Paulo Roberto R. Soares¹
Novembro. Novembro Negro, mês da consciência negra. E como todos os anos, neste país atravessado pela colonialidade e alicerçado no racismo estrutural, temos que dar as mesmas explicações: por que um “Novembro Negro”? Por que um “Dia Nacional da Consciência Negra”, num país com maioria da população preta, parda e negra? (Um parêntese: os Estados Unidos têm um feriado nacional no aniversário de Martin Luther King – MLK Day. Neste caso, “o que é bom para os Estados Unidos [não] é bom para o Brasil”?) Seguimos…
Pois eis que às portas do novembro de 2025 mais uma vez a população negra e periférica do Rio de Janeiro viveu momentos de terror na mais recente “operação policial” contra o crime organizado e o tráfico de drogas. O resultado foi quase duas centenas de mortos, corpos negros em sua grande maioria (inclusive entre os policiais abatidos). A brutalidade e o terror estatal assolando comunidades pobres, que vivem, assim, inseridas em uma perversa aula prática de “necropolítica”. O termo, formulado pelo filósofo africano Achille Mbembe, após a operação ganhou a mídia e o entendimento da população: quando o Estado exerce o seu poder e capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. E quase sempre estes (os que devem morrer) são os pobres, os miseráveis, os excluídos, os negros, povos originários, imigrantes, palestinos de Gaza, entre outros corpos “indesejados” pela sociedade patriarcal branca capitalista global neoliberal.
A atual “polarização” política que vivemos, exacerbada pelos “engenheiros do caos” da extrema direita, encarna também o “malismo” (termo do escritor basco-espanhol Mauro Entrialgo), ou “a ostentação do mal como propaganda”. Quando políticos, autoridades, bilionários, “cidadãos comuns” (especialmente nas redes sociais), perdem o pudor de ostentar publicamente ações ou desejos tradicionalmente reprováveis (como a morte ou aniquilação dos pobres) com a finalidade de obter benefício comercial, social ou, principalmente, eleitoral. Pois é isso que agora fazem os governadores da direita com o abjeto “Consórcio da Paz”: primeiro o massacre, depois a “paz”, nos “seus” termos, tal qual Trump e Netanyahu na Palestina. Coincidentemente, é em novembro, no dia 29, o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino.
Mas esta coluna trata de metrópoles, cidades e espaços urbanos e já retornamos a eles. As raízes desta necropolítica estão no modo como nossas cidades foram construídas e estão “organizadas” e agora geridas, em sua maioria, por serviçais do capital. Estão no racismo ambiental, que impôs à população negra, pobre e periférica as “zonas de sacrifício”, os piores lugares em termos de bem-estar, infraestruturas, serviços, segurança, mobilidade, acessibilidade, espaços públicos, qualidade ambiental e exposição ao risco climático (deslizamentos ou inundações). E mesmo quando estes territórios da população negra e periférica são relativamente seguros em termos ambientais, mesmo quando se constroem laços de identidade e solidariedade com o lugar, estas populações estão ameaçadas. Seja pela gentrificação, pois estes espaços se tornam de interesse para o capital imobiliário, seja pelas remoções e expulsões, como no caso do Quilombo Kédi, situado em zona “nobre” da capital e, por isso mesmo, indesejado. Os negros “não merecem” estar em um espaço tão privilegiado e valorizado da metrópole. É a narrativa dominante.

Foto: Rovena Rosa (Agência Brasil).
Podemos afirmar que o racismo ambiental também é uma forma de necropolítica, em conjunto com a necropolítica brutalista da truculência, como a vista agora e em outras operações no Rio de Janeiro e em Gaza nos últimos dois anos. Uma forma lenta e gradual de eliminação das populações periféricas, desgastadas pelo ambiente em que vivem, com suas expectativas (seriam “esperanças”?) de vida reduzidas, como apontam os mapas das desigualdades produzidos para São Paulo e outros em diversas metrópoles, com o aumento e persistência de doenças crônicas, hipertensão, obesidade, diabetes, depressão, como demonstrou Letícia Barbosa em A geografia da hipertensão – O que o corpo negro ainda carrega da travessia forçada e pelo esgotamento por longas jornadas de trabalho (escala 6×1) e amontoamento cotidiano no precário transporte coletivo. Assim como a mortalidade precoce derivada da violência, seja a do crime organizado, seja a violência policial, muito mais letal nos territórios periféricos.
E Porto Alegre? A cidade se construiu com base no racismo estrutural, relegando e expulsando os territórios negros, como diversas pesquisas comprovaram. E ainda hoje a gentrificação e a expulsão afetam estes territórios, como a insegurança jurídica de muitos quilombos urbanos do município. A catástrofe ambiental e climática de 2024 afetou principalmente negros e pobres, como o Observatório das Metrópoles demonstrou e o pós-enchente vem evidenciando como o Estado é ineficiente e burocrático para atender as populações mais necessitadas. Menos quando é para promover remoções e deslocamentos forçados.
A atual legislatura da câmara de vereadores, a pior da história, vem colecionando exemplos de racismo ambiental e necropolítica. Os mais recentes, os projetos de lei que pretendem erradicar os catadores de material reciclável e dificultar a distribuição de marmitas solidárias. Ambos afetam as populações mais pobres e necessitadas do município, que assim são vítimas da “necropolítica lenta” que mencionamos.
O novo Plano Diretor de Desenvolvimento “Sustentável”(?) é uma peça de neoliberalismo urbano, permissivo com a construção civil e praticamente ignorando territórios quilombolas, povos originários, políticas de habitação popular e Áreas Especiais de Interesse Social. Visa preparar a cidade para se tornar um grande balcão de negócios imobiliários, o que já vem ocorrendo há pelo menos uma década.
Enquanto isso, o mais recente megaempreendimento anunciado pela construtora líder do mercado diz que pretende “gerar transformação para a cidade”. O empreendimento ocupa quase um hectare, em zona nobre, em terreno anteriormente público, privatizado após um temporal que danificou o antigo ginásio da Brigada Militar. O estado entregou o imóvel em permuta por uma penitenciária na periferia da Região Metropolitana (equipamentos indesejados sempre se localizam nas periferias), que custou pouco mais de R$ 44 milhões. Dos 507 apartamentos que serão construídos, 359 (70%!) serão studios de 19 a 40 m², um produto imobiliário altamente especulativo, vendido majoritariamente para investidores e utilizado para aluguéis de curta temporada. O valor geral de vendas (potencial de faturamento do projeto) é estimado em R$ 450 milhões, ou seja, dez vezes o valor da “entrega” do patrimônio público. Especulação imobiliária e política de encarcemento (um dos componentes da necropolítica), que afeta majoritariamente a juventude negra, andam de mãos dadas, não somente no RS, também no Brasil e nos EUA (de onde vem o modelo).
Novembro Negro, tempo de lutas e reflexões.
¹ Professor do Departamento de Geografia da UFRGS. Pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato RS, em 04 de novembro de 2025.














