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A problemática urbana metropolitana e os dilemas do planejamento têm relevância crescente nessas primeiras décadas do século XXI. Apesar dos avanços sociais e dos marcos legais da política urbana, no Brasil ainda prevalece a continuidade da concentração da população, da desigualdade socioeconômica e da pobreza urbana nas periferias metropolitanas. Neste artigo da Revista Cadernos Metrópole, Benny Schvarsberg analisa a questão do desenvolvimento urbano com foco em Brasília, e a partir do binômio carroça & avião propõe a reflexão sobre as políticas de reprodução de padrões de precariedade urbana que fizeram da capital “moderna” do país, ao longo do seu percurso histórico, uma metrópole desigual.

O artigo A carroça ao lado do avião: o direito à cidade metropolitana em Brasília é um dos destaques do Dossiê Especial “Trabalho e território em tempos de crise”, presente na nova edição da Revista Cadernos Metrópole (nº 38).

Abstract

The theory of combined and uneven development helps to understand the metropolization process of Brasília. This nexus, in addition to the socioeconomic dimensions that are part of that theory, has an urban dimension: an urban design guided by the ideas of the modern movement was inscribed, in the form of an airplane, as the originating matrix of the territory that became a metropolis. Derivations of the peripheral metropolization have not accompanied it and have made a paradoxical counterpoint: they emerge much later and, the more recent they are, the more old-fashioned and archaic they are configured, seeming to belong to periods before the modern urbanism of the 20th century, co- existing in a functional manner in the metropolitan territory. In the article, we use the binomial Wagon & Airplane to reflect on policies that reproduce urban precariousness patterns, expressed in the first term; they are part of the same process that ensures privileges to well-equipped areas of the metropolis, which are expressed in the second term.

INTRODUÇÃO

Por Benny Schvarsberg

A problemática urbana metropolitana e os dilemas do planejamento e gestão integrada de regiões e áreas metropolitanas têm renovada atualidade e relevância crescente nessas primeiras décadas do século XXI. Não obstante os avanços sociais e nos marcos legais da política urbana, no Brasil os dados do último censo nacional de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontaram a continuidade da concentração da população, da desigualdade socioeconômica e da pobreza urbana nas periferias metropolitanas.

Essa questão se acentua e ganha contornos peculiares para a pesquisa urbana e regional quando focamos o caso de Brasília em um processo de crescimento que aprofunda a problemática do modelo de ocupação territorial de sua área metropolitana. Assinala-se a necessidade de considerar os obstáculos e constrangimentos à implementação de políticas públicas de planejamento e gestão territorial que logrem enfrentar, de forma integrada, as dificuldades conformadas ao longo de mais de meio século de constituição de uma complexa área metropolitana junto à nova capital.

O desafio das abissais desigualdades entre Brasília e as cidades que compõem a sua área metropolitana demanda, aos pesquisadores, aos gestores públicos em diferentes níveis e aos diversos atores e segmentos sociais, a compreensão das lógicas enredadas nesse processo. E, no campo do reconhecimento de direitos que ofereçam conteúdos para novas políticas públicas, impõe-se a experimentação de novos instrumentos e conceitos que ponham em marcha os avanços legalmente estabelecidos tanto no Estatuto da Cidade, em 2001, como, sobretudo, mais recentemente no Estatuto da Metrópole, em 2015.

Por um lado, a reflexão proposta encontra estímulo num exercício de apropriação da lei do desenvolvimento desigual e combinado, designando a mistura de desenvolvimento e subdesenvolvimento em muitos países, especialmente nos periféricos, nos quais um setor moderno pode conviver – temporal e espacialmente, diríamos nós – com o mais atrasado; mesmo este funcionando como freio daquele, podem conviver de maneira combinada, resultando numa formação social particular, porém única.

De filiação teórica tributária do pensamento do russo León Trotsky, nos últimos tempos visto como démodé e até com certo preconceito em face de históricos embates teóricos e ideológicos na tradição marxista, tal formulação, bem como desenvolvimentos teóricos que dela se apropriam, aplicando-a à realidade brasileira, como Fernandes (1955) e Oliveira (2003), oferece elementos analíticos promissores para a análise do processo de urbanização e metropolização de Brasília. Por outro lado, procura-se dialogar com a matriz teórica desenvolvida por Henri Lefebvre no conceito de Direito à Cidade em uma perspectiva ampliada voltada ao debate da questão metropolitana.

Em suma, oferecer uma contribuição ao debate da política e do planejamento regional e metropolitano, a partir da caracterização da metropolização desigual e combinada de Brasília, e apontar proposições na perspectiva do direito à cidade metropolitana constituem a motivação fundamental das reflexões sugeridas neste artigo.

Metropolização desigual e combinada de Brasília

A lei do desenvolvimento combinado e desigual é uma referência teórica que compreende a ocorrência temporalmente simultânea de aspectos avançados e atrasados no processo de desenvolvimento econômico dos países. Ela aponta para uma forte mistura de atraso e modernidade, convivendo lado a lado, portanto espacialmente e no mesmo período; espaço e período nos quais um setor moderno pode conviver com o mais atrasado, embora este opere como limitante daquele, mas que, em conjunto, influenciem-se mutuamente, modificando-se e até formando um todo único, novo e próprio. Ela se revela especialmente nos países periféricos do sistema mundial, nos quais um setor extremamente moderno da economia pode existir de forma combinada com o mais atrasado, resultando numa formação social sem grandes contradições entre as classes dominantes. É uma das tentativas mais significativas de romper com o evolucionismo, a ideologia do progresso linear e o chamado eurocentrismo (Löwy, 1995).

Permitindo-nos um livre exercício de apropriação daquela referência teórica, proporemos que em uma mesma metrópole, um urbanismo moderno, que aqui chamaremos de Avião em alegoria à forma do plano piloto de Brasília, pode existir de forma combinada com urbanizações periféricas precárias e de padrões mais atrasados – cidades goianas do chamado “entorno” brasiliense, que aqui chamaremos também alegoricamente de Carroça, em contraponto tecnológico com o Avião. Carroça e avião convivem lado a lado em uma continuidade física, embora descosturada, no tecido desigual do mesmo território.

Não obstante as enormes desigualdades, em ambos estão igualmente presentes algumas das grandes empresas atacadistas ou varejistas, implantando-se tanto no plano piloto e suas áreas adjacentes como na periferia metropolitana. Além do compartilhamento físico e temporal, tais empresas constituem um traço de simultaneidade e copresença que encontramos no território metropolitano, atendendo às populações de áreas nobres e pobres tanto do avião como da carroça ao lado, lucrando com ambas. Do ponto de vista do sentimento de pertencimento ao território, as populações da carroça se conectam cotidianamente bem mais com Brasília do que com Goiás: o território da Brasília metropolitana constitui nessa análise o seu território usado.

Tais populações possuem um sentimento difuso de pertencimento, a nosso ver subalterno ou subordinado ao avião. Usando uma imagem alegórica, mais como “fuselagem”, ou seja, ajudam a dar forma ao corpo do avião; elas não moram no avião, e seus registros documentais são goianos, mas cultivam o sentimento de pertencimento e de identidade territorial “brasiliense”. Já a recíproca não é verdadeira: as populações do avião querem desconhecer as da carroça – no seu imaginário, são gente embrutecida e violenta – como seus vizinhos, a não ser como mão de obra para serviços domésticos, de segurança, limpeza e manutenção. As empresas privadas compradoras e vendedoras, especialmente para os órgãos públicos, dessa mão de obra farta e barata – um verdadeiro exército de serviços de reserva – são provavelmente os seus principais interlocutores para o acesso cotidiano ao avião.

Simbolicamente e ao mesmo tempo lastreado em dados estatísticos, pode-se afirmar que quem comanda a economia metropolitana é o avião, fundamentalmente porque nele es- tão fortemente concentrados os empregos e o PIB. Ele atrai e “puxa” a carroça que é sua dependente, uma vez que boa parte da população da periferia metropolitana viaja diariamente de modo pendular em razão de trabalho e serviços, especialmente médicos hospitalares, no avião. Assim, a absoluta maioria dos brasilienses não reside no avião (mais de 90% da população do Distrito Federal mora fora do plano piloto), mas dele muitos, talvez a maioria, dependem direta ou indiretamente.

Entretanto, avião não prescinde da carroça para se movimentar, tal como nos aeroportos, mesmo os grandes aviões precisam da ajuda imprescindível de pequenas carretas para reposicioná-los, pois aviões não dão marcha à ré. Portanto, apesar de profundamente desiguais – e até dessemelhantes dado o fosso de condições de vida que parece condená-los a serem seres de espécies distintas – e de pertencerem aparentemente a diferentes épocas (moderna e remota), não é à toa que avião e carroça estão lado a lado no mesmo território e na mesma época; são inter-dependentes e não estão simplesmente um ao lado do outro, numa espécie de coexistência congelada, mas se articulam, se combinam e se amalgamam, configurando um todo, espacialmente contínuo e profundamente heterogêneo: o território metropolitano.

Estamos cientes de que o termo carroça, mais ainda em associação com o termo avião, carrega consigo uma carga de contraponto pejorativo, tal como carregam os termos subúrbio (no Brasil), periferia e entorno. É corrente na literatura crítica que esses termos remetam a noções de segregação e exclusão socioeconômica, política e cultural de populações urbanas. De fato, compreendemos que a dinâmica urbana e metropolitana construída historicamente em Brasília nas últimas cinco décadas soergueu uma urbanização sem urbanidade.

Poderíamos até denominar “arrabaldes” aquelas áreas pobres do território; termo usado até a primeira metade do século XX para designar as áreas mais distantes dos centros urbanos que se urbanizavam paulatinamente. Não seria, contudo, a designação que alteraria a perversidade social das realidades urbanas destituídas de direitos que constituem aquelas parcelas do território e sua população; quando muito serviria para mascará-la ou até ironizá-la, como ocorre, a nosso juízo, quando se nomeia, como Águas Lindas, um município que mal tem águas, e as que têm estão ambientalmente comprometidas e muito distantes de serem lindas.

Acesse o artigo completo do professor Benny Schvarsberg no site da Revista Cadernos Metrópole.

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Brasília: transformações na ordem urbana

Última modificação em 17-04-2017 21:17:06