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Por Alessandra Almeida e Aline Prado
Observatório da Mobilidade de Salvador*

No dia 10 de dezembro de 2021, a Prefeitura Municipal de Salvador, por meio da Secretaria da Mobilidade e através do Ofício 0255/2021-COPRO, garantiu às mulheres[1] o direito de solicitar o embarque ou desembarque fora dos pontos de paradas previamente cadastrado nos itinerários, no período entre 21h e 5h da manhã do dia seguinte.

Mas é preciso lembrar que anteriormente, em 30 de novembro de 2021, foi proposto no Senado um Projeto de Lei Nacional (PL 3.258/2019, da Senadora Daniella Ribeiro – PP/PB) que garantiria a mulheres, pessoas idosas e pessoas com deficiência o direito de desembarcar fora dos locais de parada de ônibus no período noturno em todas as cidades brasileiras. Enquanto esse projeto não é aprovado pela Câmara dos Deputados e se torna a regra nacional, algumas cidades e estados têm se mostrado presentes neste assunto, como foi o caso de Salvador.

Consideramos esta uma grande e importante vitória na luta pelo fim das violências contra as mulheres, arregimentada pelos movimentos sociais na conquista e proteção de direitos. O impacto disso se dá automaticamente na garantia da acessibilidade aos transportes, com a qual se dá o alcance à saúde, educação, trabalho e até lazer; mas, sem sombra de dúvidas, impactam na segurança e na proteção à integridade física de mulheres na nossa cidade.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil (Reprodução ObMobSSA).

Vamos olhar de perto e entender um pouco melhor?

De acordo com a pesquisa de Origem-Destino realizada pelo Departamento de Infraestrutura de Transportes da Bahia, na Região Metropolitana de Salvador, a população feminina é significativamente maior que a de homens, e são as elas que realizam o maior número de viagens (50,9%). Sendo assim, o transporte público é usado principalmente pelas mulheres (44,18% dos usuários de ônibus são homens e 55,82% são mulheres).

As mulheres cis fazem parte do grupo de pessoas que podem gerar outra vida dentro dos seus próprios corpos. Assim, para gestantes, deslocar-se é algo naturalmente mais complexo. A situação piora se elas tiverem de fugir dos diversos riscos enfrentados em nossas cidades especialmente à noite. Ainda tem outra questão do corpo feminino que não é considerado quando nos deslocamos pela cidade. Mulheres menstruam, absorventes vazam, cólicas fazem doer, inclusive as pernas. E a urgência menstrual é algo sério e tão natural quanto respirar. Muitas vezes, poder chegar o mais rápido possível em casa é quase um caso de vida ou morte social.

Mas para além das concretas especificidades biológicas de um corpo de fêmea, que também podem incluir horário de amamentar e o vazamento de leite, tem-se a forma como as mulheres são vistas e tratadas socialmente. É inquestionável que, na nossa sociedade, as mulheres são as maiores responsáveis pelo cuidado com a prole, com a família e com a casa. Em geral, se deslocam com seus pertences e de outrem e, não raramente, também com as compras, após uma diversidade de atividades da rotina de ser mãe, esposa, cuidadora das pessoas idosas, trabalhadora doméstica, estudante universitária, entre tantas outras.

Entretanto, da mesma forma, vivemos numa sociedade significativamente hostil com elas. As estatísticas oficiais mostram que a pandemia tornou-se um problema muito maior para as mulheres (ver aqui, aqui, aqui e aqui) em função, justamente, do isolamento com o agressor. Será que a possibilidade de o transporte coletivo parar fora do ponto não pode auxiliar na fuga necessária a ponto de salvar a vida dessa mulher vítima de violência?

Dados disponibilizados pela Diretoria de Vigilância à Saúde, da Secretaria Municipal da Saúde de Salvador revelaram que a comparação entre as notificações da violência interpessoal e autoprovocada do primeiro semestre de 2019 e mesmo período de 2020 demonstraram que o perfil das vítimas do sexo feminino permanece e representa mais de 70% das estatísticas. “Elas são em sua maioria negras, na faixa etária de adolescentes e adultas jovens, sofrem principalmente agressões físicas e percentuais abaixo de 7% são gestantes”. Esse também é um perfil muito parecido com o das usuárias do sistema de transporte coletivo. Estamos falando de vulnerabilidades e de como elas se misturam entre si.

Sabemos que, no Brasil, a maioria do feminicídio sofrido pelas mulheres é praticado em seus lares com autoria de seus parceiros ou ex-parceiros. No entanto, há um outro dado bastante triste sobre outras violências também sofridas pelas mulheres fora de seus domicílios e talvez a mais grave delas seja a violência sexual. Aqueles mesmos dados disponibilizados pela Secretaria de Saúde também mostram que 44% das denúncias feitas no Disque 180 pelas mulheres residentes em Salvador são relativas à agressão sexual.

A Meu ponto seguro, uma grande pesquisa realizada no Brasil, pela Think Olga, entre Outubro de 2019 e Março de 2020 com mulheres entre 10 a 69 anos, mostrou que, no DF e em 25 Estados, abarcando 86 cidades brasileiras, incluindo Salvador, 76% das entrevistadas se sentem inseguras nos pontos de ônibus, 69% em seu trajeto até o ponto, 70% acham a iluminação inadequada no ponto à noite, 73% relatam a ausência de pessoas próximas a elas no ponto. A insegurança é fruto das importunações sexuais e assédios que vêm de todos os lados, mas sempre de um homem (cis) que passa a pé, de moto ou de carro.

Em relação a esse fato grave, outras pesquisas realizadas por Organizações Feministas, mas também pelo Estado brasileiro, por meio do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), demonstram que mulheres sofrem assédio e importunação sexual nas ruas e dentro dos transportes coletivos. Temos certeza de que você já notou ou conhece algum caso ocorrido com alguém distante. Evidentemente que isso também tem relação com a ausência da gestão democrática dos meios de transportes, prevista na Política de Mobilidade.

Sabemos que são muitas as dificuldades dentro de uma grande cidade como Salvador e que as ruas andam bastante inseguras para as pessoas no geral. O medo dos assaltos, das abordagens e agressões gratuitas, em função do aumento da violência urbana, os estresses diários diversos, o cansaço da rotina dura… De fato, há muita coisa pra contabilizar, mas, por certo, as chances de um homem ser abordado e estuprado, tendo a escuridão da rua e a precariedade dos pontos como parceiro do ataque, são muito menores. E você não acredita naquele lance da roupa salvadora, não é mesmo?

E quanto às mulheres trans? Bem, as mulheres trans ainda têm sobre si a sombra da marginalidade. O preconceito e a violência fazem com que muitas sejam perseguidas, espancadas e mortas nas ruas, tornando suas vidas um pesadelo e desafio constantes, sobretudo na calada da noite, onde as coragens covardes aparecem.

Não podemos deixar de falar em outro grupo de mulheres que precisa ter destaque na utilização dos transportes coletivos: as mulheres com deficiência ou de baixa mobilidade. Para estas, a mobilidade reduzida é uma constante que pode representar risco aumentado, o que deixa a flexibilidade da parada ainda mais significativa, mesmo que em um período curto e pré-definido.

Vale observar, no entanto, que além das adversidades diárias relacionadas à microacessibilidade, essas mulheres necessitam que 100% da frota esteja adequada para sua utilização, o que ainda é questão problemática na nossa cidade. Os veículos “amarelinhos” (complementares), por exemplo, não possuem adequação. O restante da frota oficial ainda está no processo de adequação (o último anuário divulgado de 2018 sinaliza que 94,3% da frota estava adaptada (SALVADOR, 2018)) e está rodando de forma tão precarizada que muitos elevadores não funcionam. Essa expressão de capacitismo se constitui uma barreira ao direito básico e universal de ir e vir, uma vez que as relega à invisibilidade e às agressões diárias nos transportes, ao passo que as obriga a aguardar muito mais tempo nos pontos de ônibus à espera de um transporte apropriado para a sua viagem.

Estamos vivendo mudanças sociais significativas nas cidades, o treinamento dos profissionais de trânsito, que serão os agentes principais para a prática esta nova orientação municipal é indispensável e substancial para que isto se torne uma cultura em Salvador. A maioria dos motoristas e cobradores dos transportes coletivos são homens que vivem sob uma cobertura machista social e estará na mão destes a implementação do ofício no dia a dia. Outra questão indispensável, é que este ofício, que serve como uma orientação, se transforme em lei municipal ou federal, para que assim o direito possa se transformar em hábito e ser totalmente concretizado.

Assim, quando festejamos a possibilidade de uma mulher ser protegida por ações simples como essa, não se está festejando nenhum privilégio, nem se desejando maiores ou melhores direitos e não está retirando direitos de ninguém. Também não se trata de negligenciar os homens ou travar a guerra dos sexos, o que, além de ser um fardo, está na contramão da história. Ao contrário, estamos dando passos importantes para protegê-las como cidadãs, ao tempo em que se acende essa luz de alerta para uma reflexão constante e mais do que importante sobre a mudança de comportamentos hostis e tão frequentes, que vitimizam mulheres em nossa sociedade e que demandam ações concretas. Isso é também mobilidade acessível socialmente.

Para a mulher que no momento da solicitação não tiver seu direito assegurado, recomendamos registrar a denúncia na ouvidoria da Semob Salvador através do número 156 ou pelo e-mail: ouvidoriasemob.ssa@gmail.com, informando o número do carro, localização e horário da ocorrência.

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[1] O ofício soteropolitano não descreve de forma literal a inclusão de mulheres trans no ofício, porém temos no país diversos dispositivos legais que abraçam esta inclusão como inescusável. Por exemplo, o Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2018) ou a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2018). Desta forma, sob nosso entendimento o Ofício 0255/2021-COPRO se refere às mulheres cis e trans.

*A publicação deste artigo resulta de uma parceria entre o Observatório da Mobilidade de Salvador (ObMobSSA) e o Observatório das Metrópoles. Lançado em 2021, o ObMobSSA é um importante espaço da sociedade civil de Salvador e Região Metropolitana para acompanhar a elaboração, financiamento e execução das políticas públicas relacionadas à mobilidade urbana. Saiba mais em: www.obmobsalvador.org

REFERÊNCIAS

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CFP. Resolução no 1. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolução-CFP-01-2018.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2021.

CNJ, C. DO. Provimento n. 73. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/06/434a36c27d599882610e933b8505d0f0.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2021.

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