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Nos últimos dias, o país vem assistindo estarrecido ao desastre ocorrido no município de Mariana (MG), com o rompimento de duas barragens pertencentes à mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP. Um mar de lama de rejeito da mineração invadiu várias cidades e já chegou ao Espírito Santo, causando mortes, destruição e danos ainda incalculáveis.

Essa é, obviamente, uma tragédia de imenso impacto –humano, ambiental e econômico–, como toda a imprensa vem mostrando. Mas é necessário dizer também que se trata de um evento extremo em um território já completamente arruinado pela atividade mineradora que ali se implantou. E isso não diz respeito somente a esse lugar, mas a muitas outras áreas de mineração do país.

O modelo de implementação dessa atividade no Brasil é, em si, devastador. A forma como se implanta não apenas a lavra –a extração do minério propriamente dito–, mas toda a sua estrutura de produção, envolvendo a captação de água, instalação de energia elétrica, logística de distribuição etc., destrói territórios, desconstitui atividades produtivas e desestrutura modos de vida. A dimensão e ritmo dessa exploração agravam ainda mais a situação.

Hoje, a lavra é realizada por meio de uma concessão para explorar o subsolo, que é patrimônio público. Mas para conseguir explorar o que está embaixo, as mineradoras vão comprando, total ou parcialmente, as terras da população local. Essas verdadeiras desapropriações feitas pelo privado são parte de estratégias agressivas de implantação do complexo minerador que vão inviabilizando a sobrevivência de outras atividades locais. Além disso, se dão através de processos judiciais em que muitas vezes pequenos produtores têm que enfrentar gigantes multinacionais. Assim, comunidades inteiras são afetadas na sua relação com o território e muito pouco, ou quase nada, recebem em troca.

Quem continua a viver nessas regiões quase sempre enfrenta a poluição de rios e do ar e a impossibilidade de continuar com a produção agrícola local. Enfim, a atividade mineradora acaba com as condições de sobrevivência no lugar e no seu entorno, gerando poucos empregos locais e deixando lucros bem limitados. As barragens de rejeitos, como as do Fundão e
de Santarém, em Mariana, que ocupam áreas gigantescas, são apenas um exemplo do que ocorre nesse tipo de atividade.

Certa vez ouvi do ex-prefeito de Ouro Preto Ângelo Oswaldo a seguinte frase, “o ouro deixou o barroco, o ferro, o barraco.” Com todas as ressalvas necessárias – não podemos pensar o ciclo do ouro sem lembrar que ele se realizou com trabalho escravo e muita exploração para enriquecimento da metrópole –, o que se destaca nessa frase é a pobreza promovida pela mineração em tempos atuais, quando isso não deveria mais ser admissível.

Afinal, em nome de que e por que ainda convivemos com isso? A extração de minério no Brasil atinge enormes escalas não para atender à indústria local e suas perspectivas futuras, mas para exportar. Por isso, a exploração exige ritmo e intensidade tão fortes. O que estamos vendo, portanto, é uma tragédia sobre outra tragédia, que já estava em curso há muito tempo, e que continuará ali e em outras partes do país se não enfrentarmos esse problema.

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***A análise “Tragédia em território devastado” da professora Raquel Rolnik foi publicada originalmente no site do Jornal Folha de São Paulo,  no dia 16 de novembro. O Observatório das Metrópoles divulga o texto de Rolnik para ampliar a reflexão sobre o papel da dimensão urbana na gestão brasileira.

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