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Renata Melo*

Em julho de 2023, milhões de pessoas lotaram os cinemas para assistir o recém-lançado filme da Barbie. Nas bilheterias, filas, lojas e posts das redes sociais, multiplicaram-se roupas cor-de-rosa em referência à personagem que dá nome ao longa-metragem. O sucesso do lançamento hollywoodiano chama a atenção por evidenciar o poder de mobilização econômica e simbólica do cinema em um momento em que as salas de exibição enfrentam dificuldades diante da concorrência com os serviços de streaming. Independente de gostarmos ou não da obra, o frisson gerado por ela explicita algo que não pode ser ignorado: na contramão das múltiplas alternativas tecnológicas da atualidade, há um grande público disposto a sair de casa para ir ao cinema. Esse ato aparentemente trivial não é, no entanto, uma possibilidade para muitos moradores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), a segunda maior em número de habitantes do Brasil.

Além do alto custo do ingresso, muitos moradores das periferias precisam sair da sua cidade para acessar uma sala de cinema. Deslocamento esse que também custa caro e é frequentemente realizado em condições precárias. Dados do Mapa da Desigualdade (2020), elaborado pela Casa Fluminense, revelaram que metade dos municípios da RMRJ não possuem salas de cinema.

Fonte: Mapa da Desigualdade – Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Casa Fluminense (2020).

A Baixada Fluminense é um caso emblemático para reflexão sobre essa desigualdade. A região é composta por 13 municípios com mais de 3 milhões de moradores, mais precisamente 3.587.432 habitantes, de acordo com dados do último Censo realizado pelo IBGE. Essa população está entre as mais afetadas pela distribuição desigual das salas de exibição. Foi o que evidenciou o Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro, divulgado pela ANCINE, em 2021, tomando como base a realidade dos municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes. Dentre eles, Belford Roxo é o único do Brasil que não tem uma sala de cinema. Já Duque de Caxias ocupa o indesejado pódio de primeiro lugar dentre as cidades com a pior relação entre habitante e salas de exibição, ou seja, há muita gente para pouco cinema por lá. Nova Iguaçu fica em quinto lugar nessa lista.

Em outro extremo, a pesquisa evidenciou que a população baixadense lota as salas existentes, as quais estão entre as que tiveram maior público em 2021, sendo as principais delas gerenciadas pelas redes Multiplex e Kinoplex. Em outras palavras, não tem desculpa para não investir: há demanda e há interesse, o povo quer ir ao cinema. Estamos falando, no entanto, de salas comercias, com uma programação restrita e condicionada a possibilidades de lucro. Mas o que dizer de produções consideradas mais críticas e alternativas? Filmes nacionais premiados como Bacurau e Marighela, por exemplo, demoraram a chegar aos cinemas da Baixada, levando a inúmeros questionamentos e mobilizações nas redes de moradores da região.

Apesar da ausência de equipamentos culturais e da falta de incentivo, a Baixada tem uma relação já antiga com o audiovisual. Desde os anos 1980, mídias comunitárias como a TV Maxambomba e a TV Olho incentivavam moradores a produzirem vídeos sobre suas histórias cotidianas para exibição em praças públicas. Por suas estratégias inovadoras de comunicação, a Maxambomba chamou a atenção de um dos mais importantes linguistas contemporâneos, Noam Chomsky. Em 1996, ele foi à Baixada para conhecer a TV de rua itinerante que se apresentava em um telão em cima de uma kombi.

A partir dos anos 2000, uma profusão de coletivos culturais surgiu nas periferias do Brasil, estimulados pela reestruturação do Ministério da Cultura, em 2003, e pelas novas possibilidades do então recente mundo digital. Não foi diferente com a Baixada, como mostrou o Mapeamento dos Grupos Criativos da Baixada Fluminense, lançado em 2015 pelo Ibase em parceria com o Programa Brasil Próximo. Os cineclubes tiveram destaque nesse cenário e há mais de 20 anos vêm cumprindo um importante papel para a difusão das mais variadas produções audiovisuais, história registrada no documentário Cineclubismo na BF, de Carol Vilamaro.

Tendo como marca a realização de sessões gratuitas em espaços públicos, os cineclubes propagam desde curtas-metragens até longas considerados mais raros, que dificilmente chegariam à Baixada sem esse tipo de mediação. Essa cena audiovisual é movimentada ainda por produções próprias de moradores da Baixada envolvidos em um pulsante circuito criativo que, para além da exibição, envolve também a realização de diversos cursos e oficinas audiovisuais.

No site Tela BXD é possível conhecer um apanhado da produção cinematográfica da Baixada. A plataforma é uma iniciativa do Baixada Filma, que reúne mais de 150 cineastas e 45 coletivos e produtoras da região. O movimento surgiu em 2018 tendo como pauta a territorialização dos orçamentos públicos da área da cultura, ou seja, a sua democratização a partir de uma distribuição justa e do reconhecimento da Baixada como importante polo realizador audiovisual. Essa não tem sido uma luta fácil, no entanto. É o que revelaram disputas recentes em torno da execução da Lei Paulo Gustavo.

A Lei Complementar nº 195/2022 carrega em seu nome uma homenagem ao ator, humorista, roteirista e diretor Paulo Gustavo, que faleceu em 2021, em decorrência de complicações da Covid-19. De abrangência nacional, a lei, regulamentada em maio de 2023, dispõe sobre o financiamento público de ações para a área da cultura. Estamos falando de algo sem precedentes na história do Brasil: um expressivo investimento de R$ 3,8 bilhões para a realização de atividades culturais em todos os estados e municípios brasileiros.

O estado do Rio de Janeiro contará com mais de R$ 130 milhões desse recurso, dos quais 73,3% devem ser destinados para o audiovisual e 26,7% para demais linguagens. Isso se justifica porque a maior parte dos recursos repassados pelo Governo Federal é oriunda do Fundo Setorial do Audiovisual, segundo informações disponíveis no site da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro (SECEC- RJ), que executará a legislação.

A lei prevê procedimentos de escuta dos cidadãos para a elaboração de planos de ação e execução de editais por cada ente federativo. Nesse contexto, tem sido travada uma disputa entre produtores audiovisuais do Rio de Janeiro, que ficou conhecida como “capital x interior”. Em abril deste ano, entidades representativas do audiovisual do município do Rio de Janeiro enviaram uma carta ao superintendente de Audiovisual da SECEC-RJ. No documento, assinado pela Sicav, Abraci e API[1], é questionada a divisão da verba oriunda da lei Paulo Gustavo com base no Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura, que prevê um mínimo de 60% para o chamado interior do Rio de Janeiro, no qual a Baixada e outras regiões estariam inseridas, e um máximo de 40% para a capital. O pedido por flexibilização das regras de interiorização tem como argumento o pressuposto de que a capital seria merecedora de maior investimento por concentrar mais produtoras audiovisuais e uma maior “especialização” no processo cinematográfico.

Manifesto do Movimento Baixada Filma.

O Baixada Filma lançou uma carta pública em resposta, em junho, também direcionada à SECEC- RJ. Intitulado “Por um cinema e audiovisual descentralizados”, o documento foi amplamente divulgado na internet. Nele, os integrantes do movimento nos lembram que concentração gera concentração e reivindicam que a Lei Paulo Gustavo quebre esse ciclo, incentivando o audiovisual em regiões historicamente menos favorecidas no contexto da indústria criativa, como é o caso da Baixada. Para isso, é pleiteado um mapeamento amplo da realidade do audiovisual do Rio de Janeiro, pensando-a não como sombra da capital, mas em suas especificidades que envolvem, por exemplo, dificuldades para a abertura de empresas do setor criativo nos territórios populares, onde os artistas se organizam prioritariamente em coletivos e como prestadores de serviço do tipo MEI (Microempreendedor Individual).

Em lugar de concentrar mais recursos na capital, seria preciso, então, rever critérios de candidatura aos editais de maior porte e seu direcionamento para empresas com CNAEs (Classificação Nacional das Atividades Econômicas) e registros específicos em audiovisual, formalização muitas vezes inacessível para trabalhadores da cultura das periferias, cuja realidade não é nada cor-de-rosa. Está em questão, portanto, algo muito maior do que assistir ou não o filme da Barbie. O audiovisual tem estado no cerne de importantes disputas políticas e culturais contemporâneas. Democratizá-lo em seus processos de produção, distribuição e exibição é urgente.


[1] As entidades são as seguintes: Abraci – Associação Brasileira de Cineastas do Rio de Janeiro, a API – Associação Brasileira de Produtoras Independentes do Audiovisual e o Sicav – Sindicato Interestadual das Indústrias do Audiovisual.

*Bolsista do Núcleo Rio de Janeiro do INCT Observatório das Metrópoles. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA- UFRJ).