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Por Juliano Ximenes*

Os eventos recentes de deslizamento de terra, processos erosivos, enchentes, alagamentos e desastres relacionados com certa frequência às chuvas ou intemperismo em geral fazem pensar sobre a condição concreta do acesso à terra no Brasil. Fazem pensar também sobre sua classificação como “desastres naturais” e como eventos relacionados ao clima e à “natureza”, esta entidade tão abstrata quanto onipresente no mundo material e em termos dos eventos mensuráveis atuais.

Os estudos do risco (ambiental, tecnológico, social) em geral se dividem, desde os anos 1960, em abordagens ligadas à dimensão físico-ambiental dos eventos e fenômenos e, em segundo lugar, em leituras dos mesmos fatores realizadas pelo campo disciplinar das Humanidades. Neste sentido, convivem objetivismo e construtivismo, bem como abordagens técnicas, institucionais, aplicadas, nunca isentas das motivações que as originam. Deste modo, corporações militares ou paramilitares carregam postura “emergencial”, salvacionista e em caráter de urgência, com atuação de forte impacto material e contundência física – remoções, deslocamento de populações para abrigos temporários e ações similares. Abordagens de cunho humano, em geral, procuram a intervenção sobre as realidades e experiências de vida da população atingida, acessando inicialmente os domicílios e colhendo, mediante relatos pessoais, a extensão, a gravidade e os níveis de impacto sofridos. Obviamente não deve haver prevalência de uma abordagem sobre a outra; ao contrário, embora haja chegada inicial da “área social” incidente sobre a população afetada, as providências físico-ambientais, ou técnicas e materiais, ocorrem na sequência. Isso se refere, diga-se, à atuação institucional típica em áreas urbanas e rurais de eventos de riscos e desastres. Em geral, trata-se de caso de atuação da Defesa Civil Municipal, do Corpo de Bombeiros Militar, de Batalhões de Polícia Ambiental das Polícias Militares e de Secretarias de Assistência Social e Meio Ambiente.

Figura 1 – Nível de alerta do CEMADEN por Unidade da Federação e por tipo, em 23/02/2022. Fonte: http://www2.cemaden.gov.br/painelalertas/.

Ocorre, contudo, uma série de contradições a respeito deste processo. Os eventos recentes, tão sazonais quanto recorrentes em todo período chuvoso como nos verões de qualquer ano, evidenciam o descompasso e os impactos trágicos do descumprimento do direito à moradia digna, da concentração de terras, infraestrutura e equipamentos públicos e do investimento público em urbanização e melhorias em geral. Populações socialmente vulneráveis são as mais afetadas por eventos e fatores errônea e perversamente qualificados como “naturais” como as chuvas e suas enxurradas e trombas d’água; as erosões e voçorocas; os deslizamentos de terra e ruptura de encostas; as fraturas em formações rochosas em geral; a contaminação e degradação de solo, ar e águas. “Naturais” estes eventos não são; longe de se pretender qualquer tipo de digressão filosófica sobre matéria e ideia, trata-se de um contexto sempre prévio de precariedade, de não-atendimento de direitos e não-provisão de infraestrutura apenas revelado pelas chuvas, para citar o fator mais evidente do risco ambiental e das tragédias do presente verão do ano de 2022. A chuva não provoca, a chuva evidencia o fator de risco, ali latente, como nos ensina a professora Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

O conservadorismo de nossa sociedade, e a decorrente insistência em negar a pobreza e seus “riscos”, criam o ambiente (inclusive discursivo) adequado para que se tratem questões espacialmente e sazonalmente previsíveis como “emergenciais”. Mas uma análise breve do noticiário nacional, sobretudo do Sudeste brasileiro, entre dezembro e março, ano a ano, nos mostra a patética repetição dos eventos. Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis e outros municípios e localidades fluminenses, em 2011, 2020 e 2022; Vitória do Espírito Santo em 2016, 2021 e 2022; Caratinga, Brumadinho, Itabira, Contagem e diversos municípios mineiros em 2019, 2020, 2021, 2022; São Paulo, Francisco Morato, São Bernardo do Campo, Mauá, Santana de Parnaíba e de resto toda a Região Metropolitana de São Paulo atingida em 2016, 2017, 2022. Fala-se aqui de anos recentes, apenas. Trata-se de combinações de deslizamentos de terra (os chamados movimentos gravitacionais de massa, com desprendimento de rocha e solo, carreamento de material sedimentar, contaminação e impacto ambiental negativo) e inundações, anuais e rigorosamente incidentes sobre áreas de moradia precária e/ou não providas de qualificação infraestrutural prévia para a garantia de ocupação segura e do atendimento do direito à cidade. Em todos estes casos e eventos, dezenas ou centenas de morte em uma semana, ora 20 mortos, ora 170, caso de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro em fevereiro de 2022, com contagem de óbitos atingindo tristemente as 180 vidas perdidas.

Os estudos da professora Julia Guivant, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bem como do professor Adauto Lúcio Cardoso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostram a complexidade do problema. As campanhas televisivas anuais, exibindo moradores pobres ilhados em barracos cravados na encosta, durante um temporal, enquanto um helicóptero de reconhecimento e salvamento mapeia a área, sugerem: “deixe sua casa se ela estiver situada em área de risco”. Essa pretensa solução, simples e objetiva, ignora brutalmente a trajetória de vida e a cosmologia dos agentes envolvidos no problema. Para famílias pobres das áreas “de risco”, a trajetória de locais de moradia compõe uma cesta trágica de opções: a baixa renda induz a aluguéis mais baratos e viáveis, os empregos de baixa qualificação e remuneração exigem a redução de gastos com mobilidade urbana. Classicamente, a trajetória dos salários em uma economia capitalista desenha uma curva descendente em seu poder de compra, acompanhada de uma outra curva, estável ou ascendente, do custo da moradia e do valor dos aluguéis. Pelas benesses da miragem do “mercado”, portanto, é que este milagre não virá; e aos mais pobres torna-se incompatível a moradia juridicamente legalizada com a sobrevivência no nível mais primitivo, biológico.

Há uma nítida leitura intergeracional nos relatos de famílias atingidas pelas tragédias da inundação e do deslizamento de terras. Esta população sabe que sua avó viveu em “área de risco”, que sua mãe vive em “área de risco” e que, provavelmente, seus descendentes darão seguimento à mesma característica. Este passa a ser, então, mais um elemento a administrar no cotidiano. Não necessariamente naturalizado, o risco ambiental passa a ser objeto de uma inaudita e sofisticada luta contra as remoções, pelo emprego de tecnologias populares de drenagem, traçado viário, contenção de encostas e implantação de edificações. Esta luta é, também, discursiva; moradores pobres atingidos eventualmente subdimensionam os impactos destes eventos para evitar a remoção, sempre forçada, e passar 15 dias em um ginásio, ganhando um colchão, uma cesta básica, um cobertor e um botijão de gás e, em seguida, ter de procurar um local previsivelmente idêntico, inclusive no risco, para morar.

Terras ainda situadas em uma espécie de limbo imobiliário são, portanto, ocupadas, como no caso de áreas de proteção ou suscetibilidade ambiental, ou terras sujeitas a descarte irregular de resíduos, como relata Ermínia Maricato, professora da Universidade de São Paulo (USP). A favela, portanto, e todas as suas variantes de moradia precária, revelam-se autênticas estratégias de sobrevivência em uma economia capitalista periférica que tolera e incentiva o não-atendimento dos direitos em nome da manutenção da taxa de acumulação e da concentração de benefícios, como já teorizou seu colega Lúcio Kowarick.

Tratados como “desastres naturais” e enviesados pela ótica de que as mudanças climáticas estariam impactando as cidades (estas formações territoriais perniciosas à natureza-mãe intocada), temos os discursos e ações institucionais mistificadoras. É inteligentemente conservador tratar como natural o evento que toda a estrutura socioeconômica forma, há décadas, evitando todo o debate sobre a necessidade de desconcentração de terras e benefícios da urbanização a uma população que, afinal de contas, deveria ser detentora de direitos. Ademais, tratar a questão do risco ambiental urbano como decorrente de uma suposta mácula da natureza intocada operada pela “cidade”, tornada coisa e agente, é colocar este complexo problema no plano moral. Criando animismos caricatos, repórteres e dirigentes públicos advertem a população atingida de que a “natureza” apenas “retomou o seu lugar”, e que aquela área de risco não poderia ser previamente ocupada. Sem direitos, contudo, onde e como morar dignamente?

O Brasil, apesar de todas as mazelas, avançou fortemente em políticas de mapeamento e prevenção de riscos e desastres, como aliás poucos países o fizeram. Obviamente, todas essas conquistas vêm sendo sistematicamente eliminadas a partir da gestão Bolsonaro no Governo Federal, tanto pelo desmonte da política ambiental quanto pela revogação de normas de segurança, redução da fiscalização e revisão das unidades de conservação. O país, contudo, possui uma Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), de 2012, aprovada na gestão Dilma Rousseff. Possui instituições como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN).

O país, contudo, precisa de dois focos radicais de inflexão no tratamento do tema dos riscos ambientais. Em primeiro lugar, a recomposição institucional do aparato da política ambiental e do sistema nacional de gerenciamento de riscos e desastres deve ser acompanhado de um amplo programa nacional de provisão de infraestrutura. Obras de caráter preventivo devem ser executadas por todo o país, uma vez que, se os movimentos de massa castigam o Sudeste, as inundações fazem o mesmo no Norte e Nordeste do país. Estas obras e projetos precisam ser realizados mediante programas de regularização fundiária de interesse social, com concepções de Engenharia e Urbanismo que busquem minimizar o impacto ambiental das intervenções e adequá-las ao entorno, com moradia digna e equipamentos públicos disponíveis.

Figura 2 – Foto aérea de área atingida por chuvas e deslizamento de terra em Petrópolis-RJ, em registro de 21/02/2022. Fonte: Empresa Brasileira de Comunicação, Agência Brasil.

Em segundo lugar podemos dizer que é necessário o reconhecimento e a desconstrução da lógica dos riscos e desastres “naturais” no Brasil. As instituições envolvidas e os diferentes níveis de governo precisam trabalhar estas questões em temporalidades mais largas (no planejamento e na prevenção, redutoras de custos) e mais curtas (em que as ações emergenciais seguem importantes, porém sem expectativas resolutivas). Mesmo corporações militares, como o Corpo de Bombeiros, já se ressentem da recorrência de localidades e época do ano em que são chamadas para, emergencialmente, atender a eventos que poderiam ser evitados e minimizados com infraestrutura. A contradição está, também, no critério de investimento; argumenta-se com frequência que a urbanização de assentamentos precários (UAP) não geraria arrecadação, enquanto mansões, loteamentos e shopping centers em florestas urbanas, lagoas e encostas, sim. Esta grave distorção reflete o choque entre a necessidade de civilizarmos as nossas cidades e a estreiteza de nossas elites.

Para que ao longo deste e do próximo verão não vejamos, tristemente, pessoas das mesmas classes sociais e trajetórias de vida morrerem, nas mesmas regiões, pelos mesmos fatores evitáveis potencializados por um Estado que não reconhece seus direitos.

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* Arquiteto e urbanista, professor Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (FAU-UFPA) e coordenador do Núcleo Belém do Observatório das Metrópoles.