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Fernanda Amim Sampaio Machado¹
Juciano Martins Rodrigues²
Anna Cecília Faro Bonan³
Maria Júlia Moraes Pinto Nunes⁴

Quando em 2020 o Carnaval começou, a China já tinha atingido a marca de cerca de 80 mil infectados pelo novo coronavírus. No Brasil – e nos demais países do continente americano – pouco se falava do vírus que já rompia há dias as fronteiras asiáticas. Embora o Ministério da Saúde tenha monitorado casos suspeitos de infecção pelo vírus desde o início de fevereiro, o primeiro caso oficialmente confirmado ocorreu apenas na Quarta-feira de Cinzas. Contudo, a ficha das autoridades e da  população só caiu quando, em 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que o mundo estava enfrentando uma nova pandemia, forçando as pessoas a se ajustarem às novas rotinas de trabalho e da vida social e doméstica.

Nesse momento, os alertas a respeito dos impactos negativos sobre a economia já estavam ligados, considerando que o consenso da comunidade científica já apontava o distanciamento social como a única solução diante da falta de vacina ou tratamento eficiente. Com a imposição desse obstáculo ao processo produtivo e o esvaziamento dos espaços públicos, a crise econômica foi anunciada pelas autoridades e setores privados em tons apocalípticos.

Ao mesmo tempo, autoridades e parte da opinião pública se recusaram a escutar os avisos das organizações internacionais e preferiram seguir com ações baseadas em orientações confusas, informações conflitantes e fiscalização praticamente fictícia do cumprimento das medidas adotadas.

Obviamente, nem todas as pessoas, principalmente aquelas moradoras das grandes cidades, encontraram as mesmas condições de proteção e distanciamento. Uma parte da população teve que enfrentar aglomerações porque continuou trabalhando, outra encontrou dificuldade para adoção de medidas sanitárias de precaução, como o simples ato de lavar as mãos, em razão do quadro de desigualdade no abastecimento de água e da precariedade geral do saneamento básico em muitos territórios, especialmente nas favelas e periferias.

Uma narrativa centrada em um falso dilema entre priorizar a economia ou a saúde, foi utilizada para desqualificar a ciência e classificar como alarmistas, exageradas e distantes da realidade as vozes que chamavam a atenção para a gravidade da pandemia. Pouco a pouco, o país foi perdendo o que teria sido a nossa grande vantagem para a contenção da crise sanitária: usar o SUS para se antecipar aos graves efeitos de uma pandemia dessa dimensão. O governo não só perdeu a oportunidade de agir a tempo, como seguiu caminhos contrários. Da sabotagem do uso de máscaras à desacreditação das vacinas, passando pela ausência de planejamento e da resistência na implementação das políticas econômicas e sociais necessárias, nosso governo trilhou um caminho que levou a marca de mais de 240 mil mortes, com 46% concentradas na região sudeste, em especial nas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro⁵.

Em 2021, o feriado de Carnaval chegou no auge da chamada segunda onda. Com quase 18 mil óbitos e 195 mil infectados, a cidade do Rio de Janeiro passou a ocupar o primeiro lugar no ranking de mortes por 100 mil habitantes por COVID-19 no país. Nesse momento, todas as regiões administrativas do município se encontram classificadas com risco alto de contaminação⁶. Acertadamente, a prefeitura, os blocos de rua⁷ e as escolas de samba, cancelaram todas as festividades relacionadas ao Carnaval, não obstante algumas vozes dissonantes. Sem dúvidas, todos queríamos botar nosso bloco na rua, mas a consciência coletiva, responsavelmente, pautou a prioridade da preservação de vidas e da tentativa de controle e diminuição do número de contágios que poderiam ocorrer em decorrência dos encontros e aglomerações.

Com o cancelamento do Carnaval, a preocupação, além da emergência sanitária, passou a ser também com os seus desdobramentos para a cidade, para as pessoas que a habitam (sejam brincantes ou não do Carnaval), e para os agentes que constroem a festa Carnavalesca, tão cara à economia, à imagem turística e às cenas artística e cultural da cidade. Importante destacar que além de seu evidente impacto sobre os setores do turismo, o Carnaval dinamiza um conjunto variado de atividades econômicas inseridas em uma cadeia produtiva que vai, por exemplo, da fabricação e distribuição de bebidas, passa pela confecção e comércio de fantasias e adereços, pelo comércio de rua, pelos inúmeros ensaios e oficinas dos blocos, pelo processo de criação e montagem dos palcos e trios, pelos bares e restaurantes, até chegar na ponta dessa cadeia, onde estão as pessoas que fazem o Carnaval acontecer, que trabalham e contam com a festa para o seu sustento.

Como compreender a falta que o Carnaval faz para a cidade, considerando as suas múltiplas dimensões?

Essa pergunta nos parece central para pensar não apenas na importância do Carnaval, mas também nas soluções apresentadas pelo poder público, em especial pela Prefeitura do Rio de Janeiro, para suprir a ausência da maior festa popular do mundo. O “socorro”, os auxílios, os incentivos e afins propostos pelo poder público incorporam os múltiplos e diversos agentes que constroem a festa, considerando seu conjunto heterogêneo de necessidades? Ou as soluções apresentadas têm alcance limitado, deixando à margem grande parte das pessoas que trabalham com o Carnaval e dele tiram grande parte da renda anual para sua subsistência e que muitas vezes estão invisibilizadas pela natureza glamurosa da festa?

Um bom ponto de partida, para se refletir sobre essas questões, é buscar compreender a importância da maior festa popular para as pessoas, para os trabalhadores do Carnaval, e para a cidade do Rio de Janeiro. Para compreender melhor esse quadro, nada mais adequado do que olhar para a realidade, para os carnavais que passaram, mesmo com a insuficiência de informações e com as dificuldades que se tem para obter e gerar dados sobre uma festa tão diversa, fluída e de enormes proporções.

Nesse sentido, a necessidade de se ter um debate qualificado e embasado sobre a importância do Carnaval para o Rio de Janeiro, aliada à insuficiência de informações sistemáticas sobre a festa, motivou a realização de um levantamento de dados inéditos, organizado em 2020 pelo Cordão do Boitatá, com o apoio do projeto MUDA Outras Economias. A pesquisa foi realizada durante o Baile Multicultural ocorrido no dia 24 de fevereiro do ano passado na Praça XV, quando foram aplicados em torno de 1500 questionários entre o público presente e os camelôs, cujas perguntas, de natureza qualitativa e quantitativa, tiveram como objetivo fornecer dados de ordem econômica, territorial e social do Carnaval de rua do Rio de Janeiro.

Desfile do Cordão do Boitatá (2020). Foto: Micael Hocherman

Mesmo reconhecendo que se trata de informações de apenas um bloco e que há diferenças entre os milhares de blocos que tomam conta das ruas do Rio, antes, durante e depois do período carnavalesco, a pesquisa oferece pistas importantes sobre o perfil do público, aspectos de sua relação afetiva com o Carnaval e informações sobre os gastos com comida e bebida. Sobre os camelôs, foi possível saber de onde vêm, suas dificuldades e estratégias para estarem ali e suas expectativas de faturamento. São dados fundamentais para entender a importância do Carnaval para a cidade do Rio de Janeiro e para sua população e, além disso, para acrescentar elementos para o planejamento e a execução de políticas públicas voltadas para essa atividade fundamental para a economia e a cultura local.

O Cordão do Boitatá leva em torno de 80 mil pessoas⁸ ao seu baile carnavalesco, realizado no domingo de Carnaval, na Praça XV, Centro do Rio de Janeiro. Para um evento dessa proporção, é necessário mobilizar uma ampla rede de trabalhadores diretos e indiretos, que englobam desde o técnico de som do estúdio onde ocorrem os ensaios, passando pelos seguranças patrimoniais, até chegar nos músicos responsáveis pela realização do show. Além disso, é preciso ainda contratar infraestrutura de palco e som de qualidade que atenda às necessidades do bloco, bem como as expectativas musicais dos inúmeros convidados.

No ano passado, o Cordão do Boitatá mobilizou cerca de R$127 mil reais para a realização tanto do Baile Multicultural na Praça XV, quanto do desfile da sua orquestra de rua no domingo anterior. Destaca-se que apesar da importância deste bloco para a cultura, memória e economia da cidade, essa quantia foi levantada exclusivamente por meio de um financiamento coletivo, sem qualquer participação do Poder Público ou de patrocínio da iniciativa privada.

Os dados da pesquisa mostram, em primeiro lugar, a importância do Carnaval na vida das pessoas. Perguntadas sobre porque escolheram o bloco, grande parte delas responderam que foi pela possibilidade de encontrar os amigos. Outra boa parte, estava ali pela música ou, como muitas declararam, porque simplesmente amam o Carnaval.  Além de pessoas de todas as regiões do Rio de Janeiro, o baile atrai turistas vindos de vários estados do Brasil e do exterior, que representam 15% do público. Essas pessoas se hospedam, em média, por sete dias na cidade, seja na casa de parentes ou amigos sem custo (68,6%), em hotéis e formas de hospedagem como Airbnb (24,8%) ou ainda em acomodações com aluguel direto com o proprietário ou administrador (4,4%). Entre aquelas que optam por estadia paga, o gasto médio com hospedagem é de R$ 1.156,00 por pessoa, durante o período de Carnaval.

Em média, as pessoas permanecem na Praça XV acompanhando a apresentação do bloco por quatro horas e meia. Muita gente, inclusive, chega quando os músicos estão passando o som, por volta das oito da manhã, e só vão embora quando a última música acaba, em torno de cinco horas da tarde. Nesse tempo que passam curtindo a festa, o consumo com bebida e comida é de R$ 65,70 por pessoa. Além disso, os resultados da pesquisa mostram que 1/4 do público gasta mais de R$ 100,00 para consumir apenas naquele bloco, sem considerar o gasto com transporte, fantasia ou o consumo em outros blocos durante o Carnaval.

Utilizando essa média como parâmetro, um bloco com 80 mil pessoas pode movimentar, apenas com o consumo de bebidas e comidas durante a apresentação, cerca de 5,4 milhões de reais. Imaginando cinco apresentações de blocos desse porte, o valor pode chegar a 22,5 milhões de reais. Se imaginarmos ainda a quantidade de blocos que acontecem de forma pulverizada diariamente na cidade, chegaremos a uma cifra milionária, ou até mesmo bilionária, que justifica por si só a importância do Carnaval para a economia do município.

Importante destacar que além dos valores apresentados, os dados comprovam que grande parte desse consumo é direcionado aos camelôs que trabalham durante o baile. Perguntados se pretendiam consumir dos camelôs, 80% do público respondeu positivamente. Ou seja, durante o baile do Cordão do Boitatá cerca de 4 milhões e 320 mil reais podem ter sido destinados do bolso do público para o bolso dos camelôs.

Elaborado pelos autores.

Assim como no caso dos profissionais e músicos que trabalham diretamente na produção e realização do baile, observar, também, as condições de trabalho dos camelôs é fundamental para entender o funcionamento do Carnaval. São trabalhadores essenciais para a festa que traz reconhecidos benefícios para a cidade, embora sejam muitas vezes invisibilizados e até mesmo reprimidos pelas autoridades públicas.

O perfil desses trabalhadores mostra que as mulheres são sensivelmente maioria, 52%, contra 48% dos homens, 75% têm entre 20 e 49 anos, e 82% trabalham em grupo – em parceria ou com o auxílio de outras pessoas. Em média, para cada um dos camelôs entrevistados na pesquisa há pelo menos mais uma pessoa trabalhando. Além disso, é importante frisar que em muitos casos o trabalho é feito em família. Entre os entrevistados, 59% afirmaram existir algum grau de parentesco entre as pessoas do grupo, ressaltando a importância da atividade para uma espécie de economia familiar.

A importância dos eventos carnavalescos para os camelôs se revela também em suas expectativas de faturamento. Boa parte deles afirmaram ter uma expectativa de 100% de lucro durante o bloco. A alta rentabilidade do Carnaval resulta em um imenso atrativo para exercer a atividade no período, de modo que a data incide em um grande aumento no número de trabalhadores ambulantes – com ou sem autorização para o comércio nas ruas.

Ainda sobre as condições de trabalho dessas trabalhadoras e trabalhadores, chama a atenção a quantidade de pessoas que dormem na rua, assumindo inúmeros riscos para conseguir trabalhar no Carnaval, o que reforça o discurso da centralidade da festa para a atividade dos camelôs da cidade do Rio de Janeiro. Isso porque, com custos elevados de transporte e o risco de apreensão da mercadoria, os camelôs acabam tendo que se colocar em situação de rua, no período talvez mais insalubre da cidade. De todos entrevistados, 14% não guardam a mercadoria, comprando provavelmente no mesmo dia e 13% guardam na rua, provavelmente no lugar onde passam a noite. No final das contas apenas 21% contam com depósito. Ressalta-se que essa questão está diretamente relacionada com a demanda destes trabalhadores por um depósito público ou coletivo (autogestionado) para guardar as suas mercadorias, visto que a grande maioria compra suas mercadorias diretamente no mercado (48%) ou distribuidora de bebidas (33%) e somente 15% são atendidos diretamente pelo patrocinador, que conta com infraestrutura logística ou de armazenamento. Essa situação é digna de preocupação porque, embora 59% dos trabalhadores sejam do município do Rio de Janeiro, os demais vêm de outros municípios, principalmente da região metropolitana, entre eles São Gonçalo (10%), Duque de Caxias (8%), Niterói (7%) e Nova Iguaçu (5%), ressaltando a importância do Carnaval carioca não só para a cidade, mas para a região metropolitana como um todo.

Nesse momento em que todos sentem diretamente a falta que o Carnaval faz, a discussão sobre sua importância para a economia e a cultura reforça também sua relevância como objeto legítimo das políticas públicas, ainda mais em uma cidade em permanente crise social e econômica, mas cada vez mais elitizada e com custo de vida crescente, em um contexto de planejamento urbano excludente e elitista. Assim, incorporar as necessidades de quem faz a festa é um passo fundamental para pensar e planejar os muitos carnavais que virão!

Por fim, vale frisar que, além dos resultados preliminares utilizados neste texto, a combinação da análise dos dados da pesquisa de campo e de entrevistas junto a outros agentes do Carnaval resultará, em breve, em relatório elaborado a partir da parceria entre o Cordão do Boitatá, o Observatório das Metrópoles e o Movimento Unido dos Camelôs (MUCA), com o apoio do projeto MUDA Outras Economias.

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¹ Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), mestra em Direito pelo PPGD/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro e do Observatório da Justiça Brasileira (FND/UFRJ).

² Doutor em Urbanismo pela UFRJ, pesquisador colaborador no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Pesquisador e membro do Comitê Gestor do Observatório das Metrópoles.

³ Doutoranda em Direito Constitucional e Teorias do Estado pelo PPGD/PUC-Rio, bolsista Doutorado Nota 10 da FAPERJ e advogada popular.

⁴ Doutoranda em Design, Comunicação, Cultura e Artes pelo PPGDesign/PUC-Rio, Bolsista Doutorado do CNPq.

⁵ De acordo com os dados publicados no site G1: http://especiais.g1.globo.com/bemestar/coronavirus/estados-brasil-mortes-casos-media-movel/

⁶ Segundo dados do Painel Covid da Prefeitura Cidade do Rio de Janeiro: https://experience.arcgis.com/experience/38efc69787a346959c931568bd9e2cc4

⁷ No dia 24 de janeiro, os blocos, as ligas, fanfarras e demais movimentos do Carnaval de rua divulgaram um manifesto intitulado “Carnaval em casa”, defendendo a não realização dos desfiles no ano de 2021 e conclamando aos foliões a permanecerem em casa durante o Carnaval.

⁸ De acordo com os dados oficiais informados pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

MACHADO, Fernanda Amim Sampaio Machado. Ei você ai, me dá um dinheiro aí? Conflitos, disputas e resistências na cidade do Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

CORDÃO DA BOLA PRETA. Manifesto Carnaval 2021 é em casa. Disponível em: <http://www.cordaodabolapreta.com/manifesto-carnaval-2021-e-em-casa/>. Acesso em 02 de fev. de 2021.

FOLHA DE SÃO PAULO. Cancelamento de festas do carnaval faz país deixar de movimentar 81 bilhões. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/cancelamento-de-festas-do-carnaval-faz-pais-deixar-de-movimentar-r-81-bilhoes.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=comphomemail>. Acesso em 06 de fev. de 2021.

NEXO JORNAL. Como será o amanhã? O que esperar do carnaval de rua em 2021? Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Como-ser%C3%A1-o-amanh%C3%A3-O-que-esperar-do-carnaval-de-rua-em-21>. Acesso em 02 de fev. de 2021.

MONEY REPORT. Exame: o impacto econômico da pandemia no carnaval de 2021. Disponível em: <https://www.moneyreport.com.br/economia/exame-o-impacto-economico-da-pandemia-no-carnaval-de-2021/>. Acesso em 02 de fev. de 2021.