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Suyá Quintslr¹²

No início dos anos 2000, uma série de reversões de privatizações de serviços de água e esgoto no mundo levou pesquisadores a falarem em uma “tendência de remunicipalização”, sem avaliar sistemática e longitudinalmente processos de estatização e de [re]privatização desses serviços em contextos mais amplos. Essa tendência foi definida como uma orientação rumo à gestão pública da água, motivada principalmente pela explicitação dos limites e riscos da privatização para a garantia do direito à água. No entanto, os variados processos de remunicipalização revelam interesses muito diversificados.

De fato, centenas de remunicipalizações ou reestatizações ocorreram nas primeiras duas décadas do século XXI, sobretudo em países do Norte Global. Grandes cidades europeias, como Paris (França) e Berlim (Alemanha), são apresentadas como casos emblemáticos. No primeiro caso, a retomada dos serviços pelo município em 2010 é relevante não apenas pela importância e pelo imaginário em torno da “cidade luz”, mas também por ser a França o país de origem de grandes multinacionais que atuaram em serviços de água privatizados pelo mundo. Outras cidades francesas importantes seguiram o exemplo, reforçando a tendência inaugurada com Grenoble em 2001: Bordeaux (2011), Nice (2013), Montpellier (2014) e, mais recentemente, a terceira maior cidade da França, Lyon, também decidiu gerir de forma pública seus serviços de água. Em muitos desses casos, a decisão de prefeituras de esquerda de reassumir os serviços coincidiu com o encerramento dos contratos, não gerando disputas judiciais.

No Sul Global, embora menos numerosos, casos reconhecidos internacionalmente incluem Cochabamba e La Paz (Bolívia), a província de Buenos Aires (Argentina), Dar es Salaam (Tanzânia), Kuala Lumpur (Malásia), entre outros. A Guerra da Água (2000), em Cochabamba, foi motivada pela prática comercial da Aguas de Tunari (subsidiária do grupo estadunidense Bechtel), que incluiu o aumento de tarifas e a cobrança pelo uso da água bruta de sistemas alternativos construídos por grupos indígenas bolivianos. A revolta popular resultou na anulação do contrato. Buenos Aires também é frequentemente apontada como exemplo de remunicipalização, apesar de a expressão não caracterizar precisamente o que aconteceu, uma vez que o poder concedente foi o governo federal. O descumprimento do contrato, a incapacidade de a concessionária privada expandir a rede de água para a periferia da Área Metropolitana de Buenos Aires e o aumento de tarifas levaram ao cancelamento do contrato e à criação da estatal Agua y Saneamientos Argentinos S.A. (AySA). A longa disputa judicial que se seguiu foi encerrada com a obrigação de pagamento de uma compensação milionária por parte do governo argentino às partes privadas.

Menos conhecida é a reversão da privatização dos serviços de água e esgoto de 77 municípios do estado do Tocantins (Brasil), após mudanças seguidas na estrutura de capital da Saneatins que resultaram em sua completa privatização. A saída do Governo do Estado do Tocantins da companhia resultou em sua cisão e na criação de uma autarquia estadual (Agência Tocantinense de Saneamento – ATS) para assumir os serviços em pequenos municípios do estado em 2010. Com o passar dos anos, entretanto, mais de 30 desses municípios voltaram a privatizar os serviços.

Em síntese, a retomada dos serviços privatizados nas décadas de 1990 e 2000 teve motivações diversas. Variados também foram os procedimentos pelos quais se alcançou a reestatização (compra de ações das companhias pelos entes públicos, cisão de empresa de economia mista com controle privado, rescisão contratual, encerramento contratual etc.) e seus resultados. Por um lado, em certos casos, a retomada da gestão pública da água permitiu a redução de tarifas e políticas de ampliação do acesso. Por outro, muitas vezes frustrou expectativas e abriu caminho para novas propostas de privatização, como é o caso de municípios do Tocantins e da AySA na Argentina – novamente sob ameaça de privatização pelo governo de extrema direita de Javier Milei.

Aparentemente, a velocidade com que as cidades vêm remunicipalizando diminuiu na última década, ao que se soma uma nova ofensiva de grupos privados e governos para privatizar os serviços via concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs). A magnitude das privatizações no Brasil a partir da mudança na Política Nacional de Saneamento Básico em 2020 é parte desse processo, que inclui também PPPs para tratamento de esgoto e dessalinização da água em países com níveis críticos de precipitação. Na América Latina, o setor privado avança na construção e operação de plantas dessalinizadoras no Chile, por exemplo, país no qual os serviços seguem privados há décadas.

Dessa forma, é preciso olhar com atenção as mudanças que vêm ocorrendo na gestão da água no mundo, não aderindo ingenuamente à crença em uma tendência duradoura de processos de reestatização. O que observamos no início do século pode ser melhor compreendido a partir das mudanças históricas e da disputa sobre as formas como Estado, mercado e sociedade buscam gerir os recursos naturais. A defesa de um modelo público deve ir além da luta pela remunicipalização, buscando meios de torná-la duradoura, de democratizar a gestão e de fazer com que ela permita a universalização dos serviços e a garantia dos Direitos Humanos à Água e ao Saneamento (DHAES). A partir dessa ressalva é que passo a descrever o caso do Uruguai, país em que a privatização da água é constitucionalmente proibida.

Foto: José Cruz (Agência Brasil).

A história do serviço de abastecimento de água no Uruguai está vinculada à concessão realizada a uma empresa privada que buscava solucionar o problema de escassez de água na capital, Montevidéu, na segunda metade do século XIX. Embora criada por empresários do Rio da Prata, logo foi vendida ao capital inglês, passando a operar sob o nome The Montevideo Waterworks Co. (MWW). Contudo, a operação privada, que se estendeu por 70 anos (de 1871 a 1950), sempre causou polêmica no país. O Estado uruguaio assumiu os serviços somente em 1950, quando criou a empresa pública Obras Sanitarias del Estado (OSE).

Os serviços de água e esgoto voltariam a ser privatizados, de forma pontual, na esteira das reformas neoliberais da década de 1990. Em 1992, ocorreu a primeira concessão do período, quando a Aguas de la Costa assumiu os serviços em uma pequena área turística do departamento de Maldonado. Quatro anos depois, o controle da companhia foi passado ao grupo Aguas de Barcelona, subsidiária espanhola da francesa Suez. Em 2000, outra corporação (Aguas de Bilbao) criou a empresa URAGUA para assumir o restante do departamento.

O descontentamento com os serviços prestados pelas companhias privadas era grande e fomentava a mobilização local em defesa do saneamento, mas foi o anúncio de negociações com o Banco Mundial e o FMI para promover reformas regulatórias pró-mercado que impulsionou a organização da sociedade para a realização de um plebiscito que alterou a Constituição. Esta é uma das formas constitucionais de exercício da soberania pelos eleitores uruguaios. Sua realização depende da coleta de assinaturas de 10% do eleitorado, o que não impediu que esse mecanismo de participação direta fosse usado diversas vezes nas décadas de 1990 e 2000 como maneira de resistir às reformas neoliberais. Assim, frente à ameaça de expansão da privatização, movimentos de bairro, sindicais e organizações ambientalistas se organizaram em torno da Comisión Nacional en Defensa del Agua y la Vida (CNDAV), que passou a ser a instituição central da coleta de assinaturas.

No espaço de um ano, mais de 280 mil pessoas assinaram a solicitação de plebiscito, que foi convocado e realizado no dia 31 de outubro de 2004, junto às eleições gerais. Na ocasião, a população votou em um texto que tornava a água e o esgotamento sanitário direitos humanos fundamentais, estabelecia a participação cidadã nas políticas de água e definia a reserva monopolística dos serviços para o Estado, proibindo a participação privada. O movimento liderado pela CNDAV foi amplamente vitorioso, com mais de 64% dos eleitores favoráveis, o que resultou na Reforma Constitucional de 2004, consolidada com a inclusão do artigo 47 na Constituição da República.

A CNDAV continuou ativa após a reforma – e assim segue até hoje –, entre outras coisas, para acompanhar as mudanças nas políticas públicas de água e o resgate dos serviços privatizados na década de 1990. Nesse caso, a reestatização dependeu de negociação e acordos para evitar disputas judiciais. Assim, a OSE reassumiu a gestão e vem operando as redes de saneamento com serviços de água praticamente universalizados no país, enquanto o esgotamento sanitário segue como um desafio.

Desde então, mesmo com a ameaça da privatização constitucionalmente afastada, a água continua sendo um tema mobilizador dos movimentos sociais no Uruguai. Essa mobilização permitiu que os cidadãos se opusessem de modo eficaz a um megaprojeto de abastecimento proposto pela iniciativa privada, denominado Projeto Neptuno. Este foi apresentado no início dos anos 2020 e aprovado em meio à grave crise hídrica de 2023 na Área Metropolitana de Montevidéu (AMM). Consistia basicamente na construção de uma tomada d’água no Rio da Prata e de uma planta potabilizadora a 70 km de Montevidéu, sendo as infraestruturas propostas geridas pelo consórcio proponente. Por esse motivo, seus opositores consideravam-no inconstitucional, na medida em que envolvia entes privados na gestão da água. No início de 2025, o então presidente Lacalle Pou (Partido Nacional) assinou o contrato com o consórcio Aguas de Montevideo poucas semanas antes de deixar o Poder Executivo nacional. O governo da Frente Ampla, liderado pelo presidente Yamandú Orsi, iniciou negociações com o vencedor da licitação e, recentemente, rechaçou o Projeto Neptuno, propondo, em seu lugar, outras obras para garantir o abastecimento da AMM.

A reestatização e a proibição constitucional da privatização da água no Uruguai levantam algumas reflexões. Fica claro que, apesar de constitucionalmente proibida, grupos privados com frequência pressionam pelo reingresso na gestão da água no país. A cultura política de participação democrática direta e a ampla e duradoura mobilização da sociedade contra a mercantilização de um bem fundamental vêm permitindo que a gestão pública resista, ainda que o desinvestimento e o sucateamento venham sendo denunciados pelo sindicato dos funcionários da OSE (FFOSE).

Em síntese, um olhar atento ao que vem sendo apresentado como remunicipalização nos mostra que não existe uma tendência inexorável de retorno da gestão ao setor público, fruto de um entendimento compartilhado de que a privatização da água fracassou. Diferentes jurisdições seguem privatizando os serviços, seja via concessões ou PPPs. Além disso, alguns casos, como o de Tocantins, podem ser melhor compreendidos se a remunicipalização for vista como uma forma temporária de ajuste de mercado em busca de novas oportunidades.

Assim, a luta por um modelo público e democrático de gestão dos serviços de saneamento deve ser permanente, e apenas o sucesso desse modelo em termos de promoção de direitos pode garantir sua prevalência. A abertura de capital de empresas públicas, a redução de funcionários, a ausência de investimentos capazes de universalizar as redes, os cortes de água por inadimplência em caso de comprovada incapacidade de pagamento e outras violações dos DHAES precisam ser combatidos, na medida em que são embriões da privatização.

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¹ Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora da rede INCT Observatório das Metrópoles, coordenadora do ECOAGUA – Laboratório de Ecologia Política da Água (UFRJ) e associada ao Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS). 

² As informações aqui apresentadas fazem parte da estratégia de divulgação científica de projetos de pesquisa coordenados pela autora, que agradece às agências de fomento Faperj e CNPq pelo financiamento.

REFERÊNCIAS

Lobina, E., Kishimoto, S., Petitjean, P. Here to stay: water remunicipalisation as a global trend. PSIRU, TNI, Multinational Observatory, 2014.

Withecase. Under pressure: Latin American water sector turns to private investment. 2025. Disponível em: https://www.whitecase.com/insight-our-thinking/latin-america-focus-2024-water-sector-private-investment?utm_source=chatgpt.com

SANTOS, Carlos. Aguas en Movimiento: la Resistencia a la Privatización del Agua en Uruguay. Ediciones de la Canilla, 2006.

TAKS, Javier. ‘El Agua es de Todos/Water for All’: Water resources and development in Uruguay. Development, v. 51, n. 1, p. 17-22, 2008.

CLIFTON, Judith et al. Re-municipalization of public services: trend or hype?. Journal of Economic Policy Reform, v. 24, n. 3, p. 293-304, 2021.