Olga Lúcia Castreghini de Freitas¹
Maria Goretti da Costa Tavares²
Roberta Menezes Rodrigues³
A preparação de Belém para sediar a COP30 em 2025 tem sido marcada, dentre outras coisas, pela falta de transparência e de mecanismos adequados que permitam a participação e acompanhamento da sociedade nos processos decisórios relacionados às obras e investimentos realizados. A lógica pragmática do urbanismo de exceção e da oportunidade inadiável produz, em nome das grandes obras de embelezamento e infraestrutura, diferentes situações de remoções forçadas e mesmo de racismo ambiental. Dois casos merecem atenção em Belém: o processo de remoção de famílias para dar lugar ao terminal hidroviário turístico na Av. Tamandaré e a instalação de uma estação elevatória de esgoto e deposição de resíduos das obras do Parque Linear da Doca de Souza Franco na comunidade da Vila da Barca.
Os dois casos mencionados se diluem no conjunto das ações em andamento, não porque não sejam importantes, mas porque as remoções e demolições de moradias são em número reduzido porém em diferentes obras: de drenagem, saneamento e alargamento de vias como no canal Caraparu, no bairro do Guamá, e no canal do Mártir, no bairro Curió-Utinga e em outras obras onde é preciso alargar os canais para dar vazão às águas, e em especial para a viabilização do Parque Linear da Av. Tamandaré e do Terminal hidroviário a ele conectado. Tais situações entendidas como pontuais não alcançam visibilidade que permita colocar em evidência os fatos que mudam a vida dessas pessoas.
Certamente, as obras de saneamento e macrodrenagem são importantes, em especial numa cidade como Belém, definida pelas águas que a cercam. São 14 bacias hidrográficas no interior da parte continental do município, muitos canais retificados ao longo do tempo e que não dão conta do escoamento das águas, em um contexto de mudança do regime das chuvas e da ampliação da impermeabilização do solo urbano.
A questão que se coloca está para além da necessidade das obras, mas de como o poder público age em relação à informação e à justa indenização às famílias. Na era da informação, desinformar é deixar pessoas à mercê de decisões e valores externos aos seus interesses, é não garantir opções de destinação adequada às pessoas e famílias cujas vidas foram estabelecidas em locais que permitiram o aprofundamento de relações de vizinhança e de trabalho, é desconsiderar o direito à cidade.
Terminal Hidroviário Turístico da Tamandaré
Localizado no Centro Histórico de Belém, na confluência do canal da Av. Tamandaré com o rio Guamá será construído o Terminal Hidroviário Turístico, a um custo estimado de R$ 22 milhões. Tal equipamento deverá ser uma alternativa importante de acesso às ilhas de Belém, em especial a Ilha do Combú, uma Área de Proteção Ambiental e destino de lazer importante para a população local e para turistas. A obra do terminal não pode ser dissociada do Parque Linear da Av. Tamandaré, pois estão integradas num mesmo propósito. Contudo, a viabilização desse empreendimento, significou a remoções de dezenas de famílias, o que pode ser visualizado nas Figuras 1, 2, 3 e 4, que mostram o antes e o depois do início das obras.
- Figura 1 – Ocupação da Tamandaré em maio de 2022. Foto: Olga L. C. de Freitas, acervo do projeto.
- Figura 2 – Ocupação da Tamandaré em novembro de 2024, já em processo de demolição. Foto: Olga L. C. de Freitas, acervo do projeto.
- Figura 3 – A ocupação da Tamandaré após a demolição das casas, abril de 2025. Foto: Olga L. C. de Freitas, acervo do projeto.
- Figura 4 – Área da ocupação após a demolição das casas, abril de 2025. Foto: Olga L. C. de Freitas, acervo do projeto.
Relatos colhidos pela equipe de pesquisa em atividade de campo mostram um processo arbitrário de retirada dos moradores, definição aleatória das indenizações e nenhum compromisso com a destinação das pessoas. Em diferentes entrevistas surgiram referências aos procedimentos de remoção – “não veio ninguém para conversar com os moradores, nem psicólogo, nem nada. E eles são muito arrogantes”, – e a perspectiva de ausência de direitos pela ocupação estar em área da União, que sugerem uma posição de conformismo com o processo de retirada, afinal, a área é da União. Ao serem questionados sobre o valor pago como indenização, uma moradora afirma “muito pouco, não dá nem pra gente comprar uma casa. Só dá pra ir pro interior mesmo”. Outra pessoa entrevistada afirma que “ninguém foi ouvido, não há informação quanto ao projeto que está sendo executado, todas as informações referentes as mudanças que estão ocorrendo no Centro Histórico de Belém não foram compartilhadas nem com as instituições que atuam no centro histórico e nem com os moradores”.
A Comunidade da Vila da Barca
Localizada nas imediações do bairro do Umarizal, o mais importante vetor de valorização imobiliária da cidade, a Vila da Barca é uma comunidade centenária, majoritariamente sobre palafitas e estivas de madeira e que foi, ao longo do tempo, objeto de diferentes intervenções no sentido de erradicação das palafitas com a construção de casas populares em alvenaria, mas que atendeu apenas parcialmente a comunidade local. As obras permanecem em ritmo errático há mais de duas décadas, o que enseja diferentes críticas dos quase seis mil moradores.
Sua localização estratégica, de frente para o rio e conectada a uma área de forte interesse e atuação do mercado imobiliário de alto padrão, confere a comunidade uma condição de ameaça permanente de remoção. No entanto, trata-se de uma das comunidades mais organizadas e articuladas na área central de Belém (Figura 5).

Figura 5 – Vila da Barca e os prédios do Umarizal ao fundo – abril de 2025. Foto: Roberta Menezes Rodrigues, acervo do projeto.
Com as obras para a COP30, a comunidade que tem sido símbolo das baixadas em Belém denuncia que tem sido impactada pelo descarte de resíduos da obra do Parque Linear da Doca de Souza Franco (Figura 6), e que foram surpreendidos com a implantação de uma Estação Elevatória de Esgoto, cujo objetivo é atender, por transferência, o esgoto produzido pela população do vizinho bairro do Umarizal, mas que, entretanto, não atenderá a comunidade, que segue sem solução definitiva de acesso a água e coleta de esgoto, que hoje tem o rio como destino direto.
- Figura 6 – Deposição de resíduos na Vila Barca, abril 2025.
- Figura 7 – Obras da Estação Elevatória na Vila da Barca, abril de 2025.
Note-se na Figura 7 a densa ocupação residencial ao redor do terreno onde está sendo construída a Estação Elevatória. Moradores tem se manifestado contrários à forma como a decisão foi tomada, o que tem gerado uma série de protestos, além da busca da justiça para mediar o conflito estabelecido. Embate importante ocorreu por ocasião da Audiência Pública realizada no dia 7 de abril, cuja repercussão pode ser facilmente encontrada na mídia e nas redes sociais em matérias como “Moradores da Vila da Barca, em Belém, desafiam diretor da COSANPA a beber água da torneira e escancaram racismo ambiental em obra da COP 30”.
Os moradores reclamam sobre a falta de consulta prévia à população local, bem como a ausência de estudo de impacto ambiental da obra. Informações incompletas sobre o odor que será gerado e sobre os resíduos de obra descartados na área são motivo de legítimos questionamentos, além do fato de que a estação não vai atender a própria Vila.
Nos dois casos (Ocupação da Tamandaré e Vila da Barca) há uma forte pressão de grandes proprietários fundiários e de empresas do mercado imobiliário para que, na oportunidade dos investimentos para a realização da COP30, áreas com localizações estratégicas, inclusive áreas públicas, passem por um processo de transformação, que implica na remoção de assentamentos historicamente ocupados por uma população de baixa renda e conectada a uma economia ribeirinha.
Neste sentido, ganha importância na pesquisa em andamento o acompanhamento e publicização das situações de violação de direitos e de racismo ambiental.
¹ Professora Visitante do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPA e Profa. Sênior do PPGGEO/UFPR. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPQ e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Curitiba. Coordenadora do Projeto “COP30 em Belém (PA): das oportunidades de transformações urbanas aos desafios para a participação e controle social”, apoiado pelo CNPQ no âmbito da Chamada Universal – CNPq/MCTI n. 10/2023 – Faixa B – Grupos Consolidados.
² Professora Titular da Faculdade e Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPA, Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq e membro da equipe da pesquisa “COP30 em Belém (PA): das oportunidades de transformações urbanas aos desafios para a participação e controle social”.
³ Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, coordenadora do Fórum Landi – FAU UFPA, pesquisadora do Núcleo Belém do Observatório das Metrópoles e membro da equipe da pesquisa “COP30 em Belém (PA): das oportunidades de transformações urbanas aos desafios para a participação e controle social”, apoiado pelo CNPQ no âmbito da Chamada Universal – CNPq/MCTI n. 10/2023 – Faixa B – Grupos Consolidados.
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