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Amanda Machado de Almeida, Fabiana Moro Martins e Jéssica Wludarski¹

No dia 14 de setembro, ocorreu o Fórum Local Reforma Urbana e Direito à Cidade na Região Metropolitana de Curitiba. O evento aconteceu em formato híbrido, com transmissão ao vivo pelo Youtube e presencialmente no auditório da Universidade Federal do Paraná – Campus da Reitoria, local símbolo de lutas e resistências. O Fórum teve grande participação de pesquisadores, estudantes, técnicos e lideranças dos movimentos sociais e promoveu um profícuo debate.

A Mesa de Abertura enfatizou a responsabilidade e o comprometimento do grupo com um projeto de grande envergadura proposto pela rede nacional do Observatório das Metrópoles para a elaboração do livro “Reforma Urbana e Direito à Cidade”, apesar das adversidades que o período nos impõe. A mesa tinha como integrantes Madianita Nunes da Silva (coordenadora da mesa e do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles), Rosa Moura (organizadora do livro) e Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (coordenador nacional do Observatório das Metrópoles). Sob o título “Um projeto, um livro e um desafio”, Rosa Moura sintetizou a jornada empreendida pelos pesquisadores do Núcleo Curitiba para concretizar o livro e as atividades propostas pelo Observatório das Metrópoles no intuito de oferecer à sociedade um panorama atual das lutas sociais e suas contribuições para a retomada do histórico projeto da reforma urbana. Rosa ressaltou o cuidado com textos breves, linguagem acessível de teor propositivo, que salientem o usufruto ou a violação do direito à cidade. Além disso, houve a preocupação com textos cujo conteúdo trabalhasse recomendações para a retomada de medidas, instrumentos e mecanismos que promovam a almejada reforma urbana, para a garantia do exercício da cidadania a moradores da metrópole de Curitiba e sua região metropolitana. E, por fim, Rosa apresentou a compilação “Subsídios a uma Agenda pela Reforma Urbana e o Direito à Cidade/Metrópole na RM de Curitiba”, elaborada pelo núcleo como um resumo das proposições e experiências apresentadas no livro buscando oferecer, de forma célere, alternativas de mudanças concretas para a reforma urbana e o direito à cidade. O arquivo está disponível para download: reformaurbanadireitoacidade.net/nucleos/curitiba

Na sequência, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro resgatou o papel do Observatório das Metrópoles na construção de pesquisas sobre as transformações da ordem urbana, assim como nas análises sistemáticas do padrão rentista de financeirização sob a hegemonia ultraliberal. E demonstrou a fase subsequente da rede que buscou a construção de uma plataforma de conhecimento, inovação e ação para o desenvolvimento urbano orientado para os objetivos de reforma urbana e direito à cidade. Luiz Cesar reiterou a proposta de organização de um livro-combate em oposição às ideias neoliberais que reforçam a imagem de cidade como máquina de crescimento em contraposição a uma cidade organizada como ativo comum, cidade da emancipação das camadas populares. Desta forma, o Observatório tem buscado iluminar o debate apontando como perspectivas futuras os desafios do desenvolvimento nacional, contribuindo para o fortalecimento de um projeto de país e de nação em contraposição ao modelo vigente.

Mesa de Abertura. Crédito: Amanda Machado de Almeida.

A Mesa 1, intitulada “Reforma urbana e direito à cidade: derrubando muralhas entre teoria e prática”, renovou a esperança na política e demonstrou exemplos claros de profissionais éticos e competentes que, dentro de suas jornadas pessoais e coletivas, têm trilhado um caminho concreto em busca da construção efetiva do direito à cidade na Região Metropolitana de Curitiba. A mesa foi composta por Luiz Belmiro Teixeira (coordenador da mesa); Carol Dartora (Vereadora do Município de Curitiba), Karime Fayad (Prefeita do Município de Rio Branco do Sul) e Carolina Israel (pesquisadora Núcleo Curitiba).

Em um relato franco e humanista, pautado por sua experiência individual de mulher negra em uma cidade higienista e racista (com o maior número de células neonazistas e ideias de supremacia branca), Carol Dartora vivenciou violações de toda ordem. Uma experiência individual que se tornou coletiva no momento em que Carol percebeu que a ausência de pertencimento era resultado de violações do direito à cidade. Desta forma, o sofrimento por viver em uma cidade hostil e excludente foi aguçado, sobretudo, pela violência subjetiva da cotidianidade, causada por uma política de invisibilização da população negra e a falta de representatividade nos espaços urbanos. Essa experiência de não pertencimento resultou em uma trajetória que buscou compreender e resgatar suas raízes e a influenciou para a ação política. “Quando este sentimento foi organizado, se tornou uma pauta política”, relatou.

O escamoteamento e a violação sistemática de direitos devem ser substituídos pelo desenvolvimento urbano voltado ao bem viver, a partir da concepção de uma cidade educadora e inclusiva, que considera a cooperação para construir uma nova concepção de cidade e de direitos. A transformação da mentalidade atrasada e excludente depende da reorganização da cidade e dos espaços públicos. Significa pensar novos marcos, novos monumentos, novos roteiros turísticos, que incluam e enalteçam a população negra na cidade. Não apenas isso, faz-se necessário lutar contra o racismo institucional que reproduz ciclos de pobreza e que opera na mentalidade das políticas vigentes e estão presentes, por exemplo no programa “Muralha Digital” da prefeitura de Curitiba. Os exemplos de racismo algorítmico, apresentados por Dartora, nos alertam para um porvir ainda mais cruel para a população vulnerável sob discurso de inovação e neutralidade tecnológica, mas que no fundo, reproduzem e intensificam o racismo e a misoginia. Portanto, a vereadora nos convida a olhar mais de perto estes programas e a trabalharmos arduamente em prol do direito à cidade.

Mesa 1 “Reforma urbana e direito à cidade: derrubando muralhas entre teoria e prática”. Crédito: Florebela Letícia.

Karime Fayad derrubou muralhas entre teoria e prática ao se tornar prefeita da cidade de Rio Branco do Sul. Uma cidade de 35 mil habitantes com relevo acidentado e solo frágil (pertencente ao aquífero Karst) e com grande exploração de minérios em seu território com a instalação da Votorantim Cimentos. Sua fala escancarou os desafios em ser a primeira prefeita mulher de Rio Branco do Sul, onde três prefeitos anteriores foram assassinados. Karime é arquiteta urbanista, formada pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná e buscou equipe técnica especialista nas diferentes áreas para elaborar o Plano de Governo e para fortalecer as políticas públicas municipais. Atualmente o quadro de servidores públicos do município conta com doze arquitetos urbanistas, quatro geógrafos, seis engenheiros (civil e ambiental), dentre outros profissionais. O objetivo era compor um quadro técnico que pense a cidade e atue na transformação urbana.

O cenário encontrado apresentava planta genérica municipal desatualizada com liberação de alvarás em áreas de proteção ambiental e áreas de risco, ausência de informação cadastral e diversas ilegalidades como, por exemplo, a constatação de que 87% dos loteamentos do município eram irregulares ou clandestinos. Além disso, o município possuía um grande endividamento, o que impedia a captação de recursos externos para investir em infraestrutura urbana. Atualmente a equipe está realizando a revisão do Plano Diretor e diversos outros programas como a Regularização Fundiária, Aluguel Social, IPTU Progressivo, Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS), etc. Karime deixou como reflexão final a necessidade de fomentar a participação da população nas esferas de poder, como uma maneira de se contrapor às forças detentoras do Capital, que ocupam as esferas públicas em prol de interesses particulares. Mais uma vez fica claro que não há espaço vazio na política.

Carolina Israel, pesquisadora do Núcleo Curitiba. Crédito: Florebela Letícia.

A Mesa 1 se encerrou com a explanação de Carolina Israel que tratou do direito à cidade na era digital e destacou a cidade inteligente como fábula e como perversidade. Uma reflexão sobre o sistema técnico-geográfico e seus impactos na existência social com a produção de uma nova totalidade. O meio técnico científico informacional propôs uma nova forma de operar a informação através do meio geográfico. Nesse sentido, Carolina questiona o que significa o avanço da digitalização do espaço e qual projeto de sociedade carrega. Um convite para pensarmos os sentidos do direito à cidade na era digital.

A ideia de cidade inteligente se apresenta como fábula, pois nos faz acreditar que os problemas sociais podem ser solucionados apenas com a evolução da técnica. Trata-se de uma fábula, pois esconde que a principal função da técnica é o tecno-controle, reproduzindo as assimetrias de poder entre quem controla a tecnologia e para quem ela é destinada. A ideia de smart city propõe a digitalização do espaço urbano para o rastreamento digital que envolve diversas áreas. Este rastreamento digital compõe o Big Data e expressa a economia de rastreamento dos nossos dados, tanto para a exploração pública e quanto privada. As smart cities fazem uso destas plataformas sem qualquer discussão pública dos seus impactos na sociedade e sem questionar se os usuários querem aceitar tais prescrições, ou seja, não há escolha. O governo algoritmo reproduz os padrões e preconceitos de quem programa essas máquinas e opera através de parâmetros ocultos, por isto a sua perversidade. Ao final, com exemplos fortes para a reflexão, Carolina desmistificou os três mitos da smarts cities: o mito da objetividade, o mito da sustentabilidade e o mito da infalibilidade.

A Mesa 2 tratou das “Resistências e insurgências num mundo ultraliberal” e contou com a participação de Maria Tarcisa Silva Bega (coordenadora na mesa), Julian Pol (representante da Campanha Despejo Zero do Movimento Popular por Moradia) e Adriana Oliveira (representante do Projeto Marmita Solidária do MST). A mesa debateu de forma enfática as práticas de enfrentamento ao mundo ultraliberal, com exemplos de solidariedade e resistências, demonstrando a importância dos novos ativismos na contemporaneidade.

Adriana Oliveira mostrou um Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estruturado e renovado, sem perder de vista suas raízes anticapitalistas. Um movimento organizado e atuante que luta pela reforma agrária, trabalha na produção de alimentos e pratica justiça social. Em um breve resgate histórico, Adriana explicou que o MST teve origem em 1994 na cidade de Cascavel (berço do agronegócio e da grilagem de terra) e depois expandiu sua pauta para a luta pela “reforma agrária popular”, pois não basta apenas distribuir terra, é necessário dar condições para que o coletivo de trabalhadores permaneça no território com dignidade. Por outro lado, a reforma agrária só se viabiliza verdadeiramente se as famílias produzirem de maneira diferente ao agronegócio. A relação de exploração é substituída pelo profundo respeito ao ecossistema e a todas as formas de vida, entendendo que os assentamentos produzem alimentos ao invés de mercadoria. Este é o fio condutor que estrutura o projeto Marmitas da Terra.

No início da pandemia, momento de incerteza, as diretrizes do MST eram produzir alimentos, se alimentar bem para garantir a saúde do trabalhador e fazer pequenas doações para a população da cidade em estado de vulnerabilidade. As primeiras marmitas foram entregues na Comunidade 29 de Março e para população em situação de rua na Região Central de Curitiba. O projeto também é uma disputa ideológica, pois expressa a agroecologia e as relações de respeito com a natureza no conteúdo nutricional de cada marmita. Um trabalho que iniciou com a militância e hoje possui diversos voluntários. O MST entrega, além das marmitas, a oportunidade da comunidade se auto organizar e repensar os processos coletivos no território. A doação das refeições em um primeiro momento mata a fome, mas também cria vínculos com as comunidades e auxilia na organização coletiva do território, atuando na construção de hortas coletivas, na produção de panificação e de alimentos, por exemplo. Com isto, o Movimento espera que a comunidade não dependa de agentes externos e possa suprir coletivamente as necessidades básicas da população residente, a partir de suas potencialidades. Com dois anos de existência do Programa Marmitas da Terra, o MST transformou a solidariedade em uma tarefa política. O projeto está cada vez mais estruturado e foi subdividido em seis núcleos para auxiliar na organização das atividades (o núcleo da educação, núcleo da infraestrutura, núcleo de saúde, núcleo jurídico, núcleo de comunicação e o núcleo alimentar) e já distribuiu mais de 150 mil refeições, doou 7 mil toneladas de alimentos e trabalhou em diversas comunidades.

O líder do Movimento Popular por Moradia (MPM), Julian Pol, encerrou a discussão da mesa de forma provocativa e instigante, com a propriedade de que vivencia, no cotidiano, as adversidades de morar em uma ocupação em Curitiba. Ele iniciou sua fala questionando como atuar na resistência e sair do assistencialismo. “Não há como tratar de questões mais profundas se a pessoa não tem um chuveiro quente para tomar banho. É utópico falar em políticas e programas de governo para alguém com fome e que não tem o mínimo necessário para a sua sobrevivência”, pontuou. Julian também alertou para o processo reprodução do mercado informal nas ocupações e a valorização destes territórios que expulsa os novos moradores em um ciclo vicioso de violências e exclusões. E exemplificou como este processo ocorreu em Curitiba com os moradores das ocupações de Tiradentes, Primavera, 29 de março e Dona Cida, frutos deste processo. Esta situação delicada demonstra a necessidade de organização dos movimentos de base para conseguir garantir os direitos da população em meio aos diversos interesses escusos como a milícia, o crime organizado e os loteadores clandestinos.

Julian reforçou a importância da ação do MST no território após um incêndio criminoso na comunidade Tiradentes. Com o incêndio, algumas famílias migraram para a ocupação 29 de março em Campo Magro (Região Metropolitana de Curitiba) em uma área abandonada há mais de 10 anos. Com um trabalho de base, MPM e MST conseguiram construir de forma coletiva duas salas de aula, biblioteca, espaço cultural, padaria, fossa ecológica. A estruturação da comunidade fez com que se tornasse um caso atípico de estetização da favela. Apesar de ser uma ocupação foram construídos tantos espaços comunitários que despertou a curiosidade de representantes de outras instituições, mas as famílias que ali residem são as mesmas de outras comunidades. O que mudou foi o acolhimento e o trabalho conjunto organizado pela resistência. Julian finalizou sua participação falando sobre falta de amparo dos movimentos sociais no Brasil, e a dificuldade de manter o movimento ativo após uma ocupação, pois, de certa forma, a pauta prioritária (moradia, mas, neste caso, significa um teto para morar) havia sido alcançada. Em sua experiência, ele destacou a importância de se pensar os espaços comunitários desde o início, pois eles unem as pessoas e mantem a engrenagem funcionado, não permitindo que a população se desmobilize.

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¹ Pesquisadoras do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.