Giovanna Tramujas*
No dia 17 de setembro, ocorreu a palestra Habitação em crise: desafios contemporâneos no acesso à moradia na Europa, realizada presencialmente no Auditório Leo Grossman, no Campus Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A palestra foi organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano (PPU) da UFPR, que integra o Núcleo Curitiba do INCT Observatório das Metrópoles, e teve como palestrante Gonçalo Antunes, geógrafo português doutor e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e coordenador executivo do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da UNL.
Na abertura, participaram Ricardo Dias, coordenador do programa associado de pós-graduação em planejamento urbano das Universidades Estaduais de Londrina (UEL) e Maringá (UEM), e Letícia Gadens, coordenadora do PPU UFPR. A palestra teve como objetivo apresentar as pesquisas desenvolvidas por Gonçalo Antunes, atualmente professor convidado na UEM-UEL, além de fortalecer a aproximação entre os programas de pós-graduação envolvidos.
- Imagem 1: Momento de abertura da palestra. Crédito: Giovanna Tramujas.
- Imagem 1: Momento de abertura da palestra. Crédito: Giovanna Tramujas.
A palestra prosseguiu com a exposição de Gonçalo Antunes, que apresentou os resultados de um projeto científico desenvolvido ao longo de 2 anos, voltado à análise dos impactos da pandemia de COVID-19 sobre o mercado habitacional português. O pesquisador destacou que, desde o início do século XXI, os preços da habitação em Portugal vêm apresentando oscilações, mas com uma tendência geral de alta, tanto nas vendas quanto nos aluguéis. O professor mostrou, por meio de séries históricas, como esse comportamento se manifestou em Portugal e em outros países europeus. Entre os marcos abordados, destacou-se o “frenesi construtivo” dos anos 1980, seguido pela crise financeira que, de forma abrupta, retirou das famílias a capacidade de adquirir imóveis. A partir de 2016, os valores voltaram a alcançar patamares similares aos de 2009 e, desde então, passaram a subir de forma contínua, resultando na duplicação do preço das habitações em poucos anos. Enquanto isso, a renda da população não acompanhou esse movimento, acentuando o descompasso entre valorização imobiliária e o poder aquisitivo das famílias.
Diante desse cenário, Antunes buscou responder às questões de como se chegou a essa situação e quais fatores explicam a escalada dos preços. Segundo o professor, esses elementos em Portugal podem ser agrupados em fatores internos e externos: entre os internos, destacou a liberalização da economia em função das exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) nas políticas habitacionais nacionais, a expansão do turismo no país e do alojamento temporário por plataformas como o Airbnb, além das dinâmicas migratórias, como a dos nômades digitais; já entre os externos, ressaltou o interesse internacional no mercado imobiliário português, as políticas monetárias do Banco Central Europeu e os efeitos da inflação.
Antunes detalhou cada um dos fatores mencionados, resgatando inicialmente o contexto histórico das políticas habitacionais em Portugal. Na década de 1980, em meio ao Estado de bem-estar social, vigoravam políticas redistributivas e, até a década de 1970, havia forte investimento na construção de habitação pública, além de apoios voltados à bonificação de créditos habitacionais, priorizando a aquisição da casa própria em detrimento de outras formas de política. Nesse período, a área metropolitana de Lisboa, marcada pela presença de bairros precários — conhecidos como bairros de barracas ou de lata — passou por processos de demolição e substituição por conjuntos de habitação pública. No entanto, nas últimas décadas, a inflexão em direção a políticas neoliberais resultou no enfraquecimento da atuação estatal no setor, revelando-se incapaz de sustentar uma política habitacional sólida e de longo prazo.
No cenário contemporâneo, um dos pontos centrais é a expansão do turismo e do alojamento temporário, que entre 2010 e 2020 levou à criação de 20 mil anúncios de Airbnb apenas em Lisboa, correspondendo a 14% de toda plataforma no país, retirando grande parte desses imóveis do mercado de habitação. Ao mesmo tempo, investidores internacionais adquiriram propriedades em áreas centrais, convertendo edifícios inteiros em ativos financeiros por meio de fundos imobiliários. Embora exista um superávit habitacional estimado em 2 milhões de moradias, cerca de 12% permanecem vagas, e a valorização recai sobre os imóveis efetivamente disponíveis, gerando debates sobre o “direito de manter casas vazias” frente à necessidade de intervir na propriedade privada. Esse processo, associado à turistificação das cidades, transformou a habitação em uma questão fulcral no debate político contemporâneo, que já não atinge apenas populações de baixa renda, mas também a classe média. Hoje, imigrantes, especialmente africanos, enfrentam novamente o crescimento dos bairros precários, enquanto jovens de famílias de classe média permanecem até os 29 anos vivendo na casa dos pais diante da dificuldade de acesso à moradia.
- Imagem 2: Apresentação realizada pelo professor Gonçalo Antunes. Crédito: Giovanna Tramujas.
- Imagem 2: Apresentação realizada pelo professor Gonçalo Antunes. Crédito: Giovanna Tramujas.
Após a apresentação, abriu-se um espaço para perguntas, no qual três questões foram levantadas. A primeira indagava sobre a identificação dos agentes do mercado responsáveis pelos processos especulativos e pela expansão do Airbnb. Antunes explicou que há grande dificuldade em rastrear esses grupos, sobretudo devido à financeirização, que envolve investidores internacionais adquirindo imóveis como ativos financeiros, muitas vezes de forma dispersa e pouco transparente. A segunda questão abordou a relação entre racismo, ondas anti-imigrantes e precariedade habitacional em Portugal. O professor destacou que os imigrantes não são os causadores, mas sim os principais atingidos por esse processo, ressaltando ainda a rigidez da estrutura fundiária portuguesa, com avanços muito limitados na comparação com o Brasil. Por fim, foi feita uma pergunta sobre processos de despejo recentes. Antunes relatou um caso em terras públicas marcado por extrema violência e reiterou a dificuldade de questionar o princípio da propriedade da terra, apontando que até partidos progressistas tendem a naturalizar os despejos como solução, ainda que isso signifique agravar a vulnerabilidade de muitas famílias.
*Giovanna Tramujas é arquiteta e urbanista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano (PPU/UFPR) e pesquisadora do Núcleo Curitiba do INCT Observatório das Metrópoles.