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Zoraide Souza Pessoa¹
Rylanneive Leonardo Pontes Teixeira²

O conceito de “sociedade de risco” do sociólogo alemão Ulrich Beck é mais que atual nesse momento de emergência de um novo coronavírus, que vem provocando a pandemia mundial de COVID-19. Nos últimos cinco meses, essa pandemia tirou todo o globo dos eixos, causando algo inédito nas histórias das sociedades contemporâneas que é a instalação de um movimento de distanciamento entre as pessoas voluntário ou imposto por instrumentos institucionais de uma nova ordem social nunca vivenciada pelas gerações desde século.

No conjunto de suas obras voltadas para a emergência do novo padrão social do risco, Beck (2011) evidencia quatro pressupostos essenciais em sua análise: primeiramente, os riscos são globais, sendo sentidos por todos, mas com intensidade diferente entre as classes sociais e em todos os lugares, do país desenvolvido ao em desenvolvimento, tornando a repartição desses riscos aparentemente mais democrática e equalizada; segundo, a distribuição dos riscos e a sua intensidade é definida de acordo com as características da estrutura social; terceiro, a dimensão dos riscos está associada à crise ambiental contemporânea; e quarto, a inovação científica e tecnológica não é totalmente isenta e pode potencializar os riscos em escala global.

Com base nesses pressupostos, fica evidente diante da crise provocada pela pandemia de COVID-19, iniciada em Wuhan, na província Hubei na China, formalmente divulgada no final de dezembro de 2019 e que se alastrou por todos os continentes, estando presente em praticamente todos os países, com cerca de 4.000.000 infectados . Os países mais desenvolvidos e aqueles cujos processos estão em desenvolvimento apresentam altos índices de contaminação, estando no top 10: 1º Estados Unidos (1.344.512), 2º Espanha (224.350), 3º Reino Unido (224.328), 4º Rússia (221.344), 5º Itália (219.814), 6º França (177.547), 7º Alemanha (172.295), 8º Brasil (163.510), 9º Turquia (139.771) e 10º Irã (109.286) (HOPKINS, 2020). Entretanto, as lições dos primeiros países com casos confirmados, evidenciam que as medidas de distanciamento social foram as ações mais efetivas no controle preventivo da propagação do vírus, aliadas ao conhecimento científico e tecnológico como respostas efetivas as medidas propostas com ações de governança em multiníveis (SHAW; KIM; HUA, 2020).

Conforme estudos já afirmam, a capacidade de recuperação é lenta e demanda infraestrutura especializada de recursos em saúde que em geral são escassos e/ou precários em muitos países (SOHRABI et al., 2020). Pois, entre as principais características do novo coronavírus, tem-se: a) alta taxa de contágio; b) taxa de recuperação diferencial e lenta dos casos; c) letalidade alta, sobretudo, nos grupos de risco (SHAW; KIM; HUA, 2020).

Assim, considerando suas características, a exposição ao risco de contrair a COVID-19 é mais intensa nos estratos sociais mais vulneráveis que, por sua vez, potencializam a probabilidade de contrair a doença, pois as situações de perigo se tornam mais amplas e multidimensionais, sobrepondo-se. Nesse sentido, é importante perceber que, sendo a vulnerabilidade uma perspectiva conceitual polissêmica e multidimensional, podemos observar que podemos pensá-la no contexto tanto dos indivíduos como dos territórios em relação à pandemia.

Ao observar a vulnerabilidade no contexto dos indivíduos, é perceptível que as situações de risco se constituem ameaças mais intensas em grupos sociais vulneráveis, tais como: populações envelhecidas, populações com comorbidades e populações de excluídos e de minorias sociais (pobres em geral, moradores de rua, refugiados, quilombolas, indígenas entre outros) (VIEIRA et al., 2020). Na perspectiva dos territórios, observamos que os casos estão concentrados em especial nos grandes centros urbanos e nas áreas de grande concentração populacional e de fluxos de mobilidade – em especial, nas periferias urbanas que configuram os assentamentos subnormais, popularmente conhecidos como favelas, cujas moradias são precárias e inadequadas em relação ao adensamento populacional, além de deficitárias no acesso aos recursos básicos (água, energia, saneamento) e de saúde (serviços de saúde, rede básica e especializada hospitalar).

Quando as vulnerabilidades dos indivíduos se sobrepõem às dos territórios, a exposição ao risco torna mais intensa as ameaças a sua integralidade física. Contudo, a depender da condição que os indivíduos ocupam na estrutura social e como os territórios estão desenvolvidos, todos “navegam” na tempestade, ainda que com meios diferentes e com a manutenção das desigualdades sociais. Exemplo nesse sentido é a instalação de lockdown no estado do Pará por meio do Decreto nº 729, de 05 de maio de 2020, que considera as empregadas domésticas como trabalho essencial (PARÁ, 2020), enquanto que, no outro extremo do estado, os ricos, quando contaminados, fazem tratamento em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) em hospitais de alto padrão em São Paulo (CAMPBELL, 2020).

No Brasil, já ultrapassou mais de 160.000 casos confirmados e mais de 11.000 mortes, conforme dados do Ministério da Saúde (MS) para o dia de finalização deste texto (11 de maio), ocupando a 8ª posição entre os países com mais casos no contexto mundial (HOPKINS, 2020). Possivelmente, esses dados continuam em franco crescimento nos próximos dias, pois não se registraram recuos nas curvas da doença em todas as regiões e sim o contrário, com situações dramáticas relativas à capacidade de suporte dos sistemas públicos de saúde nos principais estados afetados pela pandemia como São Paulo, Ceará, Pernambuco, Maranhão e Amazonas.

É notório nacional e internacionalmente que a população brasileira tem as condições de vulnerabilidade sobrepostas em relação aos indivíduos e territórios. As populações mais vulneráveis estão nos territórios urbanos das cidades brasileiras em sua diversidade e complexidade de formas que se apresentam em metrópoles, regiões metropolitanas, grandes, médias e pequenas cidades, conforme se observa no Índice de Vulnerabilidade Municipal ao alastramento do Coronavírus (IVC)⁵ das cidades brasileiras mais vulneráveis ao aumento da COVID-19 (Figura 01) com base na combinação das condições de densidade demográfica geral e das favelas, dos grupos etários de maior ameaça de risco à COVID-19, das condições de infraestrutura sanitária e elétrica; mercado de trabalho em relação a informalidade e as condições de saúde de áreas com incidência de doenças respiratórias.

Figura 01 – Projeção do IVC para o território brasileiro.

É importante observar que as áreas mais afetadas e que já apresentam situações dramáticas em relação ao enfrentamento da pandemia até o momento coincidem com as áreas mais vulneráveis pelo IVC, demonstrando a esteira que está seguindo a concentração de maior incidência de casos e que merece atenção de todos os níveis de governo no enfrentamento desta pandemia no país (Figura 2). É interessante observar que a distribuição geral do IVC é muito semelhante à representação do subíndice em condições sanitárias e elétricas no país.

Contudo, a mitigação e a queda na expansão da infecção passam pelo modelo de governança da crise adotado pelo país, que está longe de ser consensual em todos os níveis de atuação na federação. Sendo marcado pela falta de consensualidade na adoção de medidas associadas em todos os níveis federativos e pela ausência de uma unidade de comando a nível nacional, internacionalmente apontada como a principal ameaça de descontrole total da situação no país (THE LANCET, 2020). Esse é um dos aspectos centrais, na atuação de alguns países na gestão da COVID-19, associada à transmissão de informação segura e consensual entre todos os níveis institucionais para a população e assim aumentar a sua colaboração nas medidas de distanciamento social, além do uso do conhecimento científico e de inovação tecnológica e informacional como auxiliares na condução das ações de governança para mitigação dos riscos (SHAW; KIM; HUA, 2020; MOATTI, 2020).

Figura 02 – Projeção dos subíndices do IVC para o território brasileiro.

É evidente, considerando as ideias da teoria do risco de Beck (2011), que os grupos sociais mais vulneráveis ao risco da doença são as populações mais pobres, excluídas e em minorias sociais. No início dos casos registrados no país, a doença estava concentrada em estratos sociais menos vulneráveis, marcada pela importação de casos, mas com a circulação comunitária desde meados da segunda quinzena de março em todo território nacional; no entanto, a prevalência agora é de aumento do número de casos entre os grupos sociais mais vulneráveis.

Em meio a uma sociedade de risco global, a inovação tecnológica permite a rápida propagação de fake news sobre o vírus nas redes sociais, o que prejudica as tomadas de decisões nos níveis individuais e coletivo (SHAW; KIM; HUA, 2020; VIEIRA et al., 2020). Ao mesmo tempo em que possibilita também a disseminação de informações das autoridades médicas e políticas à população, o surgimento desse vírus demonstra a intrínseca conexão entre a comunidade global (sociedade, governos etc.) para responder problemas que consideram prioritários, com riscos e efeitos rápidos sobre todos os continentes do planeta. Se o tema da vulnerabilidade dos indivíduos e dos territórios fosse colocado em suas agendas de prioridades, muitos problemas como mortes de pessoas por causa da ocorrência de eventos adversos relacionados à propagação de vírus seriam resolvidos ou pelo menos atenuados.

Nas últimas décadas, já tivemos situações semelhantes como:

  • A gripe aviária, primeiro caso em 1961 e pico de casos em 2005;
  • O Ébola, surgida em 1976, com surto em 2014;
  • A Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), com primeiro caso em 2002;
  • A H1N1 (Myxovirus influenzae) que surgiu em 2009, com surto no mesmo ano; e
  • A Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) em 2015, anterior à atual pandemia.

Contudo, todas essas patologias citadas não apresentam algo que as diferencia do atual surto pandêmico, que é a rápida transmissão em progressão geométrica exponencial, além de não existir meios de tratamento clínico efetivo e de vacinas, sendo enfatizadas medidas não farmacológicas como: lavar as mãos com frequência, cobrir boca e nariz ao tossir ou espirrar em público, manter distanciamento espacial e isolar os infectados tanto nos casos mais simples como nos mais complexos (SHAW; KIM; HUA, 2020; VIEIRA et al., 2020). Ademais, a COVID-19 reage de forma complexa, apresentando uma diversidade de sintomas além de provocar alterações em um ou mais sistemas do corpo humano (WADMAN et al., 2020).

Diante desse cenário, é notório que a emergência do novo coronavírus tem funcionado como um novo experimento social para refletir sobre o fato de os riscos serem globais, atingindo a todos em maior ou menor escala. Contudo, suas respostas mais eficazes estão na escala local e requerem sinergia dos governos em todos os níveis, bem como a participação da sociedade em ações individuais e coletivas a partir das experiências internacionais (SHAW; KIM; HUA, 2020). Todo esse cenário deveria “abrir os olhos” da sociedade e dos governos mundiais sobre a necessidade de adoção de políticas públicas ou ações para enfrentamento de situações de desastres como medidas preventivas de gerenciamentos dos riscos potenciais envolvidos, como o das mudanças climáticas (LAPOLA, 2020) e de outras situações de pandemia de saúde (SHAW; KIM; HUA, 2020) que, apesar de seus efeitos serem mais no longo prazo em relação aos do novo coronavírus, também são globais. No cenário de incertezas, não é descartável a vivência de novas pandemias com (ou mais) estragos como a atual proporcionada pela COVID-19.

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¹ Professora Adjunta do Departamento de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar Sociedades, Ambientes e Territórios (LISAT) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.

² Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN). Integrante do Laboratório Interdisciplinar Sociedades, Ambientes e Territórios (LISAT) e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.

³ Ulrich Beck publicou a risck society em 1986. Nesta obra, ele desenha os contornos e as características das sociedades, marcadas por uma nova análise social: não mais marcada exclusivamente pela divisão de classes, mas também divisão dos riscos (BECK, 1986).

⁴ Dados de 11 de maio de 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875

⁵ O IVC foi calculado pela Fundação Perseu Abramo, Boletim do ano 05 – nº 45 – março/abril 2020 ANÁLISE DA CONJUNTURA. A metodologia fez uso da metodologia de cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da Organização das Nações Unidas (ONU), com a escala 0 a 1, sendo mais próximo de 1 melhores condições. Também foram gerados subíndices para cada dimensão que agregados geraram o índice síntese final, o IVC.  Mais detalhes, disponível em: https://bit.ly/34kcedC

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. 2a. Ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

CAMPBELL, U. CORONAVÍRUS: RICOS DE BELÉM ESCAPAM EM UTI AÉREA DE COLAPSO NOS HOSPITAIS DA CIDADE. Brasil: Revista Época, 2020. Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/coronavirus-ricos-de-belem-escapam-em-uti-aerea-de-colapso-nos-hospitais-da-cidade-1-24412850?fbclid=IwAR1kR0B8-Ur4F0-DsehxnpT_jJhfQD0dZEVhvmza30FjGZlbZooJq8oi8Gw. Acesso em: 11 de maio de 2020.

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO – FPA. BOLETIM DE ANÁLISE DA CONJUNTURA. ANO 05 – Nº 45 – MARÇO/ABRIL 2020. Disponível em:  https://fpabramo.org.br/2020/04/16/estudo-ranqueia-municipios-mais-vulneraveis-ao-coronavirus/. Acesso em: 16 de abril de 2020.

HOPKINS, J. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU). Baltimore (EUA): Johns Hopkins University, 2020. Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em: 11 de maio de 2020.

LAPOLA, David M. Futuras pandemias poderão começar no Brasil: Mudanças climáticas e perda de biodiversidade são fatores de risco. São Paulo (SP): Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/futuras-pandemias-poderao-comecar-no-brasil.shtml. Acesso em: 11 de maio de 2020.

MOATTI, Jean-Paul. The French response to COVID-19: intrinsic difficulties at the interface of science, public health, and policy. The Lancet Public Health, v. 5, n. 5, p. e255, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/S2468-2667(20)30087-6

PARÁ. Decreto nº 729, de 05 de maio de 2020. Dispõe sobre a suspensão total de atividades não essenciais (lockdown), no âmbito dos Municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Castanhal, Santa Isabel do Pará, Santa Bárbara do Pará, Breves, Vigia e Santo Antônio do Tauá visando a contenção do avanço descontrolado da pandemia do coronavírus COVID-19. Diário Oficial do Estado do Pará, 2020. Disponível em: https://www.sistemas.pa.gov.br/sisleis/legislacao/5578. Acesso em: 11 de maio de 2020.

SHAW, Rajib; KIM, Yong-kyun; HUA, Jinling. Governance, technology and citizen behavior in pandemic: Lessons from COVID-19 in East Asia. Progress in Disaster Science, p. 100090, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.pdisas.2020.100090

SOHRABI, Catrin et al. World Health Organization declares global emergency: A review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). International Journal of Surgery, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijsu.2020.02.034

THE LANCET. COVID-19 in Brazil: “So what?”. The Lancet Public Health, v. 395, p. 1461, 2020.  Disponível em: www.thelancet.com. Acesso em: 11 de maio de 2020.

VIEIRA, Cristina Mesa et al. COVID-19: The forgotten priorities of the pandemic. Maturitas, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.maturitas.2020.04.004

WADMAN, Meredith et al. A rampage through the body. Science. 24 Apr 2020: Vol. 368, Issue 6489, pp. 356-360. DOI: https://doi.org/10.1126/science.368.6489.356