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O planejamento estratégico de cidades chega à América Latina, passando a ser adotado em cidades brasileiras, desde a década de 1990. Difundido por Borja e Castells a partir do sucesso de Barcelona, o modelo defendia que as políticas públicas urbanas – por meio da parceria público-privada – teriam a capacidade de resolver os problemas urbanos e tirar as cidades da crise. Passadas mais de duas décadas, qual a realidade das cidades brasileiras que buscaram se transformar em “cidades globais”? Neste artigo, Eugênio Silva mostra que no Brasil o que se vê é uma espécie de “empreendedorismo periférico” – imitação do modelo estrangeiro, sem participação popular e favorecimento da elite local.

O artigo “O Planejamento Estratégico sem plano: uma análise do empreendedorismo urbano no Brasil”, de Eugênio R. Silva, foi publicado na Revista de Geografia e Ordenamento do Território, vinculado ao Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (pgs. 279 a 306). O trabalho é mais um resultado da Rede de Pesquisa INCT Observatório das Metrópoles, núcleo Natal.

Em um contexto no qual o Brasil foi escolhido como país seda da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, o planejamento estratégico reaparece com mais importância nas cidades brasileiras. O caso mais ambicioso é o do Rio de Janeiro, que almeja se tornar a “melhor cidade para se viver em todo o hemisfério sul”. No entanto, quais atores estão envolvidos na formulação e execução desse plano estratégico? Existe espaço para a participação popular? Áreas que precisam de maior atuação do poder público estão sendo também incluídas nesse tipo de planejamento?

O Planejamento Estratégico de Cidades: características e difusão

O planejamento estratégico tem como um dos seus pilares a associação dos diversos atores urbanos através de parcerias público-privadas, pois se entendia que “a definição de um Projeto de Futuro só será eficaz se mobilizar, desde o seu momento inicial, os atores urbanos públicos e privados” (Castells & Borja, 1996, p. 158). Entretanto, as chamadas “parcerias” entre as esferas pública e privada são criticadas pelo modo como muitas vezes são conduzidas, tendo em vista que: “este novo modelo de gestão público-privada tem provocado profundas e questionáveis mudanças na atuação dos governos municipais com relação às suas prioridades na alocação de recursos e compromissos na implementação de políticas, com tendências cada vez maiores a uma mercantilização da vida urbana” (Sánchez, 1999, p. 118).

Segundo Harvey (1996, p. 53), o objetivo dessas parcerias é (apesar de não ser exclusivamente isso) “muito mais o investimento e o desenvolvimento econômico através de empreendimentos imobiliários pontuais e especulativos do que a melhoria das condições em um âmbito específico”. Corroborando com esse ponto de vista e com um olhar sobre a realidade brasileira, Marcelo Lopes de Souza (2004, p. 55) afirma que:

“Essas parcerias são estabelecidas visando à criação, execução e gestão de projetos em que, na maioria das vezes, o Estado (e, indiretamente, todos nós, pagadores de impostos) assume todos os riscos e custos, e o setor privado fica com a gestão e os benefícios (os lucros dos projetos). É como se o Estado ‘pusesse a mesa’ para os empresários particulares, sob o argumento de que os empregos que serão criados e os recursos advindos do ‘aquecimento’ da economia local justificariam isso – argumento esse que é, como muitos têm observado e mostrado, bem fraco”.

No Brasil, em meados da década de 1990, algumas cidades contrataram empresas de consultoria para realizar tais planos. O Rio de Janeiro se orgulhava de ser uma das primeiras a estar entre essas cidades a elaborarem seu plano. Embora bastante difundido, o modelo encontrou mais tarde os seus críticos, como revela o fragmento seguinte:

“Não faltam aqueles que oferecem, a preços não módicos, fórmulas capazes de conduzir qualquer cidade ao pódio restrito das cidades globais. Os clientes, muitos prefeitos latino-americanos, buscavam salvar suas municipalidades da insolvência promovida pela crise fiscal, seguindo o modelo mais vendido do continente: Planejamento Estratégico, à la Barcelona”, (Maricato, 2001, p. 57).

Esse modelo, que ia se difundindo pelo planeta, defendia que “o governo local capaz de dar resposta aos atuais desafios urbanos e de construir um projeto de cidade, assim como de liderá-lo, tem de ser um governo promotor” (Castells & Borja, 1996, p. 158). É o governo local que, para sair da crise, precisa agir como um ator privado, de modo a se promover no cenário competitivo no qual deve se enquadrar.

Nesse mesmo sentido, já foram elaboradas inúmeras críticas ao modelo de planejamento estratégico adotado por cidades (ou melhor, em cidades) brasileiras. As críticas, em geral, concentram-se nas seguintes questões: 1) o modelo foi exportado de países europeus e dos Estados Unidos, sem se levar em consideração o contexto em que seria implementado; 2) os planos estratégicos não se preocupavam em verdade com a participação da população, antes, construíam na população os anseios do que se queria fazer, valendo-se do marketing urbano; 3) apesar de uma roupagem de abrangência de toda a cidade, grande parte das obras realizadas concentrou-se em área já enobrecidas, excluindo áreas que precisavam de investimentos e cuidados maiores; 4) na prática, os planos não mudaram muito as condições sociais dos mais necessitados, sendo, contudo, mais importantes para a dinamização da economia, favorecendo sobremaneira a elite local.

Dentre as críticas feitas a esse modelo de planejamento, destaca-se a obra intitulada “A cidade do pensamento único: desmanchando consensos”, na qual Carlos Vainer, Otília Arantes e Ermínia Maricato fazem uma análise exaustiva sobre o planejamento estratégico, suas características e ferramentas. Carlos Vainer (2009) se utiliza de três analogias para explicar criticamente a leitura da cidade a partir da óptica dos defensores do planejamento estratégico de cidades: a cidade-mercadoria, a cidade-empresa e a cidade-pátria. A cidade-mercadoria remete à cidade como uma coisa, um objeto de luxo, o qual deve ser preenchido de atributos e embelezado para melhor ser vendido para aproveitamento de uma demanda solvável. De acordo com essa visão, alerta Vainer (2009, p. 83): “a cidade não é apenas uma mercadoria mas também, e sobretudo, uma mercadoria de luxo, destinada a um grupo de elite de potenciais compradores: capital internacional, visitantes e usuários solváveis”.

A cidade aparece também como uma empresa – daí o termo empresariamento ou empreendedorismo urbano usado por Harvey (1996) – que precisa agir estrategicamente coesa, para atingir os objetivos propostos. Vainer (2009) entende que a cidade-empresa causa a despolitização da cidade. O que ocorre não é apenas uma mudança gerencial, mas é a mudança no conceito de cidade, transformando-a em um sujeito econômico, cuja lógica de poder é usada para “legitimar a apropriação direta dos instrumentos de poder público por grupos empresariais privados” (p. 89).

A ideia de cidade-empresa é acompanhada ainda da cidade como pátria, haja vista que no pragmatismo empresarial não há espaço para a política. Assim, “o plano estratégico supõe, exige, depende de que a cidade esteja unificada, toda, sem brechas, em torno ao projeto” (Vainer, 2009, p. 91). Para isso, os planos consideram de suma importância as condições de percepção da crise por parte dos citadinos, isto é, a consciência ou o sentimento de crise. Esse sentimento de crise, fugaz e passageiro é, então, transformado em patriotismo de cidade, mais duradouro e útil ao sentimento de sucesso planejado.

Acesse aqui o artigo completo “O Planejamento Estratégico sem plano: uma análise do empreendedorismo urbano no Brasil”.