Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro*
A tese central de Giuliano da Empoli em “A Hora dos Predadores” (e antes, em “Os Engenheiros do Caos”) é contundente: autocratas e magnatas globais operam em simbiose para desestabilizar a ordem democrática e institucional, criando um caos orquestrado que serve aos seus interesses. Eles minam instituições, polarizam sociedades e instrumentalizam crises para enfraquecer Estados soberanos, abrindo caminho para a captura de mercados e o enfraquecimento de regulações. A súbita imposição de uma tarifa de 50% sobre as exportações brasileiras aos EUA por Donald Trump – claramente retaliatória às políticas digitais do Brasil – é um caso paradigmático dessa tese em ação.
O Padrão do Predador: Caos como Ferramenta
Da Empoli descreve como líderes autoritários e oligarcas usam táticas de choque:
- Retaliação como Intimidação: Ações abruptas e desproporcionais (como a tarifa de 50%) visam punir e intimidar governos que ousam desafiar seus interesses ou de seus aliados corporativos. Não se trata de uma política econômica racional, mas de uma demonstração de força destinada a gerar instabilidade e forçar a recua.
- Aliança com o Capital Predatório: Autocratas como Trump agem frequentemente como “cães de ataque” de grandes corporações. Ao atacar um país que regulamenta Big Techs e desenvolve alternativas soberanas, Trump sinaliza claramente às gigantes de tecnologia (como a Meta) que ele é seu defensor no poder político.
- Criação de Crises Controladas: O caos gerado pela ameaça tarifária (que afeta setores brasileiros vitais) é orquestrado. Visa criar pressão econômica e política máxima sobre o governo brasileiro, forçando-o a abrir mão de suas políticas digitais soberanas em troca da normalização comercial.
O Alvo Brasileiro: Soberania Digital e Regulação
As políticas brasileiras que desencadearam a retaliação de Trump são exatamente o tipo de iniciativa que os “predadores” buscam sabotar:
- Regulação das Big Techs: O avanço no STF na decisão para responsabilizar plataformas por conteúdos ilegais, combater desinformação e garantir transparência algorítmica ameaça o modelo de negócios e a influência desregulada de empresas como Meta, Google e X. Para os “magnatas” descritos por Da Empoli, essa regulação é um obstáculo a ser removido.
- O PIX como Soberania Financeira: O sistema instantâneo e público de pagamentos PIX, criado pelo Banco Central do Brasil, foi um sucesso estrondoso (usado por 140 milhões de pessoas). Ele frustrou diretamente o plano da Meta (Facebook/WhatsApp) de implementar pagamentos dentro de seus aplicativos no Brasil como um “laboratório” para posterior globalização. O PIX demonstrou que um serviço público eficiente e gratuito pode superar soluções privadas controladas por gigantes estrangeiras, reduzindo seu poder de mercado e seu acesso a dados financeiros valiosos.
A Conexão Trump-Meta: O Predador em Ação
A imposição da tarifa de 50% por Trump ocorre num contexto onde:
- O Brasil desafia o modelo de negócios e a expansão das Big Techs via regulação.
- O Brasil oferece uma alternativa soberana e bem-sucedida (o PIX) que bloqueou a entrada de um player global (Meta) num mercado crucial.
A tese de Da Empoli ilumina esta ação:
- Retaliação Orquestrada: A tarifa não é um ato isolado. É uma ferramenta de coerção alinhada aos interesses das Big Techs que Trump historicamente favorece. Visa criar um custo econômico insustentável para o Brasil, pressionando-o a abandonar a regulação e abrir espaço para os planos corporativos frustrados (como o da Meta com pagamentos via WhatsApp).
- Caos como Alavanca: A ameaça de caos econômico setorial (exportadores brasileiros) é instrumentalizada para gerar caos político interno. Espera-se que setores afetados pressionem o governo a recuar nas políticas digitais em troca da suspensão da tarifa.
- Mensagem Global: O ato de Trump serve de aviso a outros países: desafiar os interesses das Big Techs e promover soluções públicas soberanas terá consequências econômicas severas.
Conclusão: Resistir ao Jogo dos Predadores
A ação de Trump contra o Brasil é um capítulo vivo da “Hora dos Predadores”. Ela ilustra com clareza o modus operandi descrito por Da Empoli: a cooperação entre autocratas e magnatas para usar o caos como arma contra a soberania nacional e a regulação democrática. O Brasil, ao regular plataformas e criar o PIX, ergueu barreiras ao poder desmedido desses atores. A resposta predatória foi rápida e violenta.
A resistência a essa investida não é apenas sobre tarifas ou tecnologia; é sobre defender a capacidade dos Estados democráticos de governarem em prol de seus cidadãos, regularem poderes privados desequilibrados e desenvolverem soluções públicas inovadoras – sem serem submetidos ao caos orquestrado por aqueles que veem na desestabilização a oportunidade perfeita para impor sua vontade e ampliar seu domínio. O caso brasileiro torna-se, assim, um teste crucial para a validade da tese de Da Empoli e para a resiliência das democracias frente à ascensão dos predadores globais.

Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil).
*Professor titular do IPPUR/UFRJ e coordenador nacional da rede do Observatório das Metrópoles.