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A ópera, a guerra e a ressurreição russa | José Luís Fiori

By 18/03/2014janeiro 23rd, 2018Artigos Semanais

Rússia

Quinze anos depois da derrota e do colapso da União Soviética, o estado russo retomou o comando de sua economia e de sua inserção internacional. E tudo indica, neste início do século XXI, que está recuperando sua importância estratégica, como maior estado territorial do mundo. O país detém o segundo maior arsenal atômico mundial, e é a terceira maior reserva em moeda estrangeira. Por isto, falar da Rússia como uma potência ou uma economia emergente parece besteira, quando na verdade se trata de uma velha e grande potência.

O artigo “A ópera, a guerra e a ressurreição russa” foi cedido pelo cientista político José Luís Fiori para o INCT Observatório das Metrópoles com o propósito de contribuir para o debate sobre a formação do sistema mundial, apontando os processos pelos quais países se consolidaram como impérios – e as crises que abalaram suas hegemonias.

O professor José Luis Fiori é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro “O Poder Global” (Editora Boitempo). Ele pesquisa e ensina há mais de 20 anos no campo das Relações Internacionais, e em particular, na área de Economia Política Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e a economia política do “sistema inter-estatal capitalista”.

Até 2008, publicou 9 livros e organizou 5 coletâneas. Ganhou o Premio Jabuti de Economia, Administração, Negócios e Direito, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1998, com o livro “Poder e Dinheiro. Uma economia Política da Globalização”, organizado com a professora M.C.Tavares; e recebeu Menção Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização Mundial e Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros. Desde 1990, publicou cerca de 230 artigos em jornais como Valor Econômico, Correio Braziliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio, e em revistas como Carta Capital, Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso e La Onda.

No ano de 2013 contribuiu com o Observatório das Metrópoles ao participar do ciclo de debates “Metrópole, Estado e Capital”.

Veja a palestra de Fiori “Em busca da fenomenologia do poder”.

 

A ÓPERA, A GUERRA E A RESSURREIÇÃO RUSSA

JOSÉ LUÍS FIORI

Relembro, porque causou profunda impressão. Uma montagem russa da ópera Guerra e Paz, de Serguei Prokofiev, na Bastilha. Era 1998, a União Soviética havia desaparecido, e a Rússia estava humilhada e destruída.  A ópera Guerra e Paz estreou no Teatro Maly, em Leningrado, no dia 12 de junho de 1946, pouco depois da invasão e expulsão das tropas alemãs, e da vitória russa, na Segunda Guerra Mundial; e conta a história da  invasão e expulsão das tropas francesas e da vitória russa, na guerra com Napoleão Bonaparte, em 1812. Na última cena, o povo e os soldados russos cantam juntos uma peroração apoteótica, proclamando a eternidade do “espírito russo”. Com força, emoção, convencimento, inesquecível. E, de fato, depois da destruição de 1812, a Rússia se reconstruiu e se transformou numa das principais potências européias do século XIX; e depois de 1945, a União Soviética, voltou a levantar e se transformou na segunda potência militar e econômica do mundo, na segunda metade do século XX. Como já havia acontecido antes, em 1709, depois da invasão e da expulsão das tropas suecas de Carlos XII, por Pedro o Grande, quando a Rússia começa sua fantástica modernização do século XVIII.

Mas em 1998, parecia impossível que isto pudesse acontecer de novo, depois da derrota soviética e da destruição liberal da economia russa.  Dez anos depois, entretanto, no momento da posse do seu terceiro presidente republicano, Dmitri Medvedev, a Rússia está de novo de pé, e o “espírito russo” volta a assustar os europeus, e preocupar o mundo. O jornal  Financial Times publicou recentemente um caderno especial sobre a Rússia, onde afirma que “nem Bruxelas nem Washington estão sabendo como tratar com a Rússia, depois de Vladimir Putin, porque a Rússia está cada vez mais disposta a retomar  sua posição no mundo, em particular nos países da antiga União Soviética”.

Em 1991, imediatamente depois da dissolução da União Soviética, os Estados Unidos e a União Européia, se colocaram o problema, e se atribuíram a tarefa de “administrar” a desmontagem do “império russo”. Por causa de suas conseqüências econômicas, e por causa do problema geopolítico da Europa Central. Para os Estados Unidos, o objetivo fundamental era impedir o surgimento de uma “terra de ninguém” no leste europeu, e por isto lideraram a expansão imediata das fronteiras da OTAN, e a ocupação das posições militares que haviam sido abandonadas pelos soviéticos, na Europa Central.

Esta ofensiva estratégica da OTAN e da União Européia, e sua posterior intervenção militar nos Bálcãs, foi uma humilhação para os russos e provocou uma reação imediata e defensiva que começou, exatamente, pela vitória eleitoral de Vladimir Putin, em 2000, e a retomada, pelo seu governo, de uma estratégia militar agressiva, depois de 2001. Durante suas duas administrações, o presidente Putin, manteve a opção pela economia de mercado, mas recentralizou o poder, e reconstruiu o estado e a economia russa, refazendo seu complexo militar-industrial, e nacionalizando seus recursos energéticos.

A Rússia ainda detém o segundo maior arsenal atômico do mundo, e o governo Putin aprovou uma nova doutrina militar que autoriza o uso de armamento nuclear, mesmo no caso de um ataque convencional à Rússia, no caso em que fracassem outros meios para repelir o agressor. Além disto, o novo governo russo alertou os Estados Unidos – ainda no ano 2000 –  para a possibilidade de uma corrida nuclear, caso insistissem no seu projeto de criação de um “escudo anti-balístico” na Europa Central. O interessante, do ponto de vista da história russa, é que agora de novo, como no passado, depois de 2001, também a economia russa se recuperou e voltou a crescer a uma taxa média anual de  7%,  puxada pelos preços do petróleo e das commodities, e sustentada por um boom de consumo e de investimento interno. Este crescimento – liderado pelas grandes empresas estatais do setor de energia e armamentos – multiplicou seis vezes o produto interno da Rússia que já superou o PIB da Itália, e deve superar o PIB da França, nos próximos dois anos.

Dez anos depois da sua moratória, a Rússia detém a terceira maior reserva em moeda estrangeira do mundo, depois da China e do Japão, e seus salários subiram de uma média de U$ 80 dólares por mês, no ano de 2000, para U$ 640, no ano de 2007, quando a economia russa alcançou  seu nível de atividade anterior à grande crise. E neste clima de boomeconômico, o novo presidente Dmitri Medvedev convocou, recentemente, os empresários russos a copiar o modelo chinês e aderir à onda global de aquisição de empresas estrangeiras, para acelerar ainda mais economia russa, e reduzir a sua dependência tecnológica.

Ou seja, quinze anos depois da derrota e do colapso da União Soviética, o estado russo retomou o comando de sua economia e de sua inserção internacional. E tudo indica, neste início do século XXI, que está recuperando sua importância estratégica, como maior estado territorial do mundo, o único com capacidade de intervenção por terra, através de suas próprias fronteiras, em todo o continente eurasiano. Por isto, é uma rematada bobagem falar da Rússia como uma potência ou uma economia emergente, quando na verdade se trata de uma velha e grande potência que está reocupando sua posição tradicional na Europa, na Ásia Central e no Oriente Médio.

Mas nenhum analista internacional consegue prever os caminhos futuros desta nova ressurreição do “espírito russo”, até porque a Rússia sempre foi mais misteriosa e imprevisível do que a União Soviética. Faz algumas semanas, Andre Klimov, líder liberal da Dumas, afirmou que “seria um erro grave, neste momento, alguém pensar que possa fazer com a Rússia o que bem entenda”. Palavras que soam como uma advertência suave, como quem quisesse relembrar às demais potências, a mensagem final de Serguei Prokofiev, na sua grandiosa ópera Guerra e Paz : o “espírito russo é eterno”, e ressurgirá sempre de novo, e com mais força, toda vez que o seu sagrado território for invadido, ou que o povo russo for humilhado, como aconteceu várias vezes, na história, e voltou a acontecer, no final do século XX.