Skip to main content

Olga Lúcia Castreghini de Freitas¹
Helena Lúcia Zagury Tourinho²
Roberta Menezes Rodrigues³

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra

“No meio do caminho” – Carlos Drummond de Andrade

Assim como a pedra no meio do caminho de Drummond, a COP atravessou nosso cotidiano e a dinâmica da cidade de Belém (Pará).

Esse foi o tema provocador do seminário No meio do caminho tinha uma COP. Nunca esqueceremos desse acontecimento?: Perspectivas sobre a COP30 em Belém, realizado entre 22 e 24 de abril, que mobilizou pessoas de diferentes segmentos da sociedade para discutir temas como: sustentabilidade dos projetos em andamento, mobilidade, repercussões das ações no Centro Histórico de Belém, bioeconomia, economia urbana, participação e controle social.

Para além das discussões específicas sobre mudanças climáticas, a COP – Conferência das Partes, realizada pela ONU – pode e deve ser analisada à luz do conceito de megaevento, observando as transformações urbanas que promove na cidade-anfitriã. Por um lado, é o principal fórum global multilateral para discutir alterações climáticas e formas de reduzir os efeitos da emissão de gases de efeito estufa. Por outro, a preparação para sua realização em Belém revela uma dinâmica de intervenções urbanas que resgata uma agenda já explorada pelo Observatório das Metrópoles há mais de uma década, no projeto Metropolização e Megaeventos: impactos da Copa do Mundo/2014 e das Olimpíadas/2016.

Importante lembrar a recorrente afirmação da Ministra Marina Silva, que insiste em apontar para o fato de que a COP não é uma festa, mas uma reunião que trata de um tema dramático para todos nós: as mudanças climáticas e as possibilidades de mitigação dos seus efeitos sobre nossa sociedade e mesmo da adaptação aos novos normais que já povoam nossa realidade.
As cidades são locais sensíveis a esse processo, nelas está parte expressiva da população mundial, nelas vivemos nosso cotidiano, nelas sentimos de modo direto os impactos das mudanças climáticas! A cada ano, uma cidade é escolhida para sediar as reuniões que tratam de pactuar procedimentos e metas para o enfrentamento dessa realidade, e este ano é a vez de uma cidade brasileira: Belém, no Pará.

A COP é um megaevento em razão das seguintes características: é itinerante, ocorre em diferentes lugares a cada edição; tem grande atratividade de visitantes; demanda elevados custos, em especial ligados aos projetos de infraestrutura (obras viárias e de mobilidade, edifícios para abrigar as atividades), majoritariamente financiados com recursos públicos; possui elevado alcance midiático; impõe muitas transformações urbanas com impacto imediato na cidade-anfitriã (hotéis, estações de energia, aeroportos, instalações para conferência, dentre outros).

A ONU define que a proposta apresentada para sediar uma COP deve conter os seguintes elementos: capacidade de infraestrutura; planos de sustentabilidade; estratégias de segurança; compromisso financeiro; experiência em eventos internacionais, além do compromisso do país com a agenda climática global.

Nos campos da infraestrutura e logística, são apontados os seguintes requisitos:

  1. Centro de Convenções com salas para plenárias, reuniões menores, áreas de exposição e espaços para a mídia;
  2. Hospedagem com garantia de hotéis suficientes para todos os participantes, com opções para diferentes orçamentos;
  3. Transporte com sistema eficiente que permita o deslocamento de hotéis e aeroportos até o local do evento.

Em meio à generalizada falta de recursos para investimentos no país, eis que foram destinados a Belém mais de 5 bilhões de reais em recursos públicos, oriundos de fontes como: BNDES, FGTS/Caixa, Orçamento Geral da União, FUNGETUR e Itaipu Binacional. Chama a atenção o considerável aporte de recursos que teve como origem a hidrelétrica Itaipu Binacional, localizada no estado do Paraná e que, pela primeira vez, destina valores tão elevados para projetos que não se situam em sua área de influência direta – manobras do governo federal para suprir a necessária agilidade para os investimentos. A esse montante, somam-se recursos do Estado do Pará e da Prefeitura de Belém, além daqueles derivados da mineradora Vale como compensações devidas ao Estado do Pará, recurso que garante as obras do Parque da Cidade, principal infraestrutura para a realização da COP30. A isso se somam, também, os investimentos realizados pela iniciativa privada, difíceis de contabilizar.

Deve-se registrar que – diferente dos megaeventos esportivos, quando contávamos com um Portal da Transparência mostrando os recursos envolvidos nas obras e projetos – a COP30 não conta com um repositório geral onde possamos saber o que, onde, quanto e qual a origem dos recursos envolvidos. Esse fato, em si, dificulta qualquer ação de controle social sobre os montantes e sua destinação e sobre a dança do aumento de valores. Repete-se, infelizmente, uma das características dos megaeventos em todo o mundo, quando sabemos quais são os valores de partida dos projetos, mas não sabemos o que justifica os aumentos ocorridos ao longo do tempo e por que os custos finais são tão superiores àqueles do início.

Os projetos em curso em Belém estão para muito além das demandas específicas para a realização do megaevento. Receberam a chancela de preparação da cidade para a COP projetos que em nada se articulam ao megaevento e mesmo se contrapõem ao princípio da sustentabilidade. Assim, podemos classificar as obras em duas naturezas: de compromisso e de oportunidade. Enquanto as primeiras possuem caráter convergente e direto à realização do megaevento, as segundas são aquelas que foram nomeadas como afins à COP, mas que, de fato, se relacionam a outras demandas de infraestrutura, muitas delas históricas.

As obras de compromisso são em número reduzido, sobretudo em função da natureza do megaevento COP30. São elas:

  • Centro de Convenções: a COP se realizará no Parque da Cidade (Figura 1), com 500 mil m², localizado no antigo aeroporto Brigadeiro Protásio, transformado em parque, onde serão concentradas a blue zone (local das negociações e sob responsabilidade da ONU) e a green zone (local administrado pelo governo anfitrião e onde acontecem os eventos paralelos) (Figura 2), com investimentos estimados em R$ 700 milhões para a primeira fase, e que possui conexão com o Hangar Centro de Convenções, também em reforma (R$ 39 milhões);
  • Hospedagem: será provida por hotéis de redes privadas (Vila Galé Collection Amazônia – R$ 180 milhões e Maiorana Tivoli – R$ 20 milhões, dentre outras iniciativas do setor privado) (Figura 3), pela Vila COP – complexo hoteleiro e centro administrativo estadual (R$ 194 milhões), por meio da reforma e adaptação de escolas como hostel para o período da COP (R$ 68 milhões), além do aluguel de dois navios transatlânticos (R$ 260 milhões) que ficarão atracados no porto de Outeiro (distrito de Belém);
  • Transporte: ônibus elétricos para deslocamento dos participantes, seja por intermédio do BRT metropolitano (R$ 561 milhões), seja pela aquisição ou aluguel de ônibus elétricos para circular no município de Belém. Do ponto de vista dos meios de transporte para chegar a cidade, importante destacar as obras de reforma do Aeroporto Internacional (R$ 450 milhões) e de seu principal acesso, como também a modernização da Avenida Júlio César (R$ 136 milhões), principal acesso ao Parque da Cidade, além das obras em terminais hidroviários. A rodoviária sequer foi mencionada como alternativa.

Figura 1 – Parque da Cidade, sede da COP30, em Belém.

Figura 2 – Zona Azul e Verde

Figura 3 – Hotel Vila Galé Collection Amazônia.

As obras de oportunidade se referem a um conjunto de obras que, embora não sejam essenciais para a realização da COP, são importantes tanto para a manutenção e conservação dos edifícios patrimoniais quanto dos espaços públicos em geral. Destacamos:

  • o Porto Futuro II (R$ 568 milhões), composto pela revitalização e restauração de vários armazéns da zona portuária de Belém voltados a abrigar o Museu das Amazônias, um Centro Gastronômico, o Parque de Bioeconomia, as instalações do Caixa Cultural, além do Hotel Vila Galé Collection Amazônia (Figura 4);
  • a revitalização da Estação das Docas;
  • a reforma do Complexo Ver-o-Peso, incluindo a implantação do Sistema de Esgotamento Sanitário (SES);
  • o Mercado de São Brás;
  • a restauração dos Mercedários e da Igreja das Mercês;
  • a reforma do Mangal das Garças;
  • a reforma das ruas João Alfredo e Santo Antônio;
  • o restauro do Memorial Magalhães Barata e da Praça da Leitura;
  • e a reurbanização da Av. Augusto Montenegro, importante acesso à área de expansão de Belém.

Figura 4 – Obras do Porto Futuro II.

Um conjunto de obras de oportunidade está relacionado à drenagem urbana. Algumas delas vão de encontro aos princípios de sustentabilidade, porque conflitam com pressupostos básicos de conservação da floresta e reforçam modelos rodoviários como solução para a mobilidade urbana. Nesse grupo, ressaltamos: as obras de construção da Av. Liberdade e a duplicação da Rua da Marinha (R$ 480 milhões e R$ 242 milhões). A primeira é uma via expressa de 13 quilômetros de extensão, justificada pela necessidade de melhorar a mobilidade urbana, que corta importante remanescente florestal na região metropolitana; a segunda, com cerca de 3,5 quilômetros, interliga duas importantes vias: a rodovia Augusto Montenegro e a Av. Centenário. Neste caso, o licenciamento ambiental foi objeto de questionamento judicial, pois as obras avançam sobre área do Parque Municipal Gunnar Vingren, e o licenciamento existente era apenas da esfera estadual. A disputa entre prefeitura e estado, todavia, foi dissipada após as eleições municipais de 2024, que resultaram no alinhamento político entre as duas esferas federativas.

Questionável também é a concepção de parque linear proposta em duas obras: Parque Linear da Doca (R$ 310 milhões) e Parque Linear da Tamandaré (R$ 154 milhões), que se constituem em obras à base de concreto e ferro e dão outra roupagem aos canais pré-existentes sem promover intervenções estruturais para a renaturalização dos rios, além da expectativa sobre a solução para os crônicos problemas de drenagem e alagamento. Solução bizarra foi a chamada “eco-árvore” (Figura 5), uma estrutura de ferro com a “copa” preparada para receber vasos de plantas e promover sombra ao longo do traçado do parque.

Figura 5 – eco-árvore.

Importante ressaltar que a maioria dos recursos decorre de empréstimos com taxas de juros de mercado (como os do BNDES) e não de subsídios sem retorno às fontes financiadoras. Portanto, a conta desses investimentos vai chegar no futuro próximo.

Preocupados com o ritmo dos acontecimentos e com a reprodução de experiências do passado, temos nos dedicado a promover e ampliar as discussões e, também, a contribuir com movimentos e coletivos já constituídos que podem potencializar um conjunto de reflexões sobre o tema.

Como parte da dinâmica apressada de decisão e finalização das obras – afinal, a COP se aproxima e não há tempo para o contraditório e tampouco para a escuta da sociedade –, não há tempo para aprofundar debates sobre as prioridades de investimentos, tampouco sobre a qualidade dos projetos. Não há tempo para plantar árvores, então, vamos fabricá-las; não há tempo para licenciamentos ambientais, nem para explicar para as pessoas por que serão removidas para as obras do Terminal Hidroviário da Av. Tamandaré ou por que decisões que impactam diretamente suas vidas foram tomadas, como a construção de uma estação elevatória de esgoto no meio da comunidade da Vila da Barca. Bem conhecemos essa forma de agir dos governantes de plantão!

Resta-nos a sensação de déjà vu, de procedimentos e modelos de intervenção já conhecidos, levando à constatação de que o tempo passa, as motivações mudam, mas as práticas se perpetuam e não absorvem aquilo que foi criticado e apontado como problemas no passado… e la nave va.


¹ Professora Visitante do Programa de Pós Graduação em Geografia da UFPA e Profa. Sênior do PPGGEO/UFPR. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPQ e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Curitiba. Coordenadora do Projeto “COP30 em Belém (PA): das oportunidades de transformações urbanas aos desafios para a participação e controle social”, financiado pelo CNPQ.

² Prof.ª Dr.ª do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano (PPMDU) e do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade da Amazônia (UNAMA), integrante do Grupo de Pesquisa “COP30 em Belém (PA): das oportunidades de transformações urbanas aos desafios para a participação e controle social” apoiado pelo CNPQ processo 404376/2023-1. E-mail: helenazt60@gmail.com.

³ Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, coordenadora do Fórum Landi – FAU UFPA, pesquisadora do Núcleo Belém do Observatório das Metrópoles e membro da equipe da pesquisa “COP30 em Belém (PA): das oportunidades de transformações urbanas aos desafios para a participação e controle social”, apoiado pelo CNPQ no âmbito da Chamada Universal – CNPq/MCTI n. 10/2023.

As autoras agradecem ao bolsista Diego Cabano (Apoio Técnico) pelo importante auxílio nos procedimentos operacionais do projeto.

Veja também: