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ÉDOUARD LOUIS VISTO DO QUARTO
Frederico de Holanda

Para Fernanda
De um acamado em Brasília,
Para uma acamada no Rio

Depois de acamado desde 2 de agosto, quando fiz a cirurgia com o nome charmoso de artroplastia geral de joelho, começo a dar minhas fugidas, como sentar nesta cadeira, diante deste computador, para escrever algo. Quer dizer, estou de joelho (direito) novo, com uma linda prótese de titânio implantada, que me permitirá andar (correr? hum…) por mais alguns anos (décadas? hum…). O tempo de recuperação, como sempre, varia de pessoa para pessoa – não há doenças, há doentes. No meu caso estou feliz da vida porque ontem foi o primeiro dia em que consegui mudar de posição – deitado para sentado, sentado para em pé – sem que sofresse dores lancinantes. Haja progresso!

Visando a uma longa temporada de repouso, preparamos nosso quarto, aqui na casa de Sobradinho (Brasília), como sala-quarto-cinema, com uma baita TV especialmente adquirida. Assim, posso me manter neste piso intermediário da casa, reservando a escalada por escadas (para o piso da sala, acima, ou para o da garagem, abaixo) para as emergências. E usufruir da inércia térmica da casa, que faculta eu estar, neste momento, a 25.6º no nosso quarto, enquanto lá fora, mesmo com as portas do jardim dos quartos abertas (foto), estar fazendo (diz o meu aplicativo do celular) 30º. Inércia térmica (para os neófitos): atributos da casa (não vou pormenorizar) que fazem com que ela segure, sem condicionamento artificial, uma temperatura intermediária confortável entre os extremos diurnos e noturnos, que aqui no planalto ficam no inverno entre 12º e 25º; notem portanto, que a primavera chegou apressadinha (já está fazendo entre 18º e 31º).

Enquanto Tennessee tinha uma ponte, eu tenho um quarto a abrir para um jardim pergolado.

Espichado na cama, que fazer além de ver TV, ouvir música no meu maravilhoso fone Bose, e ler? A motivação para escrever este texto veio da terceira parte.

Outro dia, zapeando a TV, topei com um anúncio de Vera Magalhães sobre uma entrevista no programa Roda Viva (de cerca de 1 ano atrás, tinha me escapado) de um “jovem escritor francês”, hoje com 32 anos: Édouard Louis. Busquei a entrevista no YouTube. Fiquei fascinado. Ato contínuo, adquiri todos os livros já publicados no Brasil. Consegui cinco, mais um que sairá em breve, curiosamente, o primeiro originalmente publicado por ele, “O fim de Eddy”, prometido pelas livrarias brasileiras para o dia 10 de outubro. E não consegui evitar compartilhar este escrito com amigos chegados. Afinal, poetizava Silvio Rodrigues (da canção Te conozco):

El lago parece mar,
el viento sirve de abrigo:
Todo se vuelve a inventar
si lo comparto contigo.

(o quarto do autor/consorte)

Não sou crítico de literatura, mas sei que não devemos dar “spoilers” ao comentar as obras. Procuro ater-me ao espírito antes que à narrativa factual das histórias.

Primeiro, sobre o próprio Édouard. Ele nasceu de uma família muito pobre a classe trabalhadora de uma pequena cidade no norte da França. Seu pai era operário numa fábrica decadente, e teve a coluna destroçada por um gigantesco peso que lhe caiu em cima. Daí passou a trabalhos ainda factíveis – por exemplo, varrer ruas. Édouard prometeu a si mesmo que sairia daquele “inferno” o mais breve possível. Conta o intenso assédio que sofreu desde a primeira infância, principalmente pela penúria econômica e pela orientação homossexual, autoidentificada e expressada desde tenra idade. Sua narrativa, nos livros, segue essas trilhas paralelas – a economia e a sexualidade (como afluentes desse caudal principal, outras juntam-se a elas).

Entender sua inserção social levou-o a buscar outras vertentes além da literatura (lê enlouquecidamente): formou-se em História e em Sociologia. Resulta é uma obra que não trata categorias sociais em abstrato, mas exemplifica em pormenor sua materialização na vida cotidiana, inspirada, entre outros, em ninguém menos que Pierre Bourdieu, que muito admiro e de quem tenho procurado me apropriar mais recentemente, aplicando-a à Arquitetura. Particularmente importantes são seus trabalhos sobre a distinção de classe social construída a partir de práticas aparentemente comezinhas – rir, falar, sotaque, gestos, modos à mesa, vestir-se, pentear-se, o que comer, consumir, apreciar Arte – tudo, mas tudo mesmo que fazemos em nossa vida, cotidiana ou não.

Bourdieu (1930-2002) não viveu para apreciar o trabalho de Édouard. Imagino seu deleite ao ler uma obra que, à maravilha, dá corpo e alma a seus conceitos em personagens, ade-mais reais, pois numa obra autobiográfica. Doravante, “A distinção” e a obra de Édouard deviam ser colocadas lado a lado nas estantes das bibliotecas e livrarias, como duas faces da realidade – a empírica, a da realidade objetiva dos fatos (Édouard), e a teórica, em que se revela a estrutura profunda da primeira (Bourdieu).

Édouard percebe que abandonar o “inferno” implicava uma mudança em seu modo de vida muito maior do que imaginava: significava tornar-se um “trânsfuga de classe”, abandonando sua origem operária e mudando, degrau a degrau, sua pertença às duas vertentes, espaciais e institucionais, que ia seguindo, sem nunca perder o sentido crítico quanto ao caminho que estava a percorrer. (Tem militado ao longo da vida em partidos de extrema esquerda na França.) Vertente espacial: seu espaço de moradia, sua rua, a pequena vila, a pequena cidade, a cidade regional, enfim Paris; vertente institucional: o ensino primário (ou seu equivalente na França), o médio, a universidade, culminado nada menos com a famosa École Normale Supérieure de Paris – há uma forte correlação entre essas vertentes. Tudo isso, sobrevivendo em condições extremamente adversas, fazendo o que podia para, no limite, não morrer de fome. Habituados que somos a considerar a França (“Liberté, Égalité, Fraternité”) como país de “primeiro mundo”, em que a riqueza é distribuída em padrões menos indecentes do que nos países “em desenvolvimento” (agora, do “Sul Global”), Édouard nos revela, com uma riqueza empírica impressionante, uma outra França, não só muito mais desigual, como também muito mais estratificada, um país em que o “ponha-se no seu lugar” é (também) um lema, e implica uma estrutura de fronteiras extremamente rígidas entre classes ou setores de classes, cuja transposição é dificílima – para poucos, muitíssimo poucos, como Édouard Louis. (É emblemática e repetida a referência a amigos e conhecidos que, sem a força dele, foram ficando pelo caminho.)

É curioso como ele caracteriza sua transformação de pertença a classe social como uma passagem da classe operária para a burguesia. Principalmente para um escritor que é também um sociólogo e um historiador, não fazer referência à classe média é instigante. (Posso estar enganado, mas dos volumes que já li não me lembro de uma só referência a essa classe intermediária.) E, no entanto, sua “ascensão” à burguesia, por força mesmo de sua origem, não poderia deixar de passar por atividades “simbólicas” típicas da classe média: organizar uma biblioteca, trabalhar num museu ou numa escola, afinal ser professor – ou escritor, seu sonho maior, seu horizonte, sua “raison d’être”. Contudo, mesmo não nomeada, sua pertença lhe dá grande parte do sustento, não todo: vez por outra, quando o dinheiro rareia, volta a qualquer atividade junto a trabalhadores manuais que lhe mantenha de pé, vai atrás de toda e qualquer oportunidade.

De diversas maneiras, nas mais variadas circunstâncias, ele vai tomando contato com dignos representantes do mundo propriamente burguês, particularmente depois de conseguir mudar-se para Paris. São modernos mecenas que lhe dão suporte para que faça o que mais quer: escrever, escrever, escrever. Algumas relações são duradouras, outras efêmeras. Com eles, Édouard frequenta os mais luxuosos restaurantes, hotéis, resorts, dentro ou fora da França; com eles, faz muitas viagens para o exterior. Assim, vai introjetando o “modo burguês de ser”, em todas as frentes: registra atentamente e de forma divertida (para nós, não para ele, que sempre comenta seu mal-estar nessas ocasiões) as “aulas” do bem comportar-se como burguês que seus mecenas o transmitem sem constrangimento. Os conflitos de um “trânsfuga de classe” nunca o abandonarão: é magistral como ele descreve suas fases de vida, em grande pormenor, mediante episódios, falas, comporta-mentos, pensamentos, sentimentos, como camadas que vão se sobrepondo à sua carne, constituindo o seu ser corpóreo e simbólico.

A vida de Édouard é uma vida de conflitos diuturnos, como de conflitos são feitas também as vidas de seus familiares. Seus livros – os que já li – focam, cada qual, certos personagens familiares – o pai, a mãe, um irmão. Mas sem querer interferir na escolha do leitor – e o fazendo – eu começaria pelo (até agora) livro-síntese, com o sugestivo título “Mudar: método” (2021). Não é o primeiro (que é “O fim de Eddy”, 2018, ainda a sair no Brasil) nem é o último, mas nos oferece um grande caleidoscópio a partir do qual vislumbramos múltiplos aspectos de sua vida.

Uma vida em permanente “zona de turbulência” não poderia deixar de ser transfigurada para uma literatura de igual natureza. É uma escrita em alta velocidade, de curvas fecha-das, subidas e descidas íngremes, vazios sobre os quais passamos voando para aterrissar do outro lado. Frases incompletas, descontinuidades sem quaisquer pontuações, saltos no tempo e no espaço que nos deixam zonzos. A escrita é furiosa tanto quanto é de fúria o sentimento que ele dedica a muitos dos seus personagens, das situações e dos lugares que tanto lhe infligiram um sofrimento cruel. “Escrevo para me vingar”, informa repetida-mente.

Para nossa felicidade, sua vida excepcional nos é transmitida pela literatura, a linguagem que escolheu para construir um mundo de representações que ultrapassam tempo e espaço. Édouard Louis nos relembra uma obviedade: nunca tudo estará escrito.

Brasília, 12 de setembro de 2025.

(Édouard Louis)