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Lucia Bógus¹
Suzana Pasternak²
Luís Felipe Aires Magalhães³

O município de São Paulo completou, no último dia 25, 470 anos. Dentre tantos e importantes desafios urbanos, a segregação residencial é um dos mais urgentes a serem enfrentados.

Alçada da condição de pequena vila até meados do século XIX, é apenas no fim do século XIX que a capital paulista começa a se desenvolver. Para sua transição de “capital da solidão” para “capital da vertigem”, foi fundamental ter-se estabelecido como centro de negócios da economia cafeeira e, após a Primeira Guerra Mundial, como lócus da concentração industrial. Erguer suas estruturas produtivas requereu e atraiu extensos contingentes migrantes, sejam eles internacionais de Portugal, Itália, Espanha, Europa Oriental e Japão, sejam internos, do Nordeste e de Minas Gerais, principalmente. Deste modo, entre 1940 e 1980, os fluxos migratórios condicionaram taxas de crescimento populacional superiores a 5% ao ano. Seu modelo de urbanização excludente, no entanto, fez com que apenas parte destes fluxos fosse absorvida pelo mercado urbano e industrial, resultando em elevado desemprego, expansão da informalidade e trabalho precário. Já nos anos 1960, mobilidade espacial divorcia-se da mobilidade social: a promessa do trabalho formal já não era mais cumprida e a periferia da cidade se apresenta como local possível de residência dos excluídos do progresso tão propalado. A sucessão de diferentes padrões de segregação expande a ocupação das franjas periféricas ao longo do restante do século XX e início do XXI e, atualmente, adensa as áreas centrais: o crescimento demográfico no anel central da cidade entre 2000 e 2010 amplia a disputa pelo centro, na qual opõem-se ao capital imobiliário e financeiro crescentes parcelas sociais demandantes de equipamentos culturais, educacionais e de trabalho.

Assim, São Paulo passa atualmente por novo padrão de segregação: a população pobre tem retornado ao centro e a população rica ergue empreendimentos habitacionais murados e fortificados na periferia. Isso não tem, no entanto, alterado de forma significativa a desigualdade anterior: a estrutura de segregação centro-periferia pode não ser tão clara como nos anos 1980 e 1990, mas segue desenhando a cidade. De outro lado, percebe-se uma melhora das condições de infraestrutura, com praticamente todos os domicílios municipais tendo acesso à energia elétrica, água de rede pública e coleta de lixo.

Centro Histórico de São Paulo. Foto: Rovena Rosa (Agência Brasil).

Mas resulta destes processos um fenômeno novo: a periferia de São Paulo não é mais tão homogênea, mas sim permeada por um conjunto de espaços heterogêneos. Colaboram para isso a existência de condomínios horizontais, a produção formal de moradias para a população de baixa renda e inclusive um sistema, também formal, de aluguel de moradias. Assim, no lugar de uma periferia, temos várias periferias, cuja diversidade, no entanto, não deixa de representar espaços de pobreza: embora apresentem infraestrutura, concentram condições de vida muito precárias. Deste modo, a composição social atual dos espaços periféricos mescla enclaves de riqueza com áreas extremamente carentes.

É possível perceber estas transformações já no Censo Demográfico de 2010, que apontava uma grande melhora sanitária nos domicílios favelados da cidade de São Paulo, com 94% deles utilizando água da SABESP e 67,4% com esgotamento sanitário pela rede pública. É provável que as favelas recentes, menos estruturadas, apresentem unidades domiciliares e infraestrutura mais precárias. Alguns trabalhos, analisando as favelas recentes na cidade, mostraram que entre estas a precariedade era dominante. Observa-se, a olho nu, que em favelas recentes a inadequação material domina: paredes em madeira, coberturas em fibrocimento.  Muitas favelas novas se iniciam com barracos de lona, depois substituídos por madeira e só posteriormente reconstruídos em alvenaria. E percebe-se também que as favelas crescem tanto na capital como nos outros municípios metropolitanos. Se, em 2010, 24 dos 39 municípios da metrópole apresentavam favelas, este número subiu para 31 em 2019. As favelas ultrapassam os limites da cidade e espalham-se pelos municípios metropolitanos.

A própria pandemia trouxe novas variáveis para um tecido urbano já estruturalmente inadequado, como a expansão do desemprego, o abandono de lajes comerciais e o fechamento de postos de serviços e de lojas trouxeram maior desigualdade e pobreza. E fizeram crescer o número de domicílios em favelas: se em 2000 este número era de 225.133 casas no município de São Paulo (7,69% do total de domicílios), ele passa em 2010 para 355.756 (10,02%) e em 2019, para 529.921 domicílios (12,91% do total de casas em São Paulo).

O aumento do número de favelas e da quantidade de domicílios nelas é acompanhado, ainda, de crescimento da população em situação de rua na cidade. A pandemia não criou, mas acelerou estes processos.

Outra característica recente importante das favelas de São Paulo é o aumento da sua densidade demográfica, que chegou a alcançar, em 2019, mais de 300 habitantes por hectare. Verticalização e ocupação dos poucos espaços livres pré-existentes são componentes desafiadores para projetos de urbanização, demandando aporte de novas unidades construídas e muitas vezes a realocação de moradores em outros assentamentos.

Espaços mais precários e mais desiguais: a favela consolida-se como uma das faces mais perversas da segregação urbana em São Paulo – é o desafio mais urgente a ser tratado para a efetivação do Direito à Cidade.


¹ Lucia Bógus – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenadora do Observatório das Metrópoles Núcleo São Paulo.

² Suzana Pasternak – Universidade de São Paulo, vice-coordenadora do Observatório das Metrópoles Núcleo São Paulo.

³ Luís Felipe Aires Magalhães – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo São Paulo.