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Por uma leitura léfèbvriana da periferia

Professora da Escola de Planejamento e Arquitetura na Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo, Marie Huchzermeyer está desenvolvendo um estudo sobre a relação da produção intelectual de Henri Léfèbvre com suas viagens à América Latina. Esse é o tema da entrevista da edição nº 25 da Revista e-metropolis. Huchzermeyer enfatiza a importância de interpretações do direito à cidade a partir do ponto de vista de regiões semiperiféricas e de seus movimentos sociais urbanos, além de abordar outros assuntos relacionados.

A entrevista “Por uma leitura léfèbvriana da periferia — com Marie Huchzermeyer”, é um dos destaques da Revista e-metropolis nº 25.

A seguir um trecho da conversa realizada pelo pesquisador Erick Omena de Melo.

Erick Omena de MeloO influente conceito de direito à cidade colocou o valor de uso do espaço urbano no centro de uma nova pauta política e reconfigurou as possibilidades de pessoas comuns intervirem na produção do espaço. Isso está diretamente relacionado com a exigência, por parte de movimentos sociais urbanos, de um certo protagonismo popular, representado pelas ideias de “cidadanias insurgentes” e “planejamento de base”. Como você vê as diferenças e semelhanças desses processos na África do Sul e no Brasil?

Marie Huchzermeyer: Eu posso falar mais detalhadamente sobre a África do Sul. E, de diversas maneiras, a África do Sul fica para trás em relação ao Brasil. Isto porque apenas recentemente a população da África do Sul se tornou majoritariamente urbana – 63% dos sul-africanos vivem em cidades, de acordo com o último censo realizado em 2011. Assim, o urbano ainda não assume um protagonismo na construção das pautas políticas. Enquanto que no Brasil, isso já ocorre há um bom tempo – 20 anos atrás, mais de 80% da população já vivia em cidades.

Marie Huchzermeyer

Na África do Sul, apenas recentemente se tornou interessante para partidos políticos pensar de forma mais criativa sobre o urbano. Porque o eleitorado saiu de áreas rurais e foi para áreas urbanas. Esta é uma mudança que afeta até mesmo o ANC (Congresso Nacional Africano, partido no poder desde 1994 ). Isso não significa que o ANC esteja conseguindo atrair o voto urbano – o que seria importante para as lutas urbanas e sua inserção no debate público.  Mas isso significa que questões como o direito à cidade – com todas as suas implicações para a democratização dos processos decisórios – não têm ocupado o centro das atenções, um fato até então pouco questionado. Portanto, enquanto no Brasil houve um grande movimento de reforma urbana que conseguiu importantes vitórias através de mudanças constitucionais, da aprovação do Estatuto das Cidades e da luta por sua implementação – não há nada equivalente a isso na África do Sul.

Havia uma rede bem pequena do setor urbano – representada por ONGs que cresceram no meio dos anos 1980 graças à necessidade de prover assistência técnica a movimentos populares baseados em assentamentos informais e conjuntos habitacionais –, que demandava urbanização durante o período de luta contra o apartheid. Um grupo de profissionais progressistas se organizou dentro destas ONGs, presentes nas principais cidades do país, colaborando muito para a constituição desse espaço de lutas urbanas. Contudo, houve uma grande mudança em 1994, quando o governo ganha legitimidade, fazendo com que o espaço dessas ONGs começasse a se dissipar. E o governo inicialmente passou a atender uma boa parte das demandas até então levantadas por elas. Só que, depois de dois anos, em 1996, o novo governo assumiu um caráter bem neoliberal. Consequentemente, as políticas de cunho mais participativo foram abandonadas. Ao mesmo tempo, as políticas públicas centradas na promoção do crescimento econômico se tornaram mais proeminentes e o planejamento passou a ser ditado de cima para baixo. E assim o desenvolvimento urbano passa a ser muito mais uma questão tratada por especialistas do que algo amplamente debatido.

Houve, ainda, uma mudança mais recente, oriunda do estabelecimento de novas pautas pelo Fórum Urbano Mundial. Dois anos atrás [2014], a determinação era de que os governos desenvolvessem políticas urbanas, o que é uma questão bastante importante a ser promovida no continente africano, pois pouquíssimos governos tinham uma política urbana para suas cidades. E, em resposta a este cenário, e também, em parte, em resposta a algumas dinâmicas internas, a África do Sul desenvolveu uma política de desenvolvimento urbano integrada através de um processo demorado e de participação bastante reduzida. Mas, pelo menos, esta política passou a existir (embora tentativas anteriores tenham ocorrido, elas nunca chegaram a lugar nenhum, uma vez que a pauta rural sempre foi mais importante). Essa é a primeira vez que uma política urbana pôde ver a luz do dia e a possibilidade de sua implementação.

Os criadores desta política urbana não abordaram especificamente o direito à cidade, mas eles abordaram questões correlatas, como a necessidade de urbanizar e reconhecer legalmente assentamentos informais. Ao mesmo tempo, também foi estipulada a exigência de tornar as cidades mais eficientes, o que sempre é um problema a ser superado nas cidades sul-africanas, pois o legado do apartheid é também um legado de grandes ineficiências econômicas. Só que essa questão acaba facilmente deixando a necessidade de um aprofundamento democrático em segundo plano.

EOMMais recentemente, você começou a estudar as relações entre a produção intelectual de Léfèbvre e suas viagens pela América Latina no início dos anos 1970. Você acha que essa experiência latino-americana foi importante para o desenvolvimento dos conceitos léfèbvrianos, como o direito à cidade?

MH: Não diretamente. Ele escreveu “O Direito à Cidade” (Centauro Editora) em 1967, publicando-o já em 1968. Contudo, deve ter surgido bastante interesse neste livro, pois já em 1969 “O Direito à Cidade” foi publicado por uma editora brasileira. Assim, eu acredito que naquele momento havia um grande interesse do Brasil por esta obra. Mas, com exceção deste fato, é muito difícil recuperar a memória daquele período. Logo depois, ele escreveu “A Revolução Urbana” (Editora UFMG), mas deixando claro que ele também escreveu muitas outras coisas entre esses dois livros. Contudo, o livro “A Revolução Urbana” também faz referência a “O Direito à Cidade”, desenvolvendo mais a fundo posições e estratégias políticas. E dois anos mais tarde ele escreve “A Produção do Espaço” (La production de l’espace [Editions Anthropos]), muito mais voltada para a análise espacial, onde, novamente, ele utiliza a análise do direito à cidade. Mais tarde, no fim de sua vida, ele escreve “Sobre o contrato de cidadania”. E lá ele também fala da importância do direito à cidade, dentre outros direitos, como o direito à diferença. Portanto, o pensamento de Léfèbvre evoluiu, foi refinado, e, ao mesmo tempo, se manteve bastante consistente.

Contudo, a partir do que podemos concluir, ele esteve no Peru e no Brasil em 1972. E, possivelmente, aconteceram outras viagens pela América Latina, provavelmente no México. Isso é algo que eu gostaria de investigar mais. Com a ajuda de Fernando Maldonado e Erick Omena, eu pude entrar em contato com alguns professores brasileiros. Eles acreditam que o impacto foi menos de Léfèbvre sobre o Brasil e mais do Brasil sobre Léfèbvre. Conforme ele visitava favelas, ele descobria o quão intensa era aquela vida social e como havia nela uma possibilidade para que o que ele chamava de “urbano” não fosse destruído. Isso me fez prestar atenção especificamente na forma como ele escreve e usa favelas em “A Produção do Espaço”, publicado em 1974. Lá ele escreve de forma bem diferente em relação aos seus livros anteriores, nos quais ele mencionava favelas e subúrbios como fazendo parte de forças de segregação, insinuando que eles fossem apenas “diferença induzida”. A minha hipótese é de que essas mudanças de abordagem são resultado de sua viagem ao Brasil. Para isto, seria necessário examinar seus diários, o que não é algo simples e fácil de fazer

Acesse a edição nº 25 da Revista e-metropolis para leitura da entrevista completa. 

 

Publicado em Entrevistas | Última modificação em 21-07-2016 20:42:42