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A eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República no último domingo instaura um cenário de incertezas em relação futuro político do país, com pouca clareza de quais os rumos que serão seguidos no plano das políticas sociais, sobre que alianças serão firmadas para dar sustentação ao novo governo, ou mesmo sobre a manutenção dos direitos fundamentais e da ordem democrática. Medidas polêmicas como a extinção do Ministério das Cidades  ou a fusão do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura já vem sendo anunciadas por seus aliados políticos, alertando para a necessidade de manter um olhar crítico em relação ao retrocessos que podem vir a ocorrer.

Reproduzimos aqui uma entrevista concedida por Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da USP e presidente do CEBRAP, ao Nexo Jornal (link), onde ela faz uma primeira análise sobre as contradições a os desafios que estão postos por esse novo governo.

 

por João Paulo Charleaux para o Nexo Jornal
29 de outubro de 2018

 

O que a sra. projeta a partir do resultado desta eleição, no que diz respeito ao governo Bolsonaro, que assumirá em 1º de janeiro?

Angela Alonso: O discurso dele, logo após a divulgação do resultado, foi relativamente moderado em relação a tudo o que ele mesmo e os filhos dele vinham dizendo nos últimos dias. Ele usou várias vezes a palavra “democracia”, palavra que não havia sido muito usual no discurso dele como candidato. Por outro lado, ele também mostrou as características retóricas marcantes de sempre. Foi um discurso muito religioso, que fala contra a esquerda e que fala contra os partidos no fim das contas, porque ele repete muito “o Brasil, o Brasil”, mas abre pouco espaço para a diferença. Essa é uma das coisas que a gente vai ver bastante daqui em diante. É um discurso tradicional, no sentido de enfatizar valores tradicionais. E é um discurso de quem está de costas para a diversidade da sociedade brasileira. O governo que se abre agora será muito mais fechado para qualquer tipo de negociação com a diversidade, com a diferença, com a sociedade organizada. Basta ver os discursos que ele fez no final da campanha, contra os ativismos. Haverá dificuldade para dialogar com setores da sociedade organizada que não sejam da mesma posição que a dele. Então, teremos um governo de direita em seu sentido mais clássico, que é um governo que empodera o Executivo, centraliza decisões na figura do líder e abre pouca possibilidade para a diferença e para a negociação.

Mas Bolsonaro não é um político de extrema direita?

Angela Alonso: Durante a campanha ele fez um discurso de extrema direita, pela eliminação do adversário. As características que ele apresenta são autoritárias. Todas as falas dele apontam para intolerância, que é outra característica da extrema direita. Não se trata só da defesa da tradição, como no caso da direita, quando se refere à família, à religião e à propriedade. Ele aponta mais para um discurso de extrema direita mesmo, que traz a intolerância e a eliminação, a perseguição dos adversários. E eu não acho apropriado usar o termo fascismo.

E com relação à oposição? O que a sra. projeta para os próximos quatro anos, em relação ao grupo político que saiu derrotado agora?

Angela Alonso: O centro é o grande perdedor desta eleição. O PT perdeu a eleição presidencial, mas teve 44,87% dos votos, numa campanha como esta, na qual o candidato [Haddad] só se apresentou de fato umas três semanas antes da votação. Foi, então, uma campanha até que bem sucedida. O PT fez a bancada mais expressiva. O partido não sai tão mal na foto como parecia no começo, mesmo não tendo emplacado várias de suas lideranças. Já os partidos de centro, como o PSDB, saem muito combalidos. A oposição vai se reestruturar agora. A questão é se vai haver uma possibilidade de coalizão à esquerda, um alinhamento para a construção de uma nova força de esquerda que una diferentes facções, ou se a gente vai ver um cada um por si, que foi a direção que o Ciro Gomes [PDT] tomou, de andar sozinho e de se credenciar para a próxima presidencial. Só que a próxima eleição presidencial é daqui a quatro anos, se tudo correr bem. Então, por enquanto, o que vai ocorrer com a esquerda é uma incógnita.

Como avalia o processo eleitoral? E como a democracia brasileira sai dele?

Angela Alonso: É um grande baque para a democracia brasileira eleger um candidato de extrema direita. Desde o início do processo de redemocratização, nós tivemos governos de centro, governos de centro-esquerda, mas não tivemos nenhum governo declaradamente de direita. Mesmo o governo de Fernando Collor [1990-1992] era um governo que tinha uma plataforma liberal, tinha um tom tradicionalista, mas não era, por exemplo, um governo de características religiosas. Esse apelo à religião, à família; esse elemento militar, essas características são novas. E, de diferentes maneiras, elas trazem desafios para a democracia. A gente vai ter agora governadores militares, teremos um militar na Presidência da República, teremos muito provavelmente ministros militares, então, como essas pessoas, que estão acostumadas a lidar com um sistema de hierarquia e de comando, vão reagir às regras do sistema democrático, que é um sistema pautado pela negociação, pela concessão? É imprevisível. Eu vejo com grande preocupação.

Esta eleição teve crescimento no índice de sucesso de candidatos militares. O presidente eleito e seu entorno direto está formado por membros da reserva das Forças Armadas, muitos deles entusiastas da ditadura militar e seus protagonistas. É possível dizer que esse setor terá um peso grande no novo governo?

Angela Alonso: Sem dúvida nenhuma. É um setor que terá um peso importante. Uma das grandes dificuldades desse governo vai ser justamente alinhavar setores muito diferentes. Por um lado, ele [Bolsonaro] faz um aceno ao mercado, com os princípios liberais de menos Estado, menos intervenções, privatizações, que é muito representado pela figura do provável ministro da Economia dele [Paulo Guedes], mas esses são princípios muito diferentes dos princípios defendidos por essa ala militar, que, no Brasil — tradicionalmente, pelo menos — é um setor que tem uma tradição estatista, que tem uma preocupação estratégica muito forte, do ponto de vista da política internacional, e que tem valores que são diferentes dos valores dos liberais. A conciliação entre esses princípios vai ser bastante difícil no cotidiano do governo. Eles não têm tido grande preocupação com a coerência, de modo geral, mas, na hora de tomar decisões, tudo isso terá de ser pesado. Algum setor vai acabar tendo que controlar o governo. Do contrário, o governo vai sofrer de paralisias e de contradições, de vai e vem. É uma coalizão difícil de administrar. Considerando ainda que ele tem um grupo de seguidores, de admiradores e de correligionários que esperam um governo muito intervencionista, sobretudo na área de segurança e dos costumes, é difícil imaginar como essas coisas todas vão conviver harmonicamente.

Que leitura a sra. faz desse novo Congresso, no qual o partido do presidente eleito saltou de 1 para 52 deputados federais, mas no qual o PT surge como a maior bancada? Como deve ser a relação com o Legislativo?

Angela Alonso: Eu não sou especialista na dinâmica interna do Legislativo, mas eu acho que vai ser difícil operar com essa pulverização de partidos. O que se elegeu na Câmara dos Deputados, sobretudo, é uma colcha de retalhos. O partido dele [PSL] não chega a ser bem um partido. Ele acabou de se constituir, praticamente, tem pouco tempo, não tem lideranças consolidadas, não tem operadores, que são aquelas pessoas que conhecem bem as regras, que sabem fazer o jogo parlamentar, sabem com quem conversar, sabem como funciona a dinâmica do Congresso, e eu não vejo ninguém com essas características nessa bancada eleita. Ou vai emergir alguma liderança nessa competição ou ele vai acabar tendo que trazer para si algumas das lideranças antigas, que ele mesmo combateu ao longo da campanha, políticos mais experientes, mais à direita, que se reelegeram.

Em relação à sociedade civil: como ficou o ambiente pós-eleitoral? As divisões, por vezes extremamente polarizadas e até violentas, estão superadas, ou devem pautar os próximos anos? Angela Alonso: Sociedade civil não é um termo muito bom para descrever o que nós temos. Normalmente, a gente associa esse termo a características muito positivas. Eu acho que a gente tem uma sociedade organizada politicamente, mas essa sociedade está organizada em duas direções diferentes. A polarização dos últimos anos mostra com clareza isso. Nós temos grupos de esquerda organizados e mobilizados. E temos grupos de direita organizados e mobilizados. E, quando eu digo esquerda, há grupos diferentes, socialistas, autonomistas, de diferentes matizes. E à direita também: há grupos liberais, conservadores, autoritários, enfim, há uma grande variedade. Eu acho que esses grupos vêm se comportando diferente e vêm se indispondo, uns com os outros, desde 2013. A sociedade está mobilizada em duas direções. Isso pode continuar, porque a eleição não resolveu o conflito. Seria diferente se tivesse sido eleito um terceiro candidato. Mas esses dois [Bolsonaro e Haddad] representam esses dois lados da mobilização. Além desses grupos organizados no mundo urbano, tem ainda o tipo de conflito que nós temos desde sempre no interior do país, em regiões menos alcançadas pela imprensa, menos alcançadas pelos grupos de direitos civis. Lá há conflito pela posse terra, em torno dos territórios indígenas. Esses conflitos vão se exacerbar com esse discurso de liberação das armas, assim como ocorrerá nos centros urbanos, com liberação de milícias. Nós temos uma situação agora na qual grupos que já vinham fazendo uso da violência para resolver conflitos têm um terreno aberto para fazer isso. E a polícia recebeu, ao longo desse período, todos os sinais de que está liberada para impôr a visão de ordem que o candidato, agora eleito, tem.

A sra. vê o presidente eleito, Bolsonaro, como parte de um processo, como alguém que representa a continuidade de alguma linha que vinha vindo? Que linha é essa? Ela se conecta com o quê, historicamente?

Angela Alonso: Eu considero que tem muito a ver com o que se desencadeou desde 2013. Os governos petistas geraram uma reação, de uma parte da sociedade, na linha do ressentimento, de entender que era um governo que governava para uma parte da sociedade e não para todo mundo. Essa dificuldade de aceitar as vitórias do PT e de aceitar as políticas do PT, como políticas redistributivas, depois as políticas de direitos, como cotas, e mesmo o clima que foi se instalando na sociedade durante os governos petistas, um clima de que era uma sociedade mais moderna e mais aberta do ponto de vista de costumes, gerou uma reação no sentido de dizer que o Brasil tinha saído do prumo moral. Do outro lado, tem um clamor que vem vindo desde o mensalão, que é um clamor contra a corrupção, em todas as suas formas. Isso foi sendo associado, no debate público, a um partido. Associou-se ao PT. Essa associação fez com que o antipetismo ficasse muito raivoso. Porém, isso foi algo que acabou afetando todos os partidos. Ficou essa ideia de que o sistema político estava corrompido não apenas no sentido administrativo mas também da corrupção moral. Isso foi dizimando lideranças, que caíram pelo caminho. O Aécio Neves, que quase venceu a eleição contra a Dilma [2014], ficou inviabilizado como candidato por conta disso. Essa terra arrasada que afetou os políticos e os partidos políticos que vinham desde a redemocratização abriu espaço para lideranças alternativas ao sistema político. Houve, então, figuras vindas do Judiciário, como o juiz Sergio Moro, empresários como o João Doria, o Luciano Huck, figuras que estavam fora dos partidos tradicionais, e isso abriu a possibilidade para militares também. Bolsonaro foi muito esperto. Embora ele seja deputado por várias legislaturas, se apresentou como um não político. Esse processo que se abriu desde o mensalão abriu a possibilidade para o que temos hoje nesta eleição. Então eu não acho que seja algo parecido com o que tivemos em outros momentos estruturais na história, embora, claro, sempre possamos encontrar semelhanças com o período de Getúlio Vargas, com o período Collor, mas acho que tem uma dinâmica mais recente que ajuda a entender. A minha geração e a das pessoas que são um pouco mais velhas do que eu saíram da ditadura militar com uma esperança dupla, de democratização e de justiça social. Esse projeto coletivo sofre agora um ocaso. Quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito tinha como slogan “a esperança venceu o medo”. Agora, com esse tema da segurança, das armas, o medo venceu a esperança. Vejo um futuro sombrio, infelizmente.

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