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Lara Furtado¹

A Rede de Cidades Globais Resilientes juntamente com o Programa de Resiliência do Banco Mundial promovem um ciclo de palestras semanal chamado Cidades na Linha de Frente para que cidades compartilhem conhecimento sobre como lidar com os desafios do coronavírus (COVID-19)². Uma das pautas que tem ganhado atenção mundial é a vulnerabilidade de segmentos da população que não possuem as mesmas condições socioeconômicas para lidar com o vírus. Na semana passada (16 de abril), a sexta sessão intitulada Abordagens inclusivas para combater a COVID-19 em assentamentos informais trouxe a discussão sobre quais estratégias podem ser utilizadas para responder à pandemia no contexto do Sul Global para proteger as populações mais pobres de maneiras sensíveis e inclusivas. Em especial, a palestra trouxe falas de ativistas de assentamentos informais em Ghana (Slum Dwellers International) e Nigéria (Informal Settlement Federation), acrescentando uma visão internacional sobre as dificuldades enfrentadas nas realidades Africanas.

Primeiramente, devemos lembrar que o problema atual é intrinsecamente econômico fruto de décadas de governança negligente e de desigualdade no qual foi sobreposta uma crise de saúde. O cenário de crise em assentamentos informais não é novidade: epidemias e desastres ambientais vêm historicamente impactado essas comunidades em níveis desproporcionalmente altos. A grande mudança desse cenário atual de pandemia é que se tornou evidente a real importância dos pobres urbanos para o ecossistema das cidades globais. No momento atual, muito pânico vêm sendo gerado mas não estamos equipando essas comunidades com nenhuma ferramenta para responderem aos desafios que surgem dia a dia. Para tanto, é necessário entender os impactos do coronavírus em diversos aspectos da qualidade de vida da população em assentamentos informais. Precisamos responder às necessidades imediatas que surgem constantemente mas, quando a poeira abaixar, como podemos nos certificar de que as cidades estejam mais preparadas para enfrentar uma outra crise? Os palestrantes apresentaram o engajamento comunitário e o acesso à informação como estratégias imprescindíveis para enfrentar as dificuldades.

Com esse objetivo, proponho nesse artigo uma pirâmide de hierarquia de necessidades de combate à COVID-19 em assentamento informais. O modelo é adaptado a partir dos temas abordados na sessão Abordagens inclusivas para combater a COVID-19 em assentamentos informais e de estratégias que estão sendo implementadas no Brasil a nível local para sistematizar diversas frentes de combate à crise que podem ser melhoradas ou replicadas. O modelo piramidal é apropriado para os desafios atuais já que considera uma hierarquia entre as necessidades apresentadas em cada pilar e pode ser utilizado para guiar soluções que contemplem cada um dos cinco degraus apresentados³. Os inferiores são prioritários já que são ligados diretamente a necessidades básicas para sobrevivência, mas uma abordagem holística deve buscar alcançar os pilares superiores (Figura 1).

Figura 1: Modelo proposto de uma “Hierarquia de necessidades de combate ao coronavírus em assentamento informais”: segurança básica de habitação e econômica vem como primordiais, seguidas de saneamento e higiene. Projetos futuros devem também apoiar redes de apoio e solidariedade, prover informação e proteger psicologicamente os grupos de risco (idosos e juventude).

NECESSIDADES IMEDIATAS

O isolamento social vem sendo adotado na maioria das cidades como a forma primordial de retardar o contágio de COVID-19 de modo a permitir que governos e sistemas de saúde se estruturem para lidar com o fluxo crescente de pacientes. Em algumas situações, governos têm conseguido investir para reabilitar centros de saúde existentes em decadência e implementar medidas de isolamento para impedir o colapso do sistema de saúde. No entanto, a eficiência das medidas de isolamento social e de higienização não depende exclusivamente da boa vontade da população. No Brasil, a grande maioria das pessoas carentes está abrigada em assentamentos precários que concentravam, em 2010, quase 12 milhões de habitantes. Até então, pesquisadores e ativistas vem chamando atenção para duas questões que são prevalentes em assentamentos precários brasileiros e que tornam essas áreas mais vulneráveis a proliferação do coronavírus: vulnerabilidade socioeconômica e altas densidades populacionais. Logo, as soluções propostas se concentram primordialmente no primeiro degrau de necessidades imediatas em prover condições básicas de habitabilidade de forma urgente.

Após quase 30 dias de quarentena, tem se tornado claro que precisamos de estratégias diversificadas para garantir dois objetivos primordiais: a continuidade do isolamento e a propagação de medidas de combate ao vírus. Governos vêm lançando medidas imediatas de apoio econômicos para que trabalhadores majoritariamente informais possam obter um acolchoado financeiro. Isso garantiria que famílias pobres, repentinamente sem nenhuma fonte de renda, consigam ainda manter necessidades básicas de alimentação e de segurança habitacional. Deste modo, os fundos de auxílio a crise vem sendo implementados para transferir dinheiro diretamente para as camadas mais vulneráveis brasileiras. No que diz respeito à qualidade da moradia, as habitações superpovoadas dificultam medidas de isolamento social. Propostas para solucionar a crise habitacional frente à COVID-19 incluem destinar imóveis vazios para abrigar famílias em vulnerabilidade ambiental e em situação de rua e prover aluguel social para relocar famílias morando em casas insalubres⁴. Outras estratégias merecem atenção nesse primeiro degrau de segurança básica. No estado do Ceará, por exemplo, o governo prometeu garantir o pagamento da conta de luz para mais de 534.000 famílias de baixa renda pelos próximos três meses⁵. Uma medida da prefeitura antecipou o pagamento do aluguel social de famílias em Fortaleza e suspendeu a necessidade de comprovantes como outra medida de apoio financeiro a moradia⁶. Recentemente, um projeto de lei foi aprovado pelo Senado para proibir o despejo de inquilinos até o mês de outubro⁷.

Ainda que estas questões estejam sendo abordadas, o aumento dos casos de COVID-19 no Brasil também têm nos forçado a pensar na real crise de insalubridade nos assentamentos informais. Apesar de muitas favelas possuírem acesso a água, esse acesso é falho e já vem sido posto em teste. A comunidade do Alemão no Rio de Janeiro sofre com falta de água que dificulta pôr em prática qualquer protocolo de higienização sem água corrente⁸. A falta de álcool em gel e de máscaras no mercado contribui para que moradores, ainda forçados a se movimentar pela cidade, fiquem ainda mais expostos ao vírus. Como uma tentativa de amenizar essa falta, o projeto Todos com Máscara empregou 500 costureiras autônomas para contribuir com a produção de máscaras caseiras e trazer uma renda a microempresas localizadas em bairros de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza⁹. No Bom Jardim, um dos bairros mais vulneráveis de Fortaleza, um comerciante local elaborou uma estrutura improvisada para que clientes pudessem higienizar suas mãos. Iniciativas como essa devem ser estudadas e apoiadas para serem escaladas e implementadas em mais comunidades (Figura 2). O projeto social Banho da Alegria, por exemplo, implementou um chuveiro itinerante para beneficiar a população de rua do Rio de Janeiro¹⁰. É possível aprendermos com situações passadas de crise e adaptar protocolos existentes como de combate a seca ou enchentes. No Ceará, caminhões pipa são comumente contratados para levar água para comunidades rurais e podem ser adaptados para alimentar moradias informais e instalações de higienização.

Figura 2: Dono de mercadinho em Fortaleza disponibiliza estação de higienização de mãos para moradores a partir da adaptação de garrafões de água. Fonte: Instagram @ariareia.

ENGAJAMENTO E INFORMAÇÃO

Ainda que o passo inicial seja garantir que as necessidades humanas fisiológicas sejam atendidas, é importante considerarmos uma atuação multidimensional para minimizar a magnitude do impacto do vírus preventiva e futuramente. No que diz respeito à redes de apoio, os palestrantes destacaram que a lição fundamental aprendida a partir de crises passadas é que devem ser estabelecidas estruturas de diálogos que interliguem comunidades a cidades e a governos nacionais. Assentamentos devem participar ativamente do processo de modo a ter um impacto direto nas decisões tomadas a nível federal. Qualquer intervenção deve ser instituída através de parcerias com organizações locais que possuem laços com movimentos de base para mobilizar as capacidades existentes e específicas de cada território. Ao lidar com a crise da Ebola em Gana, o governo federal estabeleceu fóruns em cada assentamento que eram responsáveis por repassar as preocupações e decisões acordadas em assembleia para outros sistemas de governança.

Historicamente, moradores de assentamentos informais sempre estabeleceram redes solidárias como uma forma de lidar com riscos e ameaças. O vírus evidencia essa necessidade de medidas colaborativas ao mostrar falhas nos sistemas individualistas de produção do espaço e de distribuição de recursos. Logo, a crise de saúde atual é uma oportunidade para empoderarmos as redes existentes de modo a distribuir recursos estrategicamente a nível local. No que se trata de ativismo comunitário contra o coronavírus, organizações e líderes vêm implementando suas próprias redes de apoio e angariando fundos para dar mais ajuda às suas populações. Em Fortaleza, os projetos LagAMAR em Ação e SerPonte foram estabelecidos por voluntários com conhecimento das necessidades locais com o objetivo de redistribuir recursos de doações através de agentes territoriais. Os agentes mediam as doações de modo a identificar e servir diretamente os moradores em grupo de risco e que moram em condições de moradia mais precárias¹¹. Outro projeto Comida em Casa foi lançado para credenciar fornecedores de mercadinhos locais no município de Fortaleza para contratação direta “objetivando o fornecimento de cestas básicas, com a finalidade de fomentar o comércio local e fornecer alimento para a população em situação de vulnerabilidade social e econômica neste momento de isolamento social, para o auxílio no combate da disseminação do vírus“¹².

Diante da propagação em massa de informações duvidosas através de meios de comunicação não verificados, o tópico da informação também deve ser abordado. As notícias falsas e os pronunciamentos contraditórios de representantes oficiais prejudicam o entendimento do real cenário de risco e da severidade do problema nas periferias¹³. Meios alternativos como podcasts locais, arte de rua e comunicadores locais são essenciais para dar dicas de prevenção e complementar pronunciamentos oficiais do governo ao demonstrar como a COVID-19 tem impactos específicos no ambiente da favela¹⁴. A página Favelas Contra o Coronavírus foi lançada por ativistas para lidar com o desafio de passar informações que não deixem a população em pânico, mas que traduzam os pronunciamentos oficiais do governo em linguagem apropriada¹⁵.

Durante a sessão Abordagens inclusivas para combater a COVID-19 em assentamentos informais, os líderes africanos relataram que estratégias de comunicação bem estabelecidas e fontes de informação confiáveis foram primordiais para enfrentar crises anteriores. As respostas políticas mais apropriadas e bem-sucedidas se basearam em conhecimento das necessidades locais que foram transmitidas eficientemente por ativistas. Eles destacaram a importância do diálogo mútuo onde líderes comunitários tiveram acesso a técnicos e políticos com conhecimento do problema que puderam responder perguntas de maneira transparente. Os ativistas apreciaram a oportunidade de ouvir informações de oficiais em sessões informativas para definir como se comunicar com os outros moradores.

Diante da compreensão de que nenhum governo tem a capacidade de monitorar o contágio do vírus de forma independente, agentes comunitários são imprescindíveis para aumentar a capacidade de mapeamento de casos em cada assentamento. Durante a crise do vírus Ebola, voluntários foram treinados para coletar dados sobre quem se encontrava doente, para mapear a rede de contato da pessoa infectada e para isolar moradores estrategicamente e evitar disseminação. Além disso, o mapeamento permite uma compreensão de quem são os moradores infectados mais vulneráveis para que possam ser apoiados principalmente com refeições, de modo a manter o isolamento e garantir sua recuperação.

Logo, a administração da crise nesse caso dependeu de agentes comunitários e governamentais com credibilidade e bem equipados para coletar e repassar informações e munidos de materiais informativos apropriados. É imprescindível aprendermos com esse caso para adaptar esse processo de transmissão de informação sobre a COVID-19 a nível local para ser traduzido em políticas em grande escala.

POR UM FUTURO RESILIENTE

Além das condições superpovoadas de moradia, temos que considerar a dificuldade de deixar pessoas dentro de casa com relação às repercussões psicológicas das medidas de isolamento. Em ambientes como os assentamentos, as relações de vizinhança são relevantes não apenas como uma rede de apoio a adversidades, mas também afetiva e socialmente. É necessário considerar como prover entretenimento especialmente para os grupos de risco, mas também para crianças e jovens. Programas de doação de jogos e brinquedos podem ser incentivados como maneira de trazer alegria e dar uma opção de lazer para os familiares. Esse momento também é adequado para retomarmos discussões sobre inclusão digital e como o acesso à internet pode beneficiar a resiliência econômica e emocional dessas comunidades.

Em locais onde recursos são mais escassos, impera a tensão entre atender as necessidades imediatas a curto prazo e investir o tempo e recursos necessários para criar infraestruturas e sistemas de apoio mais permanentes. Em muitos países, não existe sequer um sistema de saúde para sobrecarregar. Para muitos de nós, a nossa única responsabilidade deve ser de nos recolhermos, mas nesse outro contexto será necessária mobilização e engajamento comunitário.

Ações em assentamentos não devem somente retardar a propagação do vírus, mas também aumentar a resiliência das comunidades afetadas. O conceito de resiliência é muito utilizado em situações de desastres ambientais para descrever comunidades que têm maior capacidade de voltar ao seu estado de existência inicial pré-desastre. Neste caso, devemos almejar não apenas a um estado pré-coronavírus, mas imaginar como assentamentos podem emergir fortalecidos. Logo, a hierarquia de necessidades apresentada aqui para assentamentos informais pode ser aplicada para equipar essas comunidades com uma rede de recursos econômicos, sociais e de infraestrutura de modo que possam se fortalecer para lidar com as consequências do vírus e com as futuras ondas de impacto. Tanto as falas da sessão, quanto os exemplos agrupados nesse texto, mostram que é necessário alinhar políticas e estratégias em diferentes setores para que estejamos melhor preparados diante de outra crise futura.

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¹ Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal do Ceará, possui especialização em Manejo de Paisagens Culturais e Doutorado em Planejamento Regional pela Universidade de Massachusetts Amherst. Sua pesquisa articula as áreas de Ciência de Dados, Design Ambiental e Participação Social para o planejamento de assentamentos informais. É professora convidada na Universidade de Fortaleza onde ensina instrumentos urbanos e teoria do urbanismo.

² Coronavirus Speaker Series: Sharing Knowledge to Respond with Resilience. Disponível em: https://medium.com/@resilientcitiesnetwork/coronavirus-speaker-series-sharing-knowledge-to-respond-with-resilience-5a8787a1eef5

³ Esse modelo se inspira na hierarquia de necessidades de Maslow que considera as cinco categorias de necessidades humanas: fisiológicas, segurança, sociais, auto-estima e autorrealização.

⁴ Emergência habitacional, propõe Raquel Rolnik. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/emergencia-habitacional-propoe-raquel-ronlik/

⁵ Governo do Ceará pagará conta de energia de 534 mil famílias durante os próximos três meses. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2020/03/31/governo-do-ceara-pagara-conta-de-energia-de-534-mil-familias-durante-os-proximos-tres-meses/

⁶ Prefeitura antecipa pagamento de aluguel social para famílias já cadastradas. Disponível em: https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/prefeitura-antecipa-pagamento-de-aluguel-social-para-familias-ja-cadastradas

⁷ Coronavírus: Senado aprova projeto que proíbe despejo de inquilino. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/coronavirus-senado-aprova-projeto-que-proibe-despejo-de-inquilino/

⁸ Comunidades do RJ lutam contra novo coronavírus e falta de água. Disponível em: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/comunidades-do-rj-lutam-contra-novo-coronavirus-e-falta-de-agua-18032020

⁹ Todos com máscara. Disponível em: https://todoscommascara.fortaleza.ce.gov.br/

¹⁰ Banho da Alegria. Disponível em: https://www.atados.com.br/ong/banho-da

¹¹ Projeto “Ser Ponte Fortaleza” leva ajuda mensal a famílias das periferias da Capital. Disponível em: https://www.opovo.com.br/coronavirus/2020/04/08/projeto–ser-ponte-fortaleza–leva-ajuda-mensal-a-familias-das-periferias-da-capital.html

¹² Projeto Comida em Casa. Disponível em: https://comidaemcasa.fortaleza.ce.gov.br/static/img/edital-comida-em-casa.pdf

¹³ Porque a Circulação de Pessoas tem Peso na Pandemia. Disponível em: https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tem-peso-na-difusao-da-pandemia

¹⁴ Na ausência do Estado, ativistas informam a periferia sobre o coronavírus. Disponível em: https://apublica.org/2020/04/na-ausencia-do-estado-ativistas-informam-a-periferia-sobre-o-coronavirus/

¹⁵ Covid-19: página no facebook informa e mobiliza moradores de favelas. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-pagina-no-facebook-informa-e-mobiliza-moradores-de-favelas