Skip to main content

Paula Santos Menezes, pesquisadora do LAET/ENTPE (França)¹

A França contou com uma série de medidas sociais mínimas para atenuar o impacto não apenas da pandemia, mas principalmente das regras de confinamento e de restrições para inúmeros setores. Essas medidas, no entanto, não impediram a proliferação de desigualdades em relação ao trabalho e à mobilidade: por exemplo, trabalhadores de setores que puderam continuar em teletrabalho mantiveram sua segurança financeira, mas aqueles de setores fechados viram uma maior degradação financeira, mesmo com a ajuda do mecanismo de “desemprego técnico”. Muitos destes, ao final do primeiro confinamento (março/maio de 2020), perderam em definitivo seu emprego. O setor cultural, de turismo e o setor de bares e restaurantes foram os mais afetados pelas medidas de fechamento, assim como alguns setores industriais e de construção civil. Os trabalhadores destes setores foram então colocados em desemprego técnico, justamente por serem setores cuja atividade não pode ser executada em domicílio. O chamado teletrabalho também acabou por definir a prática de grande parte dos trabalhadores dos setores não-essenciais. A imposição desta prática amplificou as desigualdades em relação às condições de alojamento e em relação à carga com cuidados da casa e crianças.

Teletrabalho, trabalho remoto, trabalho à distância: qual definição?

Um dos primeiros pontos que se destacaram na crise da pandemia foi a imposição do teletrabalho para os trabalhadores considerados dos serviços não-essenciais. No mundo da pesquisa, consagrou-se portanto o termo “teletrabalho” para qualificar a prática do trabalho a partir de seu domicílio. No entanto, a observação desta prática fora do contexto de confinamento revela uma série de diferenças importantes para quem executa seu trabalho em domicílio. Tremblay, Chevrier e Di Loreto (2006)² chamam a atenção que o trabalho em domicílio se distingue do teletrabalho, pois este diz respeito ao trabalho que utiliza necessariamente as tecnologias de informação e comunicação. Os pesquisadores afirmam que a literatura específica normalmente inclui na definição de teletrabalho aquele que se realiza em centros de coworking ou escritórios satélite, o trabalho nômade e o de telemarketing.

O trabalho realizado em domicílio sempre foi associado à precariedade das condições de trabalho, seja nos setores manuais ou intelectuais. Ele é parte de sistemas flexíveis de produção como, por exemplo, no setor de confecções³, ou em vendas. No entanto, no contexto da pandemia, o termo “teletrabalho” acabou por qualificar o trabalho realizado em domicílio com as TI, nos setores considerados “não essenciais” da economia. As pesquisas em curso então adotaram a categoria de teletrabalho para todos os setores cujo trabalho pode ser realizado em domicílio com a ajuda das TI.

No entanto, duas pesquisas utilizam distinções importantes para interpretar os resultados do impacto do teletrabalho no contexto pandêmico. A pesquisa das agências ADEME/6T⁴ observa uma forte diferença na percepção do teletrabalho entre aqueles que o realizaram pela primeira vez durante a pandemia e aqueles que já o realizavam antes. A pesquisa da agência ANACT⁵ também nota que o contexto de “teletrabalho forçado” deve ser levado em conta na interpretação de resultados, como, por exemplo, na percepção dos trabalhadores sobre cansaço e eficiência do trabalho em domicílio.

Os impactos diferenciados da crise: resultados das pesquisas na França

São inúmeras as pesquisas na França que procuram observar os impactos diretos da crise da pandemia e as tendências que parecem se desenhar para o pós-crise. A França contou com dois confinamentos em 2020, e um terceiro em abril de 2021 (ver Infográfico), e utilizou medidas para mitigar o empobrecimento das famílias, que viram uma forte degradação financeira: cheque-energia, ajuda financeira para estudantes, desemprego técnico, ajuda a pequenas empresas, dentre outras medidas. A medida de maior impacto foi a utilização do “desemprego técnico”⁶ para os setores com forte baixa de atividade ou interdição total e a imposição do teletrabalho para os outros setores.

Infográfico: Medidas governamentais na França e seus impactos. Elaboração da autora.

A enquete regional COVIMOB⁷, que investigou aspectos da mobilidade e do trabalho entre habitantes da Metrópole de Lyon e sua região, aponta que o teletrabalho foi praticado por 46% dos entrevistados, no centro urbano, e cerca de 30% no Departamento como um todo. Estes trabalhadores continuaram a praticar o teletrabalho parcial ou totalmente (em média, 32%), confirmando a tendência do teletrabalho para além do período de confinamento. Em relação à mobilidade, a pesquisa regional constatou que 27% daqueles que continuaram a ir ao trabalho durante o confinamento abandonaram o transporte público: 14% pelo carro, 9% à pé e 4% bicicleta. Uma outra observação da pesquisa é que a menor mobilidade durante o confinamento facilitou o uso de modos ativos entre os automobilistas inveterados (pela simplificação da cadeia de atividades). A pesquisa aponta, porém, que houve pouca mudança após o primeiro confinamento em relação aos uso dos modos de transporte, sendo apenas a mudança modal em detrimento do transporte público uma tendência mais forte.

A pesquisa nacional EPICOV⁸, que analisa dados epidemiológicos e sociais de 135 mil pessoas na França, aponta que o desemprego técnico foi maior entre os não qualificados (entre 15 e 17% contra 5% para quadros superiores), com baixa renda, e entre famílias super densas e de imigrantes. Em contraposição, o teletrabalho foi praticado por  50% dos quadros e por apenas 1% dos operários. As condições de alojamento também definiram o perfil da pandemia, tanto pelas condições de contaminação quanto em relação às condições para o trabalho. Os pesquisadores registram que 14% dos entrevistados vivem em alojamentos super densos, mas que este número se eleva para 41% entre imigrantes.

A pesquisa também nota duas situações extremas que implicam diferentemente dois grupos nos efeitos da pandemia: mulheres imigrantes (1/3 trabalharam durante o confinamento) e homens de nacionalidade francesa, empregados como quadros superiores (apenas 15% continuaram a ir ao trabalho durante o lockdown). De fato, analisando estas e outras pesquisas, uma série de desigualdades vem à tona quando se trata de condições de trabalho ou da residência. Entre as populações mais afetadas pelo desemprego, estão os trabalhadores de setores do comércio, restaurantes, trabalhadores da indústria, e estudantes-trabalhadores. Em relação à carga de trabalho, são as mulheres gerentes que se sentem mais cansadas e que dispensaram maior tempo com o cuidado com as crianças (ANACT, 2020). Em relação ao teletrabalho, aqueles que praticaram com melhores condições vivem em alojamentos maiores e fora dos centros urbanos (COVIMOB, 2020).

O aumento da desigualdade em aceleração?

As pesquisas que apresentamos cobrem principalmente as desigualdades de acesso (ao emprego, à mobilidade, a condições de alojamento para teletrabalho). No entanto, estas desigualdades de acesso podem ser relacionadas com futuras desigualdades em relação à renda e à vulnerabilidade social, visto que elas se acumulam a desigualdades pré-existentes à pandemia.

Embora a França tenha contato com medidas de ajuda financeira mínimas, o empobrecimento da população e a vulnerabilidade alimentar são aspectos que restam a serem avaliados. Uma forte degradação da renda das famílias (pois mesmo as ajudas financeiras estatais não chegam ao salário mínimo para a maior parte) e o desemprego, combinados a uma constante privatização da saúde e do transporte, poderá gerar um cenário não apenas de maior vulnerabilidade e miséria destes grupos mais pobres, mas, igualmente, um cenário de êxodo urbano para as famílias de classe média. O teletrabalho e o desemprego técnico parecem ser uma solução apenas parcial a problemas de renda mínima, de garantia de emprego e de diminuição das desigualdades de mobilidade, mas não parece consistir em uma resposta forte aos problemas que estão por vir.

Os efeitos da crise da COVID-19 podem ter uma configuração parecida com a crise de 2008 na Europa: os 10% e os 1% mais ricos cresceram menos com a crise de 2008, mas seus rendimentos continuam mais altos que nos anos 1980, enquanto a renda dos 20% mais pobres não parou de decrescer entre 1983 e 2014⁹. As pesquisas sobre COVID-19 mostram que os setores populares urbanos vivem em um contexto de forte superpovoamento de alojamentos, e viram um prolongamento da situação de desemprego nos setores que estão impedidos de funcionar (comércio, restaurantes, turismo, cultura). O plano de recuperação será fundamental para evitar o empobrecimento agudo das classes mais vulneráveis, assim como a recuperação de inúmeras pequenas empresas fechadas durante a explosão de crise sanitária. Diante do cenário de injustiça fiscal desenhado nos últimos anos (PIKETTY, 2018)¹⁰, alinhado ao aumento dos aluguéis e custo de vida nas grandes cidades, levando ao superpovoamento ou à estratégia de saída dos centros urbanos pelas classes médias, não apenas a vulnerabilidade das classes populares é um risco como também o avanço das políticas ambientais que visam a diminuição do uso do carro e o controle da difusão residencial.


¹ Doutora em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista nos temas de trabalho, educação e desigualdades. Atualmente é pesquisadora do LAET (Laboratoire Aménagement Economie Transports), na França, e trabalha com o tema da mobilidade/trabalho e com pesquisas sobre os impactos da crise da COVID-19 na região Auvergne-Rhone-Alpes.

² Tremblay D.-G., Chevrier C., Di Loreto M. (2006), Le télétravail à domicile : Meilleure conciliation emploi-famille ou source d’envahissement de la vie privée ?, Revue Interventions économiques/Paper in Political Economy, n°34. Disponível em: http://journals.openedition.org/interventionseconomiques/689

³ Santos Menezes, Paula C. (2014). Empresa, Territórios e Trabalhadores na Indústria da Moda, no Brasil e na Itália. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

⁴ Ver: https://www.ademe.fr/teletravail-immobilite-modes-vie

⁵ Ver: https://www.anact.fr/teletravail-en-confinement-les-premiers-chiffres-cles

⁶ Dispositivo para evitar licenciamentos, o chômage partiel/technique foi criado em 1968 (acordo), institucionalizado em 1975 (lei relativa aos licenciamentos por causa econômica) e ampliado em 1993 (TRILD) , mas sua modificação em 2008 visou ampliar as ajudas para setores em dificuldade, tendo em vista os efeitos da crise de subprime. Em sua letra atual, o código prevê o pagamento de 60% a 70% do salário dos empregados de empresas em dificuldades. Os trabalhadores ficam sem atividade temporariamente, mas ainda ligados à empresa. Fontes: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGISCTA000027628846/ (artigo R. 5122-1 do Código do trabalho), https://www.aefinfo.fr/depeche/630058-le-chomage-partiel-un-outil-proteiforme-au-centre-des-politiques-de-l-emploi-depuis-un-siecle, Lallement, M., & Lefèvre, G. (1997). Le chômage partiel en France et en Allemagne: des logiques institutionnelles aux pratiques d’entreprise. Loisir et Société / Society and Leisure, 20(1), 25–49.doi:10.1080/07053436.1997.10715536 e https://www.vie-publique.fr/sites/default/files/rapport/pdf/124000317.pdf

⁷ Pesquisa realizada pelo LAET (Laboratoire Aménagement Economie Transports) e pelas agências Mobil’Homme, Transae e Arcadis. Financiada pela Metropole de Lyon, Sytral, CNRS e Index Université de Lyon. Para acesso aos resultados, entrar em contato com a autora.

⁸ Pesquisa realizada pelo ISERM, DREES e INSEE. Disponível em: https://www.epicov.fr

⁹ Ver relatório do World Inequality Database (WID): Garbinti, B.; Goupille-Lebret, G; PIketty, T. (2018). Income Inequality in France (1900-2014): evidence from distributional national accounts. Disponível em: https://wid.world/document/b-garbinti-j-goupille-and-t-piketty-inequality-dynamics-in-france-1900-2014-evidence-from-distributional-national-accounts-2016/

¹⁰ Ver: https://www.lemonde.fr/blog/piketty/2018/12/11/gilets-jaunes-et-justice-fiscale/