Como o rentismo, baseado numa lógica neoextrativista, se manifesta na periferia do capitalismo global? Para identificar e analisar os nexos atuais entre dependência e urbanização, a coletânea “A nova urbanização dependente no capitalismo rentista-neoextrativista” foi lançada durante o XXI ENANPUR (Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional), promovido de 19 a 23 de maio, em Curitiba (PR). Marcando este lançamento, uma Sessão Especial foi realizada no dia 22, como forma de apresentação mais ampla da obra organizada pelo coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, e pelo pesquisador do Núcleo Rio de Janeiro, Nelson Diniz.
“Nosso objetivo com o livro foi construir um quadro teórico renovado para compreender as profundas transformações da ordem urbana regional brasileira, marcadas por desindustrialização, reprimarização e reperiferização no contexto do capitalismo global”, salientou Ribeiro. Dividida em cinco partes, com 24 capítulos escritos por 42 autores e autoras nacionais e internacionais, a obra soma 840 páginas. Todo o projeto de publicação está disponível em um blog criado com o material do projeto. O livro está à venda no site da Letra Capital Editora (para adquiri-lo, clique aqui).
“Nosso trabalho parte da constatação de que vivemos sob um capitalismo cada vez mais rentista, no qual a apropriação da mais-valia ocorre mais pelas relações de propriedade do que pelas de produção, e isso tem transformado profundamente a ordem urbana e regional no Brasil”, pontuou Ribeiro durante a apresentação. Além dos organizadores da obra, participaram da sessão a coordenadora do Núcleo Belo Horizonte, Junia Ferrari, a pesquisadora do Núcleo Fortaleza, Denise Elias e os pesquisadores do Núcleo Rio de Janeiro, Igor Matela e Alexandre Yassu, todos autores e autoras de capítulos da coletânea.
Durante a Sessão Especial, Nelson Diniz falou a respeito da dinâmica do projeto que resultou na coletânea, sua estrutura e quais foram os objetivos gerais e as hipóteses centrais que orientaram os organizadores ao longo do tempo. Segundo ele, a lógica de distribuição dos 25 capítulos se deu a partir de um nível de abstração mais alto, com considerações mais sistêmicas para pensar o que é a nova dependência e, também, o que seria uma nova urbanização dependente que acompanha uma posição nova, mas ainda subordinada, do Brasil e da América Latina no sistema mundial. “Depois, nós consideramos a dinâmica demográfica, econômica e imobiliária do que nós estamos chamando de nova urbanização dependente”, relatou.
Seguindo com a exposição sobre a distribuição dos capítulos, uma outra parte se ocupou do que pode ser designado como aglomerações urbano-regionais neoextrativistas. “Aqui temos dois exemplos muito importantes, que são as cidades do agronegócio e os municípios minerados, ambos considerados no livro”, pontuou. Conforme Diniz, outros importantes capítulos da obra abordam a urbanização logística, com um enquadramento baseado nas reflexões sobre a dependência, além de pensar os atores, a formação dos sujeitos, os conflitos e as alternativas que estão em jogo diante de tudo isso.
“A lógica é a de que, diante de uma nova dependência, mais profunda, que nos conecta mais diretamente com os mecanismos de acumulação de poder e riqueza no nível sistêmico, estamos diante da conversão do Brasil numa plataforma de exportação de commodities, de valorização financeira e de serviços digitais urbanos”, sublinhou. Segundo ele, uma série de temas e problemas que estão sendo discutidos com base nesses rótulos ou conceitos, ou seja, cidades do agronegócio, cidades da mineração, financeirização, a cidade em portfólio e, mais recentemente, todo o debate sobre plataformização – cidades inteligentes e cidades dos galpões -, tudo isso tem conexão com os eixos da dependência, que estão acompanhados, sobretudo, por um processo de desindustrialização barra reprimarização. “Desindustrialização que é, sobretudo, metropolitana”, admitiu.

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro na abertura da Sessão Especial. Foto: Karina Soares.
Projeto foi conduzido pelo grupo “Metrópole, Estado e Capital”
Na ocasião, Diniz explicou que o projeto do livro foi conduzido pelo grupo “Metrópole, Estado e Capital”, que existe desde 2015 e é coordenado por Luiz Cesar Ribeiro. “A partir do nosso trabalho, reunimos alguns textos inéditos e outros recém-publicados, além de textos dos próprios integrantes do grupo, para oferecer um apanhado de abordagem disso que estamos chamando de nova urbanização dependente”, ressaltou. Todo o projeto de publicação da coletânea está reunido em um blog criado pelo grupo, com as memórias das interações entre os 42 autores e autoras da obra.
De acordo com ele, os autores e autoras dos capítulos estiveram em contato com o grupo, em uma interlocução acadêmica ao longo dos anos recentes. “O mais importante e mais rico no projeto foi o que o professor Luiz Cesar fez questão de estabelecer como um critério de produção científica com base no diálogo. Nós passamos quase dois anos numa dinâmica sistemática de seminários online, onde cada um dos capítulos foi apresentado e debatido às quartas-feiras de manhã entre nós”, recordou.
Sobre o grupo, Diniz comenta que já havia um acúmulo dentro de um debate anterior, com ênfase naquilo que se costuma chamar de financeirização, dominância financeira e as suas repercussões no urbano. Foram publicadas três teses de doutorado que resultaram em livros, feitas com base em uma tentativa de ler a financeirização urbana com uma alternativa chamada de inspiração arriguiana-brodeliana, observando esse fenômeno na longa duração e na sua recorrência histórica.
Sobre os objetivos do projeto, da coletânea e da aposta teórica, Diniz mencionou que estão ligados à procura de um novo marco teórico que permita compreender as mudanças estruturais da ordem urbano-regional brasileira e latino-americana com o devido cuidado e mediações. “Isso porque há unidade, mas há adversidade na América Latina no século XXI. Então, a proposta é analisar e problematizar uma série de dinâmicas e de morfologias urbanas que estão em funcionamento tanto no Brasil quanto na América Latina, que expressam esse advento de uma forma histórica nova da dependência”, pontuou.
Para ele, há uma correspondência entre dependência e formas de produção social do espaço, em particular formas de produção social do espaço urbano, que estava em questão nos anos 70, mas que agora está sendo retomada no debate do livro. Dentre as muitas justificativas, Diniz destaca a chamada fenomenologia dos problemas urbanos, que era uma maneira de considerar a questão urbana, seus diferentes aspectos, sem oferecer um argumento a respeito da unidade, da ordem que unificava todos esses problemas, fazendo-se perder um pouco na superfície dos problemas, aquilo que articula a questão urbana brasileira e latino-americana.
“Também é importante oferecer uma proposta de compreensão que supera o globalismo teórico. O que é legítimo, procurando em referência do mundo anglo-saxônico, a maneira de explicar os problemas urbanos e regionais da América Latina. Elas são importantes, mas nós também temos uma tradição de teoria urbana e crítica latino-americana que pode nos ajudar”, afirmou. Diniz conclui que as hipóteses centrais do livro giram em torno de uma problemática espacial comum que é derivada de uma posição subordinada da América Latina, do Brasil em particular, no sistema mundo capitalista. “Porque nós estamos diante de formações sociais dependentes. Na verdade, essas conexões entre dependência e produção social do espaço estão ainda mais no centro daquilo que é necessário mobilizar para explicar a ordem urbana e regional brasileira, porque na nossa perspectiva e na de vários autores e autores, a dependência que nós chamamos no livro de rentista se aprofundou no Brasil e na América Latina”, refletiu.
Conforme Diniz, a ordem urbana e regional que acompanha um padrão de reprodução do capital contemporâneo é liberal, financeira, agromineral, exportador e tem a ver com a desindustrialização e a reprimarização, impulsionando uma série de ajustes ou ordenações dos espaços temporais em várias escalas cujas dinâmicas dos países dependentes não controlam. “Isso tem a ver com uma série de mecanismos de expropriação do território, de funcionalização do território para novos e velhos circuitos de acumulação de capital, de circulação de mercadorias e de informações, acima de tudo, nesse momento. Isso também tem a ver com uma nova rodada de superexploração do trabalho, de espoliação urbana e, portanto, de expropriação secundária da força de trabalho que já está quase, majoritariamente, assentada em espaços urbanos”, finalizou.

Nelson Diniz apresenta do projeto que deu origem ao livro. Foto: Karina Soares.
Relações de dependência colocam o Brasil e a América Latina no capitalismo global rentista
“Hoje, é impossível pensar qualquer esfera da vida do Brasil e da América Latina sem pensar nas relações de dependência que nos colocam nesse capitalismo global rentista”, afirmou Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro durante a Sessão Especial. Segundo ele, existem muitos elementos para entender as dinâmicas que estão ocorrendo internamente e que decorrem da nova inserção nas relações de dependência, que, enfim, decorre de uma nova divisão internacional do trabalho que o capitalismo rentista organizou no mundo. Para o coordenador nacional do Observatório, a periferia foi inserida nesse capitalismo por três vias.
“A primeira via é a da financeirização, que torna os países plataforma de valorização do capital sobreacumulado nas várias modalidades da lógica da dominância financeira. O Brasil, nesse sentido, é um exemplo bastante radical da transformação, do ponto de vista macroeconômico e do ponto de vista da própria gestão do Estado, numa plataforma de valorização de capitais sobreacumulada a nível global. E nós realizamos uma série de medidas para manter essa subordinação nossa a essa lógica financeira”, apontou. Segundo ele, vem daí a taxa de juros e de câmbio, se constituindo exatamente em função da dificuldade de encontrar uma alternativa que possa colocar o Brasil numa posição mais independente desses capitais globais sobreacumulados.
A outra via foi a da inserção de alguns países e periferias nas cadeias globais de valor. “Começa a acontecer nos anos 70, se acelera depois, e vai subordinar esses países também, produzindo tênis, roupas, eletrodomésticos, inclusive de última geração, numa cadeia completamente subordinada e controlada pelos grandes grupos econômicos, as grandes empresas monopolistas, e que se constitui num grande processo de exploração da força de trabalho global”, ressaltou. Ele explicou que alguns países asiáticos foram inseridos nessa nova divisão internacional do trabalho por esse mecanismo, ou seja, plataformas de produção comandadas por grandes empresas que controlam os circuitos superiores dessa cadeia e conseguem explorar a força de trabalho mundial.
E a terceira via foi a de tornar os países plataforma de exportação de produtos transformados em commodities, sejam do típico caso do extrativismo, como é o caso do mineral, sejam produtos com algum tipo de beneficiamento, como é o caso do agronegócio, ou produtos que têm a ver com os recursos energéticos. “Essa é uma terceira via que está mais presente no Brasil e na América Latina. Nós somos produtos, atuais na nossa dependência, da nossa inserção nessa divisão internacional do trabalho por essas vias”, sugeriu.
Mas, segundo ele, a divisão internacional do trabalho também é nova, no sentido dos mecanismos que subordinam os países a essa divisão. “Se antes podíamos entender as relações de dependência através da ideia das trocas desiguais, que permitiam uma grande transferência de excedente para os países centrais, hoje os mecanismos são de exclusão e de exploração. Não é a divisão do trabalho fundada nas trocas desiguais, embora elas continuem existindo, mas são muito mais relações que, por um lado, impedem os países periféricos de ceder às forças produtivas hoje que alavancam o capitalismo. A tecnologia é o exemplo mais contundente, uma exclusão que passa por mecanismos econômicos, mas também por mecanismos geopolíticos, como, por exemplo, impedir a China de fabricar chips de última geração, capaz de alavancar o desenvolvimento da inteligência artificial”, salientou.
Conforme Ribeiro, os Estados Unidos conseguiram que as empresas que fabricam o chip aceitassem não trabalhar, não vender, não transacionar com a China para a impedir que possa se apropriar dessa tecnologia. Ou o mecanismo do controle da força intelectual mundial que está envolvida na produção de inovação, um sistema que controla essa força e que mantém o controle dos países centrais sobre as inovações, seja através do Estado ou das grandes empresas multinacionais. Ele afirmou que, com isso, os países centrais e as grandes empresas têm uma capacidade muito maior de exploração da periferia, extraindo recursos e capital, fazendo com que a situação seja muito mais de dependência do que foi no passado.
“Então, a ideia de falar de uma nova urbanização dependente tem a ver com essa leitura de uma nova forma dessa dependência que passa por esses mecanismos. E cujo centro é agenciar o território brasileiro e o latino-americano, para que ele cumpra o papel que deve cumprir nesses circuitos que nos integram dessa forma subordinada, do logístico ao financeiro, ao agronegócio, ao mineral, e assim por diante. Nesses circuitos, eles agenciam o território nacional para que seja preparado, gerido, para que a circulação de capital, mercadoria e informação possa ser o mais eficiente possível dentro dessa lógica do neoextrativismo”, finalizou Ribeiro.

Público presente na Sessão Especial, organizada no âmbito do XXI ENANPUR. Foto: Karina Soares.
Depoimentos de importantes teóricos acadêmicos sobre o livro:
Uma obra colaborativa brilhante, que exemplifica com força o rigor teórico, a capacidade analítica, a abrangência empírica e a visão emancipatória dos estudos urbanos radicais contemporâneos no Brasil.
Neil Brenner, professor Lucy Flower de Sociologia Urbana. Universidade de Chicago
Eureka! Esse livro é de imprescindível leitura para quem quer compreender como a dominação financeira e tecnológica, a face da nova forma histórica da dependência, incide sobre a produção do espaço.
Sandra Lencioni, geógrafa, professora titular sênior da USP e professora do programa de pós-graduação da PUC-Rio
O leitor desta obra é privilegiado pelo diagnóstico excepcional sobre a atual posição temática da urbanização dependente na América Latina. Ao mesmo tempo, está atualizado sobre a especificidade com que o modo rentista-neoextrativista se manifesta na periferia do capitalismo global.
Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia – Unicamp
Testemunhamos, no século XXI, o renascimento do interesse pela teoria da dependência, particularmente em sua versão marxista. É o que podemos notar, por exemplo, quando estamos diante de uma obra como esta, que busca identificar e analisar os nexos contemporâneos entre dependência e urbanização.
Carlos Eduardo Martins, professor Associado do IRID e do PEPI (UFRJ), pesquisador do CLACSO