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O termo “gentrificação” tornou-se uma categoria central para se pensar as transformações vivenciadas nas cidades contemporâneas. Neste artigo Álvaro Luís dos Santos Pereira busca trazer aportes que favoreçam a delimitação dos contornos desse conceito, sobretudo a partir da combinação de argumentos dos modelos teóricos centrados na oferta com hipóteses dos modelos centrados na demanda.

O artigo “A gentrificação e a hipótese do diferencial de renda: limites explicativos e diálogos possíveis”, de Álvaro Luís dos Santos Pereira,  é um dos destaques do Dossiê “Desenvolvimento desigual e Gentrificação na cidade contemporânea”, da Revista Cadernos Metrópole nº 32.

Mark Ramsay, Londres, Wikimedia Commons.

Abstract

This article addresses the debate on gentrification based on the combinat ion of arguments originated from supply-side theoretical models and hypotheses derived from demand-side models. It presents explanator y limits of interpretations based on the notion of rent gap, and discusses problematic aspects, such as: the lack of definition of the factors that constitute what the authors who approach gentrification from this perspective call potential land rent, and the spatial indetermination of the field of incidence of gentrification. The articulation between the rent gap argument and the thesis of the commoditization of symbolic features is suggested as a means of achieving a broader understanding of the causes and the territorial dynamics of the gentrification process.

Keywords: gentrification; urban space production; rent gap; aestheticization; valorization.

Introdução

Por Álvaro Luís dos Santos Pereira

O termo “gentrificação” tornou-se uma categoria central para se pensar as transformações vivenciadas nas cidades contemporâneas. Presente em textos acadêmicos, discursos de ativistas e movimentos sociais, e até mesmo em materiais publicitários de agentes do mercado, pode-se dizer que a consciência acerca da difusão do processo representado por essa expressão tornou-se um fenômeno generalizado. A despeito dos diferentes entendimentos quanto às forças motrizes, à dinâmica e ao sentido das transformações urbanas que vêm sendo chamadas de “gentrificação”, a expressiva difusão do uso desse termo evidencia por si só uma convergência na percepção de um fenômeno que vem assumindo características semelhantes em diferentes contextos geográficos.

Esse termo foi empregado pela primeira vez num conhecido estudo da socióloga britânica Ruth Glass (1964), que cunhou tal expressão para caracterizar o início de uma onda de invasão dos mews da área central de Londres, tradicionalmente ocupados por classes trabalhadoras, por novos moradores de classe média e alta. A expressão deriva do substantivo inglês gentry, que designa indivíduos ou grupos “bem nascidos”, de “origem nobre”. Assim, foi concebida originalmente para fazer referência a um processo de elitização ou de “enobrecimento” de determinados lugares da cidade, anteriormente caracterizados como áreas predominantemente populares.

Nos anos 1980, o debate sobre a gentrificação tornou-se um assunto de grande repercussão no meio acadêmico, especialmente nos países de língua inglesa. Diante da expressiva proliferação de experiências com características semelhantes ao processo identificado por Glass, o debate acerca da gentrificação deixou de ser um tema restrito ao meio acadêmico no contexto atual, tornando-se uma questão razoavelmente conhecida e discutida mesmo entre não especialistas.

Pensar sobre a atualidade desse conceito e sua possível contribuição para compreender e explicar a produção do espaço urbano nos dias de hoje traz alguns desafios. O primeiro deles é delimitar o que se entende por gentrificação, termo que chegou a ser qualificado como um “conceito caótico” em virtude da pluralidade de sentidos com que veio a ser empregado (Zukin, 1987, p. 132). O uso indiscriminado desse termo para fazer referência a qualquer experiência de transformação do espaço urbano de caráter socialmente excludente – embora possa fazer sentido como estratégia argumentativa – acaba por ofuscar suas especificidades, provocando seu esvaziamento como categoria de análise.

A banalização de seu emprego em discursos críticos sobre as transformações observadas na cidade contemporânea dificulta a formulação de hipóteses acerca da dimensão e do papel dos processos de gentrificação e de suas conexões com tendências mais abrangentes que afetam o modo de produção capitalista em sua fase atual.

No intuito de contribuir para o aprofundamento das reflexões teóricas sobre a gentrificação, este artigo buscará trazer aportes que favoreçam a delimitação dos contornos desse conceito. Partiremos de sua acepção mais específica, em que o termo é empregado como sinônimo de um processo que tem como traços fundamentais a retomada de investimentos em centros urbanos que passaram por períodos prolongados de decadência e a alteração do perfil socioeconômico desses lugares. Em seguida, buscaremos evidenciar algumas dificuldades metodológicas provocadas pela extrapolação desse sentido mais restrito do conceito.

Após uma discussão inicial a respeito da dimensão territorial dos processos de gentrificação, o artigo passará a tratar do debate sobre suas forças motrizes. Tal reflexão será feita buscando-se identificar os argumentos centrais apresentados em algumas das principais abordagens teóricas referentes ao tema, expondo-se os pontos de divergência e eventuais pontos de contato entre elas. Mais do que simplesmente mapear o debate, descrevendo e classificando diferentes correntes de pensamento, o intuito é apontar os limites dos modelos explicativos existentes e identificar possíveis pontos de complementaridade entre argumentos aparentemente contrapostos.

Argumentaremos que os modelos explicativos centrados em fatores como a mudança de padrões culturais e a escolha do consumidor, inspiradas sobretudo nos trabalhos de DavidLey, podem ser articulados com explicações elaboradas a partir da hipótese do diferencial de renda (rent gap), baseadas principalmente nas formulações teóricas de Neil Smith.

Nessa tentativa de aproximação entre as perspectivas teóricas centradas na oferta e aquelas centradas na demanda, apontaremos a atribuição de conteúdo econômico a elementos simbólicos presentes em determinados fragmentos urbanos como fundamento da ativação de rendas potenciais latentes. Argumentaremos que os centros históricos apresentam possibilidades de valorização diferenciadas em virtude de fatores que transcendem as oportunidades de reinvestimento decorrentes dos ciclos de realizações depreciação dos capitais incorporados ao espaço urbano.

Explorando as conexões entre os “argumentos locais” e os “argumentos globais” de Neil Smith (1996) com apoio em algumas formulações de David Harvey (1989), presentaremos uma leitura da gentrificação como fenômeno que sintetiza diversos aspectos de um regime de acumulação centrado na racionalidade financeira, fundamentando-se em processos espoliativos, no encurtamento do tempo de giro do capital e na focalização territorial das intervenções urbanas. A construção desse raciocínio se valerá dos apontamentos feitos anteriormente quanto à dimensão territorial e às forças propulsoras dos processos de gentrificação, buscando relacionar o que se entende como momentos articulados de transformações que perpassam várias escalas geográficas.

Acesse o artigo completo “A gentrificação e a hipótese do diferencial de renda: limites explicativos e diálogos possíveis” na Revista Cadernos Metrópole nº 32.