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Juciano Rodrigues¹

O anúncio do aumento da passagem dos trens que atendem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) renovou as manchetes sobre as péssimas condições do serviço prestado pela concessionária SuperVia. Embora já esperado, o reajuste não deixou de causar indignação, considerando que os atrasos, a interrupção frequente de viagens, a superlotação, a insegurança, a falta de acessibilidade, entre outros problemas, fazem parte da rotina dos milhares de passageiros que dependem, diariamente, desse modo de transporte para acessar empregos e demais atividades na metrópole.

Com base no IGP-M (Índice Geral de Preços do Mercado), o valor da tarifa que é de R$ 5 vai passar para R$ 7,40. Por parte da empresa operadora, a pressão pelo reajuste é justificada pela dificuldade para cobrir os custos operacionais, já que o serviço depende exclusivamente da receita tarifária. A queda no movimento durante a pandemia agravou a situação, amplificando a crise que se arrasta há anos.

Diante de um aumento que impactará diretamente o orçamento das famílias, o Governo Estadual instituiu o que denominou Tarifa Social ferroviária. Na prática, essa ação significa a manutenção do valor de R$ 5 mediante a utilização do já existente Bilhete Único Intermunicipal (BUI), gerido pela RioCard. O mesmo desconto atende também quem tem vale-transporte. É importante lembrar que, sem esse abatimento, o custo considerando uma viagem de ida e volta em um mês com 23 dias úteis seria de R$ 340,40, mais de um quarto do novo salário-mínimo (R$ 1.302,00). Sem nenhum tipo de integração tarifária, esse custo pode ser ainda maior, já que muitos passageiros são obrigados a fazer baldeação para acessar as estações ou para chegar aos seus destinos.

Nessas condições, o anúncio do reajuste – previsto inicialmente para o dia 02 de fevereiro – provocou uma corrida pela regularização e cadastramento do Bilhete Único. Com isso, como se já não bastasse o caos enfrentado diariamente, o problema da vez foram as dificuldades encontrados pela população para acessar o meio de validação que garante o desconto na passagem. Para conseguir se cadastrar ou atualizar a situação do cartão especial, os usuários da SuperVia enfrentaram longas filas, falta de informação e um ambiente de muita confusão no posto que concentrou o atendimento, localizado na Estação Central do Brasil. Isso tudo sob a insalubridade térmica do verão carioca.

O atendimento ao usuário não é o forte das empresas do transporte público coletivo no Rio de Janeiro, principalmente quando se trata de acesso a benefícios. Dias antes do ocorrido na SuperVia, o noticiário carioca já havia dado conta da dificuldade encontrada pela população idosa e pelas pessoas com deficiência para acessar o posto de atendimento do MetrôRio, localizado no subsolo da Central do Brasil. Segundo relatos apurados em matéria do G1, no dia 12 de fevereiro, um lugar quente e sem ventilação.

Após uma enorme pressão da sociedade e a repercussão negativa da operação montada para a habilitação do cartão, o PROCON municipal notificou a empresa Riocard e, por decisão do Governo Estadual, o aumento foi adiado em uma semana. Essa ação improvisada à luz dos acontecimentos, os incômodos e os desrespeitos com o cidadão que busca nada mais do que a garantia dos seus direitos, são reflexos de problemas maiores decorrentes de déficits históricos de gestão e investimentos, que foram apenas agravados com pandemia de Covid-19.

Estação de trem da SuperVia, no Rio de Janeiro. Foto: SuperVia Concessionária de Transporte Ferroviário S/A.

A situação crítica dos transportes públicos coletivos, ao incluir também essas deficiências operacionais básicas, compromete o nível de acessibilidade de milhares de cidadãs e cidadãos da região metropolitana, que privados dos meios de transporte não conseguem alcançar oportunidades de emprego, serviços de saúde e atividades de lazer e cultura. Segundo levantamento do Observatório dos Trens, apenas 7% dos usuários terão acesso ao cartão que dá direito ao desconto. Ou seja, 93% dos passageiros continuariam pagando o valor absurdo de R$ 7,40 na passagem. Além disso, o processo é burocrático. O cidadão tem que comprovar renda inferior a R$ 7.087,22 e a chamada tarifa social ferroviária tem validade de apenas um ano.

Para além das questões que envolvem o desenho do benefício, o atendimento e o absurdo descompasso entre o valor da tarifa dos trens e a qualidade do serviço, o aumento cruel da passagem expõe mais uma vez as crises econômica, urbana e social na RMRJ, cada vez mais empobrecida, desindustrializada e dominada pelo que há de pior na política. Tudo isso em uma metrópole onde grande parte dos deslocamentos é de longa distância, exige baldeação e envolve troca modal.

O Governador Cláudio Castro, chefe do poder responsável pela política de mobilidade metropolitana, chegou a classificar o transporte por trens como “serviço podre de uma concessionária horrorosa” (matéria do jornal O Dia, publicada no dia 12 de maio de 2022). No entanto, ao tomar posse para o seu segundo mandato, escolheu o ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis, como secretário estadual de Transporte e Mobilidade Urbana. Reis, cuja candidatura a vice de Castro já tinha sido impugnada em razão de uma condenação por crimes ambientais, teve a nomeação questionada pelo Ministério Público, que pediu seu afastamento do cargo à justiça.

É no mínimo um contrassenso que um agente condenado por um crime dessa natureza se torne responsável por políticas fundamentais no enfrentamento do desafio ambiental, que, além da descarbonização no transporte público coletivo por ônibus, envolve a ampliação da participação do modo ferroviário e a modernização do setor. Nunca é demais lembrar que as políticas de mobilidade desempenham papel central no combate às emergências climáticas. Os transportes representam 47% das emissões de CO2 no setor de energia.

Vale dizer também que o Rio está entre as metrópoles mais atingidas pelos efeitos da pandemia no mercado de trabalho. Nesse contexto social marcado pelo aumento do desemprego, pela perda de renda e pela precariedade geral dos serviços coletivos, a tarifa social de R$ 5,00 parece também insuficiente para amenizar os efeitos de um círculo vicioso de empobrecimento e miséria urbana. No Rio de Janeiro, como em outras metrópoles, ocorreu nos últimos anos um enorme aumento da pobreza, medida pelo número de indivíduos vivendo em domicílios com rendimento per capita de até ¼ do salário-mínimo. No entanto, desde 2020 o Rio vem apresentando indicadores piores do que o conjunto das regiões metropolitanas do país.

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE). Tabulação realizada para o Boletim Desigualdade nas Metrópoles nº 11. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/desigualdade-nas-metropoles-renda-dos-mais-pobres-cresce-12-e-volta-ao-patamar-anterior-a-pandemia/

Parte das soluções mais imediatas para essa crise – cuja confusão em torno do aumento das passagens é apenas uma de suas expressões – está relacionada às políticas de transporte. Em primeiro lugar, garantir o acesso e a modicidade da tarifação não é nenhuma condição especial e, por isso, não deve ser encarada de forma alguma como política de auxílio. Tendo como referência maior o artigo 6º da Constituição Federal de 1988, que assegura o transporte como direito social, a modicidade da tarifa é condição fundamental para a promoção de um transporte socialmente justo, inclusive em contextos metropolitanos.

Quem acompanha mais de perto a situação dos trens metropolitanos tem chamado a atenção para a necessidade de modernização e de, em certa medida, uma mudança no paradigma de gestão do transporte na região metropolitana. Em 2021, a Casa Fluminense e o Observatório dos Trens lançaram um relatório com recomendações para a modernização dos trens da SuperVia, que inclui:

  1. Promoção de maior investimento no sistema;
  2. Estratégias para redução de furtos de cabos;
  3. Troca do índice de reajuste do IGP-M para o IPCA;
  4. Revisão do modelo de remuneração da operadora; e
  5. Fortalecimento da regulação e fiscalização.

Não há dúvida que todos esses desafios se amplificam em territórios complexos dos pontos de vistas social, geográficos, ambiental e – principalmente – político. No caso da política de mobilidade, o desafio é ainda maior diante da realidade do deslocamento diário de milhares de pessoas entre os municípios metropolitanos, cada um com suas próprias instâncias e prioridades administrativas. Nesse cenário de problemas diversos e interesses difusos, o Governo Estadual deve desempenhar papel fundamental, cumprindo suas responsabilidades constitucionais sobre o espaço metropolizado. Isso significa ser protagonista no preenchimento do vazio de governança que há décadas deixa essa metrópole à deriva.

Avançar na direção de um compromisso social em torno de uma agenda urbana de longo prazo, que possa mobilizar agentes públicos de vários níveis e esferas, atores da sociedade e do mercado é urgente. Para isso, falta, sobretudo, entender a RMRJ como um espaço de vida comum, para além de uma simples bacia de empregos cada vez mais precários. Assim, é preciso conceber um espaço institucional que reflita suas espacialidades econômica e físico-ambiental. O ponto de partida seria reconhecer um recorte territorial que possibilite diagnósticos coerentes sobre os problemas que extrapolam os limites municipais e soluções que levem em conta as funções de interesse comum. Nesse contexto, o transporte de massa, especialmente sobre trilhos, assume papel importante na integração social e econômica da metrópole, implicando em planejamento sistemático, participativo e menos refém dos interesses particulares e corporativos.


¹ Pesquisador e membro do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).