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O momento atual de crise global torna urgente aprofundar a discussão sobre a colonialidade do saber e o pensamento abissal que emergem da experiência colonial moderna e de sua lógica que dividiu o mundo em zonas metropolitanas e coloniais, civilizadas e incivis, relevantes e irrelevantes. Para contribuir com o tema, a Revista Sociologias (UFRGS) divulga a sua nova edição (n.43) que traz como destaque o Dossiê “Epistemologias do Sul: lutas, saberes e ideias de futuro”, com contribuições de Boaventura de Sousa Santos, Maíra Baumgarten, Sara Araújo, entre outros. O dossiê reflete sobre temas como direitos humanos, interculturalidade, economia capitalista e não capitalista, pluralismo jurídico, racismo e xenofobia.

O novo número da Revista Sociologias é uma relevante contribuição sobre a produção e circulação de conhecimentos a partir da perspectiva do sul global. A Rede INCT Observatório das Metrópoles vem contribuindo com esse debate na área do planejamento urbano, já que integra a Rede Latino-americana de Pesquisadores em Teoria Urbana (Relateur), cujo objetivo é incentivar a formação de um pensamento teórico-crítico latinoamericano sobre a problemática urbana da região, promover o intercâmbio de conhecimentos e o desenvolvimento de estudos comparados relacionados às grandes cidades da América Latina.

Para o coordenador do Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, a construção de uma teoria urbana da América Latina passa por três atitudes possíveis: a primeira, política; a segunda é epistemológica e a terceira, teórica. “A atitude política significa empreender uma sociologia crítica da circulação internacional e assimétrica das ideias e dos ideais dos países do Norte para o Sul, com o objetivo de entender os mecanismos, instituições e processos pelos quais, no campo do planejamento urbano, os problemas de pesquisa, categorias e conceitos são exportados e absorvidos como naturalmente universais. Outra dimensão da atitude política é ter como referência um projeto utópico, pois não há teoria que não esteja dialogando, de maneira implícita ou explícita, com outro tipo de sociedade”, afirma.

Veja mais no site da Relateur.

A seguir o texto de Apresentação do Dossiê Epistemologias do Sul: lutas, saberes e ideias de futuro, da Revista Sociologias nº 43.

APRESENTAÇÃO

AS EPISTEMOLOGIAS DO SUL NUM MUNDO FORA DO MAPA

Por Boaventura de Sousa Santos, Sara Araújo e Maíra Baumgarten

A atual crise global e a hegemonia continuada dos padrões económicos, sociais, culturais e políticos que conduziram o mundo a este momento histórico têm sustentado um discurso de ausência de alternativas, frequentemente envolto num pessimismo conformado. As Epistemologias do Sul são uma proposta de expansão da imaginação política para lá da exaustão intelectual e política do Norte global, traduzida na incapacidade de enfrentar os desafios deste século, que ampliam as possibilidades de repensar o mundo a partir de saberes e práticas do Sul Global e desenham novos mapas onde cabe o que foi excluído por uma história de epistemicídio.

O conceito de Sul não aponta exclusivamente a uma geografia. É uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo co- lonialismo e pelo patriarcado, e da resistência a essas formas de opressão (Santos, 1995, 2014). Na dor e na luta, desigualmente distribuídas pelo mundo, cabem uma multiplicidade de conhecimentos invisibilizados e desperdiçados pela modernidade. A linha abissal é uma imagem fundadora da proposta epistemológica e política apresentada neste dossiê e assenta na ideia de que uma linha radical impede a copresença do universo “deste lado da linha” com o universo “do outro lado da linha”. Do lado de lá, não estão os excluídos, mas os seres sub-humanos não candidatos à inclusão social. A negação dessa humanidade é essencial à constituição da modernidade, uma vez que é condição para que o lado de cá possa afirmar a sua universalidade. Assim, práticas que não se encaixam nas teorias não põem em causa essas teorias e práticas desumanas não põem em causa os princípios da humanidade (Santos, 2007, 2014).

Os saberes e as práticas do outro lado da linha desaparecem ao espelho do cânone monocultural definido do lado de cá. A produção de invisibilidades é assegurada pelas cinco monoculturas do pensamento moderno: a monocultura do saber e do rigor do saber cria o ignorante, a monocultura do tempo linear determina o residual, a monocultura da naturalização das diferenças legitima a classificação do inferior, a mono- cultura do universalismo abstrato demarca o que é local e estabelece a sua irrelevância e a monocultura dos critérios de produtividade capitalista decreta o improdutivo (Santos, 1995, 2006, 2014).

A sociologia das ausências e a sociologia das emergências são exercícios fundamentais de superação do pensamento abissal e guiam os artigos publicados neste número temático. A primeira permite-nos ampliar o presente juntando-lhe o que foi subtraído por via da invisibilização; a segunda junta ao real dilatado as possibilidades e expectativas futuras que ele comporta, movendo-se no campo das utopias a partir de experiências concretas entendidas como embriões do futuro.

A sociologia das ausências opera substituindo monoculturas por ecologias: a ecologia dos saberes substitui a monocultura do saber e do rigor científicos, confrontando-a com outros saberes e outros critérios de rigor; a ecologia das temporalidades mostra que a lógica do tempo linear é uma entre múltiplas conceções de tempo possíveis e reivindica a copresença radical; a ecologia dos reconhecimentos submete à crítica a sobreposição entre diferença e desigualdade, bem como os critérios que definem diferença, e cria novas exigências de inteligibilidade recíproca; a ecologia das transescalas denuncia o falso universalismo e a despromoção do local, mostrando que o universalismo existe como pluralidade de explorações universais alternativas, parciais e competitivas, todas elas ancoradas em contextos particulares; e a ecologia das produtividades recupera os sistemas alternativos de produção que o capitalismo ocultou ou descredibilizou (Santos, 2006, 2014).

Um ponto de partida essencial desta proposta epistemológica é a convicção de que todos os saberes são incompletos, condição a que não escapa a própria ciência. Das cinco ecologias mencionadas não resulta uma declaração de irrelevância da ciência, mas antes a ideia de explorar a pluralidade, isto é, as práticas internas alternativas, bem como a interação e a complementaridade entre saberes científicos e saberes não científicos. Não se propõe uma substituição de um processo construído de cima para baixo por um processo que funciona de baixo para cima, mas uma meta de criação de relações não hierárquicas entre saberes (científicos, leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, indígenas, entre muitos outros).

As Epistemologias do Sul surgem como uma proposta epistemológica subalterna, insurgente, resistente, alternativa contra um projeto de dominação capitalista, colonialista e patriarcal, que continua a ser hoje um paradigma hegemónico. Na sua fundação, encontra-se a ideia-chave de que não há justiça global sem justiça cognitiva global, isto é, as hierarquias do mundo só serão desafiadas quando conhecimentos e experiências do Sul e do Norte puderem ser discutidos a partir de relações horizontais e sem que as narrativas do Sul sejam sempre sujeitas à extenuante posição de reação (a periferia que reage ao centro, o tradicional que reage ao moderno, a alternativa que reage ao cânone).

As Epistemologias do Sul existem porque existem Epistemologias do Norte que se arrogam universais. O objetivo futuro consiste no reconhecimento de uma variedade enorme de epistemologias, a Ocidente e a Oriente, a Norte e a Sul, a nível local, global, nacional, em que as diferenças sejam horizontais e não verticais (Santos, 2014).

São múltiplos os desafios que se colocam às ciências sociais no âmbito desta proposta. Como conciliar as cinco ecologias mencionadas com as pressões da avaliação científica assentes em indicadores que impedem o reconhecimento de investigação fora do cânone? Desde logo, o discurso hegemônico sobre a internacionalização da ciência, muito claro sobre a língua de publicação dos resultados, o inglês, coloca pesquisadores e pesquisadoras, bem como editores de periódicos (instrumentos por excelência de divulgação científica entre pares e para a sociedade) em larga desvantagem em relação à pesquisa efetuada em países que usam no quotidiano a língua hegemónica. Tendo em conta a forte relação entre língua e cultura, não se trata apenas de uma questão técnica de tradução de palavras. Na publicação de resultados, a obrigação de recorrer a uma língua com uma carga cultural estranha configura mais uma forma de produzir invisibilidade, eliminando do mapa os conhecimentos que se exprimem noutras línguas ou perdendo na tradução parte da sua especificidade (Baumgarten, 2016). A sociologia das ausências e das emergências exige conceitos que deem conta de saberes e práticas invisibilizados pela estreiteza dos conceitos eurocêntricos com origem nas línguas hegemónicas.


Com base nessas preocupações e propostas, construímos o dossiê “As epistemologias do Sul: lutas, saberes e ideias de futuro”, uma organização conjunta da editoria da revista e da coordenação do projeto ALICE.São quatro as premissas de ALICE: a compreensão do mundo excede em muito a compreensão europeia do mundo; não faltam alternativas no mundo, o que falta é um pensamento alternativo das alternativas; a diversidade do mundo é infinita e nenhuma teoria geral a pode captar; a alternativa à teoria geral é a promoção de uma ecologia de saberes em conjunto com a tradução intercultural. Partindo destas premissas, os artigos dessa edição refletem em português sobre direitos humanos, interculturalidade, economia capitalista e economias não capitalistas, constitucionalismo, pluralismo jurídico, saúde, racismo e xenofobia.

Boaventura de Sousa Santos abre o dossiê, argumentando que o preconceito colonial constitui a chave para compreendermos a dificuldade que a Europa tem em aprender com o mundo, e reivindica a urgência da ocorrência de aprendizagens globais pós-abissais que permitam a reinvenção do continente. O autor debate as condições para uma nova visão da Europa, a partir do hoje que está fora dela, e apresenta exemplos de aprendizagens mútuas em quatro áreas temáticas: direitos humanos, economia, democracia e constitucionalismo. Segundo Santos, num mo- mento em que várias crises assombram o continente, parece existir uma janela de oportunidade para que, numa lógica de aprendizagens globais e de reconhecimentos recíprocos, a Europa possa abrir-se a aprender com o Sul, superando o pensamento abissal da modernidade.

José Manuel Mendes discute as lógicas do capitalismo, escolhendo como ponto de entrada os desastres ou catástrofes. Argumenta que o Estado é o mediador e o recurso de última instância que legitima a integração das sociedades no capitalismo global, e que a linha abissal percorre tanto o Sul como as pequenas colónias do Norte. Nesse sentido, começa por discutir as novas formas do capitalismo avançado e do neoliberalismo, argumentando que o Estado mantém um papel essencial para a plena consecução das políticas neoliberais; analisa a noção de risco, defendendo que as catástrofes podem ser reveladoras da lógica do capitalismo e dos limites do neoliberalismo, bem como da presença da linha abissal mesmo no centro do capitalismo; e, finalmente, centra-se no papel das vítimas e dos afetados e na forma como exigem uma análise baseada na performatividade, que vá além da biopolítica de Michel Foucault ou dos regimes de exceção de Giorgio Agamben.

Sara Araújo debate a relação entre o direito e a linha abissal. Segundo a autora, o direito moderno eurocêntrico é um instrumento de reprodução do colonialismo, promovendo exclusões abissais e circunscrevendo o horizonte de possibilidades à narrativa linear de progresso. Desde essa perspectiva, a linha abissal é tanto epistemológica como jurídica. A autora argumenta que as Epistemologias do Sul devem estabelecer diálogos com a sociologia do direito ao mesmo tempo que a desafiam, identificando exclusões produzidas por conceitos eurocêntricos, criando ou recriando teorias e metodologias, ampliando ou reformulando velhas questões e acrescentando novas perguntas.

A autora pretende dar um contributo nesse sentido, recuperando o conceito de pluralismo jurídico, reconfigurando-o como instrumento de ampliação do presente enquanto ecologia de direitos e de justiças. O artigo começa por mostrar como a imposição global do primado do direito é um mecanismo de expansão do projeto capitalista e colonial, argumentando que a colonialidade jurídica mimetiza a colonialidade do saber; em seguida, mostra como o reconhecimento do pluralismo jurídico não significa necessariamente a superação do modelo expansionista; e, finalmente, defende a ampliação do cânone jurídico pela dilatação do leque de experiências jurídicas conhecidas, propondo uma sociologia das ausências atenta aos direitos enunciados fora das lutas formuladas nos termos do direito e da política modernos.

A partir de um trabalho etnográfico, Bruno Sena Martins revisita o maior desastre industrial da história – Bhopal, Índia, 1984 – propondo um encontro com as vozes daqueles cujas vidas foram afetadas. A abordagem escolhida pretende convocar leituras sobre o tempo, a violência e as demarcações de humanidade que definem a memória social. Por um lado, aborda os processos pelos quais algumas vidas são desproporcionadamente expostas à violência e fracassam em receber justa compensação e como alguns sofrimentos vão desaparecendo da memória social do Ocidente. Por outro, mostra como a vulnerabilidade biográfica e corpórea, imposta pelo desastre, criou espaços de enunciação e narrativas de resistência. Recrutando para os usos do tempo o conceito de linha abissal, o autor conclui que as vidas de Bhopal, naquilo que têm de emancipatório e contra-hegemónico, comportam a força de uma memória pós-abissal.

No artigo “À procura de outro constitucionalismo económico: construindo a cidadania a partir de iniciativas de economia solidária e popular lideradas por mulheres do Sul”, Teresa Cunha e Élida Lauris discorrem sobre a necessidade de ampliar o cânone do constitucionalismo económico a partir das experiências de injustiça epistémica. Com base na análise de iniciativas engendradas e lideradas por mulheres no Brasil, em Moçambique e na África do Sul, as autoras visualizam novos elementos de racionalidade moral e prática política que questionam os princípios subjacentes à funcionalidade económica e do progresso nacional, como está previsto nas constituições. Discutem, ainda, o impacto efetivo dessas socioeconomias nas mudanças sociais e no avanço da cidadania económica.

Assumindo a impossibilidade de justiça social sem justiça cognitiva, Maria Paula Meneses aborda a problemática do saber eurocêntrico sobre África – o que Valentin Mudimbe apelidou de “biblioteca colonial” – como ponto de partida para compreender as repetidas ondas de violência xenófoba que têm abalado comunidades negras na África do Sul. Com esse objetivo, analisa os conflitos herdados do passado colonial, trazendo realidades invisibizadas, expondo os processos que estão na sua origem. A partir de uma reflexão sobre as discriminações raciais no Brasil e a violência xenófoba na África do Sul, o texto conclui ser necessário superar as narrativas simplistas e procurar maior sofisticação analítica, compreendendo a multiplicidade de legados da relação colonial. Para Meneses, apenas leituras comparadas dos conflitos permitem detetar o desdobramento das práticas de inclusão ou exclusão. Múltiplas experiências cosmopolitas caracterizam os atuais contextos urbanos no Sul global e o não reconhecimento dessa vibrante e diversa realidade cultural e epistêmica constitui uma barreira à ampliação dos sentidos da cidadania e das pertenças.

João Arriscado Nunes e Raquel Siqueira-Silva retomam o conceito de linha abissal para debaterem a desumanização associada à atribuição de desrazão, loucura ou alienação e, mais recentemente, de distúrbio ou transtorno mental. Os autores abordam a experiência da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), iniciada em finais da década de 1970, destaca- da pela radicalidade de propostas de reorganização do campo da saúde mental, mas também pela reconfiguração das relações entre saberes que vieram desafiar a monocultura do saber psiquiátrico. No texto, discute-se a centralidade das práticas de criação estética e dos saberes e formas de ação coletiva a elas associados na passagem da condição de não-existência social à de integração pelo reconhecimento da diferença. De acordo com Nunes e Siqueira-Silva, esse processo, discutido a partir das produções e práticas de grupos musicais, tornou possível o reconhecimento da dimensão estética como elemento central da descolonização dos saberes e práticas da saúde mental, e da invenção de ecologias de saberes que descentram radicalmente a autoridade dos saberes hegemônicos.

Os artigos aqui reunidos, ligados pela proposta epistemológica em que assentam, pretendem ser um contributo para a construção de um pensamento pós-abissal e para a ampliação da imaginação política. Esse é um projeto exigente que nos desafia a desaprender a alegada universalidade do pensamento monocultural e a superar as abordagens dicotómicas que têm por referência o cânone moderno, reiteradamente agregando nas categorias homogeneizadoras do outro lado do polo uma diversidade enorme de experiências cujas especificidades, potencialidades e possibilidades de aprendizagens se desperdiçam. Convictos de que não precisamos de alternativas, mas de um pensamento alternativo de alternativas, as autoras e os autores buscam o mundo fora do mapa, perseguindo aprendizagens, experiências e práticas que dilatem o presente e substituam o pessimismo atual por um futuro com esperança.

Acesse o Dossiê “As epistemologias do Sul: lutas, saberes e ideias de futuro”, da Revista Sociologias nº 43.

 

“ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo” é um projeto coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Portugal. O projeto é financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação, 7o Programa Quadro da União Europeia (FP/2007-2013) /ERC Grant Agreement n. [269807]” – www.alice.ces.uc.pt

 

 Última modificação em 07-03-2017 14:25:44