores é uma questão grave e séria, e que faz parte do nosso cotidiano. E muita gente, que é o senso comum, acha que os moradores de favelas ou de loteamentos ilegais são um apêndice da cidade. Mas isso não é verdade. Frequentemente, eles são regra, e não exceção”, afirmou.

Ermínia argumentou que na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, pesquisas mostram que 50% dos domicílios estão em situação ilegal. E situação parecida pode ser verificada em Belém, São Luís, Fortaleza, Natal, Recife, Salvador e outras cidades. “Eu já escrevi mostrando que a lei é usada de forma completamente ambígua no Brasil: às vezes para incluir, outras para excluir. De forma muito arbitrária. Quando eu sei que mais da metade de uma cidade está fora da lei, o que significa a lei. O que adianta termos uma das leis mais avançadas do mundo como o Estatuto da Cidade que não é respeitado?”.

O esporte símbolo da cultura brasileira

“O futebol no Brasil começou como um esporte das elites e, ao longo do processo histórico, ele vai se popularizando, de certa maneira é como se as massas tivessem tomado o futebol para elas. Eu acho que agora começamos a ver uma inversão perversa que é o retorno do elitismo no futebol. Ou seja, o esporte que começou sendo praticado pelas elites e, depois, se popularizou, agora volta a ser elitista de novo”. A afirmação do historiador Luiz Antônio Simas resume bem o processo pelo qual o futebol brasileiro tem passado nos últimos anos: a paixão pelo clube e por todos os símbolos que fazem parte dele – sua história, cidade, bairro, camisa, flâmula e personagens – começam a ser deixados de lado em prol de um futebol de gestão, de resultados e de negócio.

Segundo o historiador, os preparativos para a Copa do Mundo 2014 representam bem esse processo. “Os governantes estão falando agora da privatização do Maracanã, que não é mais um estádio, mas um palco da história de uma das maiores paixões do carioca e do povo brasileiro. Além disso, o futebol passou a ser tecnocrático, com uma linguagem do mundo dos negócios: agora não temos mais estádios, mais arena multiuso; não é mais banco de reserva, mas plantel de reposição; e o craque desapareceu, surgindo no lugar dele o jogador diferenciado”.

Luiz Antônio Simas argumentou ainda que dois caminhos se desenharam como possíveis para o futebol brasileiro: o da economia da cultura ou da cultura da economia. Sendo que o que se vê atualmente é a cultura da economia predominando, ou seja, o negócio dita tudo. “É preciso entender a dimensão simbólica do futebol, de construção de uma identidade nacional, numa das raras capacidades de ascensão das camadas populares em um País que após o processo de fim da escravidão não abriu espaço formal para a inserção das massas. Logo, a questão simbólica do futebol é imensa. Quando vemos aquela cena de 1958 do Rei Gustavo da Suécia cumprimentando um descendente de índio funi-ô, Garrincha, e um negro, Pelé, aquilo tem um significado maravilhoso para o Brasil. Esse mundo da gestão empresarial apaga ou ignora todo esse cabedal simbólico que o futebol tem, e do que é ser brasileiro”, defende.

“A minha proposta é por uma economia da cultura, ou seja, que se submeta a economia à Cultura, já que ela é o campo de representações simbólicas, das projeções de anseios e reinvenção da vida. E o futebol faz parte disso no Brasil”.