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No dia 2 de outubro de 2022, aproximadamente um quarto de todo o eleitorado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) votará em áreas dominadas por algum grupo armado, sendo 14,8% apenas em áreas controladas pela milícia. Não é novidade a presença eleitoral de candidatos relacionados à milícia, porém essa lógica de controle territorializado das disputas eleitorais tem se expandido para outros municípios da região metropolitana.

Com o objetivo de analisar a atuação de grupos milicianos na produção da cidade do Rio de Janeiro, pesquisadores do Observatório das Metrópoles, com apoio da Ford Foudantion, produziram o relatório “Ilegalismos e a Cidade: controle territorial do voto e da produção imobiliária por milícias“. Na pesquisa, investigaram dois aspectos: a relação entre milícias e voto no controle territorial; e a atuação dos grupos milicianos na produção imobiliária.

Sobre o primeiro ponto, através de mapas os autores verificaram se, nos locais com comprovado controle territorial por tráfico ou milícia, há um padrão de voto mais concentrado em relação às demais áreas da cidade, indicando o controle do território por uma determinada liderança. Já sobre o segundo, foram analisados os casos denunciados pela imprensa e por outras fontes, a partir de três tipologias: i) controle e intermediação do acesso à terra urbana; ii) a produção habitacional própria; e iii) o controle da produção habitacional promovida pelo poder público.

Relatório Ilegalismos e a Cidade: controle territorial do voto e da produção imobiliária por milícias

Em permanente transformação, tudo indica que a atuação das milícias esteja sofrendo algumas reconfigurações em relação ao período estudado por Cano e Duarte (2012). As milícias parecem ter ingressado em uma nova fase de controle ostensivo dos territórios, investindo, inclusive, em sua expansão para novas áreas da cidade e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, tradicionalmente dominadas pelo tráfico. Os estudos e as reportagens publicados nos últimos anos mostram que os grupos milicianos vêm investindo mais em algumas frentes de exploração econômica antes não tão exploradas, desenvolvendo, assim, um novo modelo de negócios – provavelmente em resposta à repressão vivida nos anos seguintes à CPI das milícias, em 2008. Dentre elas, a produção e a exploração do mercado imobiliário e dos serviços urbanos parecem conformar-se como um elemento central no novo modelo de negócios dos grupos paramilitares, como fica bastante evidenciado no estudo de Manso (2020), sobre as origens e as reconfigurações das milícias no Rio de Janeiro. O modelo econômico das milícias encontra sustentação tanto no controle armado dos territórios como na articulação com o sistema institucional político, no qual lideranças vinculadas ou apoiada por grupo milicianos buscam se eleger e serem reconhecidos como representantes na intermediação de interesses das comunidades junto ao poder executivo.

Apesar das mudanças na sua configuração desde a sua origem nos anos 1950 (SOUZA ALVES, 2003; MISSE, 2011; MANSO, 2020) e da imprecisão do significado atribuído ao termo milícia, no caso do Brasil, e especificamente do Rio de Janeiro, pode-se adotar a definição proposta por Cano (2008, p. 59), que compreende a milícia como um conjunto simultâneo de práticas que envolve:

  1. O controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular.
  2. O caráter, em alguma medida, coativo desse controle do território, sofrido pelos moradores.
  3. O ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos.
  4. Um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta.
  5. A participação ativa e reconhecida de agentes do Estado como integrantes dos grupos.

Em outras palavras, podemos dizer que as milícias são grupos armados compostos por agentes de segurança do Estado, ativos ou aposentados (como policiais, bombeiros e agentes penitenciários), além de políticos e civis. Elas exercem o poder e o controle territorial sobre comunidades por meio da coação, física ou psicológica, e do medo, mas também pela adesão e legitimação obtida no território. Além disso, exploram serviços que deveriam ser exercidos pelo poder público ou pelo mercado, tais como segurança, fornecimento de gás, internet, TV, iluminação, produção imobiliária, transporte etc. Em geral, a atuação das milícias na produção da cidade e no controle dos territórios populares tem, portanto, forte impacto sobre as possibilidades de exercício da cidadania e do direito à cidade.

Este relatório se debruça sobre a atuação de grupos milicianos na produção da cidade do Rio de Janeiro, a partir de dois aspectos: (i) a relação entre milícias e voto no controle territorial; e (ii) a atuação dos grupos milicianos na produção imobiliária.

Grupos armados, milícia e voto no Rio de Janeiro

Ao combinarmos os dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro (GENI/UFF; FOGO CRUZADO, 2022) e as informações disponibilizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral encontramos que, no pleito eleitoral de 2020, 2.354.338 eleitores aptos a votar residiam em áreas controladas pela milícia ou pelas facções do tráfico de drogas, o que correspondia a 20,8% de todo o eleitorado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ).

Para as eleições de 2022, os dados do TSE informam que 13,1% dos locais de votação da RMRJ estão localizados em territórios controlados pela milícia; e, outros 9,6%, em territórios dominados pelo tráfico de drogas. Portanto, somando todos os locais, 22,7% estão localizados em áreas sob controle armado. A previsão é que no dia 2 de outubro de 2022 aproximadamente um quarto de todo o eleitorado da RMRJ vote em áreas dominadas por algum grupo armado, sendo 14,8% apenas em áreas controladas pela milícia. Em comparação com 2012, o número total de eleitores cadastrados para votar em locais situados em áreas controladas aumentou 29,3%. Apenas em áreas controladas pela milícia, nesses 10 anos, o aumento foi de 41,5%.

A presença eleitoral de candidatos relacionados à milícia não é novidade, desde a eleição de Jerominho para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, em 2000. Sendo uma das lideranças do grupo miliciano autodenominado Liga da Justiça, chegou a ser reeleito em 2004, além de ter influenciado a eleição de um irmão como deputado estadual em 2006, e de sua filha como vereadora em 2009. Depois das ações da Draco, em decorrência das denúncias feitas na CPI das Milícias, em 2008, as estratégias eleitorais do grupo seguem sendo frustradas. O assassinato desse personagem em 2022, após manifestações de sua intenção em concorrer ao cargo de deputado federal, apontam para o enfraquecimento do grupo. Contudo, a própria tentativa de retorno à disputa eleitoral reforça os indícios apresentados aqui de que essa lógica tem mantido sua importância.

A novidade deste fenômeno eleitoral é o fato de que essa lógica de controle territorializado das disputas eleitorais tem se expandido para outros municípios da região metropolitana, nos mesmos padrões elevados de concentração antes vistos na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Além disso, como mencionado pelo relatório do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, há uma maior atuação de grupos milicianos na parte Oeste da RMRJ, em comparação com maior atuação das facções do tráfico de drogas na parte Leste. De certa forma, podemos perceber que as concentrações eleitorais (ver pontos destacados nas Figuras 1, 2 e 3)¹ também acompanham este comportamento, estando mais nítidas nos locais de votação da parte Oeste e em áreas da Baixada Fluminense, o que demonstra que a forte presença da atividade miliciana nos municípios da parte oeste da região metropolitana tem se utilizado da mesma estratégia eleitoral de fechamento da competição com candidaturas próprias ou de candidatos apoiados.

Os mapas procuraram verificar se, nos locais com comprovado controle territorial por tráfico ou milícia, há um padrão de voto mais concentrado em relação às demais áreas da cidade, indicando o controle do território por uma determinada liderança, expressa no índice HH (Índice Herfindahl-Hirschman). Utilizado na análise de votos, o índice HH por ser interpretado para avaliar o grau de concorrência ou de concentração de votos nos locais de votação. Variando de 0 a 1, os valores mais próximos de 0 indicam um número maior de candidatos capturando os votos dos eleitores (padrão de voto competitivo) e quanto mais próximos a 1 indicam que há poucos candidatos capturando os votos dados (no padrão de voto concentrado).

É difícil distinguir o fenômeno do clientelismo eleitoral do controle do voto miliciano. Ambos se expressam na tentativa do monopólio da representação e da intermediação de interesses por meio da troca de favores e do acesso a bens e serviços de natureza pública ou privada. Desta forma, se busca obter o maior número de votos em um determinado território, o que se expressa em um padrão de votação concentrado territorialmente em oposição ao padrão de votos dos demais candidatos, que tendem a se dispersar em diversos territórios de forma mais competitiva. No entanto, no caso das milícias, o acesso aos territórios dominados se torna mais difícil porque é mediado por uma força armada e seu poder de coação.

Para entender as estratégias de controle do voto, é importante destacar que cada cargo tem uma dinâmica de competição própria. Quanto maior o número de vagas disputadas nos espaços legislativos institucionais, maior será a tendência de localismo na disputa eleitoral. No caso das disputas para deputado estadual e federal, as dinâmicas de competição tendem a ser similares pela regra da proporcionalidade tendo o estado como distrito eleitoral; mas, ainda assim, há diferenças, pois, o quociente eleitoral é maior na competição para deputado federal do que para deputado estadual. Isso ocorre devido à diferença no número de vagas disponíveis. Enquanto os candidatos à representação na Câmara dos Deputados concorrem para 46 vagas, os candidatos a uma cadeira na ALERJ concorrem a 70 vagas. Isso faz com que a competição para deputado estadual possa ser mais localizada, enquanto a competição para deputado federal tende a ser mais abrangente. Quando consideramos a competição para as Câmaras de Vereadores, onde a competição é restrita aos limites do município, a estratégia de controle territorial se coloca de maneira ainda mais evidente.

Além disso, no caso das análises das votações para deputado estadual e federal, em determinadas circunstâncias, os locais de votação de municípios do entorno metropolitano podem apresentar elevada concentração de votos. Isso ocorre quando há candidaturas muito alinhadas com a dinâmica política municipal, como sugerem ser os casos de Maricá, Rio Bonito, Tanguá, Guapimirim, Magé, Petrópolis, e Paracambi na eleição para deputado estadual em 2018.

Nas eleições para deputado federal, os dados sugerem que a conexão entre território e a dinâmica eleitoral municipal foi menor, e pode ser apenas evidenciada em algumas situações, como nos casos de Maricá e Belford Roxo. Os demais municípios apresentaram uma distribuição menos homogênea do grau de concentração da competição eleitoral.

Sendo assim, apesar das características dispersivas do nosso sistema eleitoral, a utilização de metodologias de análise do grau de concentração da disputa eleitoral nos locais de votação, pode evidenciar os territórios caracterizados pelo estreitamento desta disputa, ou seja, onde ocorre uma significativa captura de votos por determinados candidatos.

Apesar das mudanças recentes nos grupos milicianos, no caso da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro podemos citar o exemplo de um candidato sargento da PMERJ, que foi citado na CPI das Milícias². O candidato, que não chegou a se eleger em 2018, foi o mais votado em quase todos os locais de votação do Bairro de Cosmos, na Zona Oeste, assim como em alguns locais próximos em bairros vizinhos, como Paciência e Inhoaíba. No CIEP Claudio Manoel da Costa, o candidato chegou a obter 36,5% dos votos do local.

Ao contrário, na Região Metropolitana, mais especificamente nos municípios do Oeste Metropolitano, percebemos uma compatibilidade entre a expansão dos grupos milicianos e as estratégias de concentração eleitoral antes bastante evidentes na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Esse comportamento é mais evidente nos bairros de Cabuçu, Valverde e Palhada, todos em Nova Iguaçu. Nesses locais, destaca-se inclusive a recente disputa entre herdeiros do Bonde do Ecko com o grupo capitaneado por Tandera. No Bairro Cabuçu, temos o exemplo de um candidato³ que chegou a ter 46% dos votos do CIEP 075 – Jardim Cabuçu, e domina os locais de votação de Cabuçu e alguns de Valverde. No Bairro de Palhada, chama atenção o fato de um único candidato ter obtido 77% dos votos do CIEP 387 – Hans Chistian Andersen.

Portanto, tudo indica haver uma estratégia eleitoral que pode variar no tempo a depender do cargo em disputa, mas são fortes os indícios de que os grupos milicianos atuam indicando diretamente nomes ligados ao grupo ou favorecendo determinados políticos que gozam do acesso privilegiado a essas comunidades, com a garantia de que não ameacem o funcionamento do seu modelo de negócios.

No caso das eleições para presidente, em 2018, os dados revelam que o presidente Bolsonaro teve mais votos nas áreas controladas pela milícia do que nas áreas não dominadas. No mapa (Figura 4), os pontos representam cada um do 3047 locais de votação da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) e os polígonos azuis representam as áreas controladas pela milícia e suas vizinhanças imediatas (área de 500 metros em torno dos polígonos mapeados pelo GENI/FOGO CRUZADO), o que pode ser interpretado como área de influência do grupo armado, considerando-se que muitos locais de votação se encontram em grandes vias fora dos limites das comunidades sob o controle, mas que podem ser interpretadas como área de influência do grupo que domina o território.

Em 2018, 32,5% dos locais de votação estavam localizados nessas áreas, portanto, dentro ou muito próximos a áreas controladas pela milícia. Nesses locais, estavam aptos a votar, 34,1% de todo o eleitorado da RMRJ. A votação de Bolsonaro no primeiro turno nos locais de votação varia entre 24,2%, obtidos na Escola Municipal Boa Sorte, em Cachoeiras de Macacu, e 86,6% obtidos na Escola Municipal Rosa da Fonseca, na Vila Militar, bairro do município do Rio de Janeiro. Na capital, o local de menor votação desse candidato foi registrado em um local situado no bairro da Gávea (32,5%). Em média, Bolsonaro conquistou 59,6% dos votos válidos na RMRJ e em metade dos locais sua votação foi superior 61,1%.

No mapa da votação de Bolsonaro chama a atenção um padrão espacial geral caracterizado pela divisão entre as áreas onde o candidato obteve mais de 50% do votos e aquelas onde o percentual foi menor. Há, nesse padrão, uma divisão clara entre as áreas da Zona Sul do Rio de Janeiro e Tijuca e as Zona Oeste da capital e municípios da Baixada Fluminense.

Percebe-se que há uma maior convergência entre os locais onde Bolsonaro obteve percentual maior de votação com as áreas controladas pela milícia em comparação com a localização dos locais com menor votação.

Vejamos que essa convergência não se traduz em grandes diferenças entre o percentual médio de votação em áreas controladas e áreas não controladas. Nos locais situados em áreas controladas e em suas vizinhanças imediatas, o percentual médio de votos válidos em Bolsonaro foi 62,2%; nas demais áreas, o percentual foi de 58,3%. No entanto, quando recortamos os votos nessas áreas por município, encontramos percentuais acima da média em Itaguaí, Seropédica, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti. Em Itaguaí, o percentual médio de votos em Bolsonaro nas áreas de milícia ou vizinhança imediata chegou a 67,1%. No caso do município do Rio de Janeiro, embora o percentual de votos nas áreas de milícia e vizinhança esteja um pouco abaixo da média da RMRJ, a diferença em relação às áreas não dominadas chama a atenção: 61,9% x 55,1%. A alta votação de Bolsonaro na RMRJ como um todo se reflete nos resultados do seu principal adversário, Fernando Haddad. Em toda a RMRJ, seu percentual de votos válidos foi de 14,2%, com maior peso em áreas não controladas pela milícia, onde foi de 15,1%, contra 13% nas áreas controladas ou em suas vizinhanças imediatas.

Figura 4 – Votação de Jair Bolsonaro, primeiro turno de 2018, por local de votação, RMRJ, 2018. Fonte: TSE, elaborado pelo Observatório das Metrópoles, 2022. Versão interativa deste mapa está disponível em: https://rpubs.com/jucirodrigz/rmrj_presid

Grupos milicianos e a produção imobiliária na cidade do Rio de Janeiro

A atuação da milícia na produção imobiliária não é nova. O primeiro artigo do jornal O Globo sobre isso data de 2006⁴. Entretanto, essa produção se intensificou e se diversificou ao longo dos anos, conforme dito anteriormente. A partir de casos denunciados pela imprensa e por outras fontes, buscou-se ilustrar essa diversidade, organizada aqui em três tipologias, descritas a seguir:

(a) Controle e intermediação do acesso à terra urbana. Essa prática é expressa no controle do acesso à terra urbana envolvendo diversas práticas, dentre as quais se situa a apropriação de terras públicas ou a permissão para ocupação de áreas vazias, públicas ou privadas.

Uma denúncia publicada em agosto de 2021 pelo portal G1/ O Globo ilustra bem esta prática promovida pelas milícias. Segundo a reportagem, terrenos situados em áreas de preservação ambiental, em Guaratiba, Zona Oeste do Rio, estariam dominados por milicianos, que promovem a venda direta dos terrenos ou cobram percentuais nas negociações de terra, conformando um grande negócio na área do manguezal⁵.

Além desta denúncia, o relatório do Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, publicado em outubro de 2020 e intitulado “As Milícias e a Exploração de Terras na Região do Mendanha: estudo de caso”, identificou quatro condomínios ilegais sendo erguidos no bairro de Campo Grande, na área do Parque Estadual do Mendanha, controlados por milicianos. Focando no bairro de Campo Grande e utilizando dados do serviço Disque Denúncia, o relatório evidencia que “grupos milicianos já atuavam no mercado imobiliário desde pelo menos 2007, segundo denúncias da população. O ano de 2015 registrou um pico no volume de denúncias, e nos dois últimos anos também houve um aumento no número de denúncias” (CENPE 2020, p.12). Explorando imagens de satélite, o relatório também evidencia “o desmatamento da vegetação local e demonstra que novos empreendimentos imobiliários estão em curso na região, possivelmente relacionados à ação dos milicianos” (CENPE, 2020, p. 120).

(b) A produção habitacional própria. Essa segunda modalidade expressa a produção direta de unidades habitacionais, sejam elas produzidas de forma legal ou não, quando realizadas por grupos milicianos.

No dia 12 de abril de 2019 ocorreu o desabamento de dois prédios, no bairro Muzema, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, deixando 24 pessoas mortas⁶. As investigações logo revelaram que as construções eram realizadas sob o comando de grupos milicianos que controlam a região, ilegais e em área de preservação ambiental⁷. Essa tragédia expôs mais esta modalidade de atuação da milícia, que também se verifica em outras áreas da cidade e da Região Metropolitana, evidenciando a ampliação do seu modelo de negócios. Depois desse, outros casos vieram à tona pela imprensa, ilustrados pelas denúncias destacadas a seguir:

Em agosto de 2021, o portal G1/O Globo denunciava a construção do condomínio habitacional Novo Itanhangá em Área de Proteção Ambiental, com o aterramento de parte da Lagoa de Jacarepaguá, nas proximidades do bairro da Muzema (Zono Oeste do Rio), como forma de viabilizar as construções irregulares⁸.

Em outubro de 2021, reportagem do jornal O Dia informava a demolição de dois condomínios construídos por grupos milicianos no Parque Estadual da Pedra Branca, em Senador Camará, na Zona Oeste do Rio. A demolição foi efetivada por ação do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco/FT-OIS), em colaboração com a Coordenadoria de Defesa Ambiental da Prefeitura do Rio, após ação do Ministério Público. Apesar de, nesse caso, a ação repressiva ter sido bem-sucedida, chama a atenção o fato de os grupos milicianos terem conseguido erguer os condomínios, estando um deles embaixo de uma torre de transmissão, conforme denunciava a reportagem⁹.

(c) O controle da produção habitacional promovida pelo poder público. Nessa modalidade, os grupos milicianos exercem o domínio sobre os conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado, notadamente o controle sobre os conjuntos produzidos no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida – MCMV ou dos atuais Programas Casa Verde e Amarela, do governo federal. Levantamento realizado pelos autores em jornais eletrônicos disponíveis na internet revela denúncias em 67 dos 106 empreendimentos do Programa MCMV, faixa 1, destinado à população de mais baixa renda, sendo 45 denúncias envolvendo as milícias e 22 envolvendo grupos do tráfico de drogas, considerando-se o período de 2015 a 2022 (ver a lista completa dos empreendimentos e as fontes de denúncias no anexo do relatório).

Como muitos empreendimentos compreendem conjuntos habitacionais construídos um ao lado do outro, apenas mudando os nomes em razão do contrato, fizemos o agrupamento por endereço, a fim de identificar o volume dos conjuntos denunciados pelo controle por grupos armados. Agrupando-se os empreendimentos controlados por grupos armados, por endereço, identifica-se 37 conjuntos do Programa MCMV faixa 1 no município do Rio de Janeiro, sendo que se constatou denúncias vinculadas às milícias em 19 (52%) conjuntos MCMV e vinculadas a grupos do tráfico em seis conjuntos (16%), o que revela que apenas em 12 conjuntos não ocorreram denúncias veiculadas pela imprensa. A maioria dos conjuntos com denúncias de controle pela milícia está situada na AP5, com algumas ocorrências também na AP4. Mas vale destacar que não foram identificadas denúncias de controle por grupos milicianos em conjuntos do MCMV nas APs 1, 2 e 3 (Figura 5).

Como fica evidenciado na figura, os conjuntos habitacionais do Programa MCMV dominados pelos grupos armados segue a lógica do controle territorial. Em outras palavras, um conjunto situado em um território controlado por um determinado grupo armado tem uma forte tendência de ser controlado por este mesmo grupo, tendo sua gestão e seus serviços subordinado ao controle do grupo armado.

A Figura 5 revela que a maior parte dos conjuntos do Programa MCMV Faixa 1 foi construída em territórios dominados pelas milícias, o que explica o seu controle sobre a maior parte dos conjuntos habitacionais construídos.

Figura 5 – Conjuntos MCMV com denúncias de controle por grupo armado por território dominado por grupo faccional – Rio de Janeiro, RJ, 2022. Fonte: Mapa Faccional – GENI/UFF, Fogo Cruzado, 2022; Denúncias de controle sobre os conjuntos MCMV – informações da imprensa levantadas pelo Observatório das Metrópoles (2015-2022).

As denúncias revelam a extensão do controle exercido pelos grupos milicianos nesses conjuntos habitacionais, envolvendo a cobrança de taxas pela segurança, venda de cestas básicas por valores muito acima do mercado, oferta de serviços de internet, TV a cabo e de gás, controle dos serviços de vans e mototáxis, com a ameaça e expulsão dos moradores que não concordassem em efetuar os pagamentos cobrados.

São muitos os exemplos de reportagens retratando essas denúncias, como o controle e a expulsão de famílias do conjunto Residencial Haroldo de Andrade, em Barros Filho, Zona Norte¹⁰, e do Condomínio da Estrada dos Caboclos, em Campo Grande¹¹, além da venda ilegal de imóveis no condomínio do MCMV da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá¹².

As denúncias também envolvem empreendimentos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, como, por exemplo, o controle dos serviços de transporte nos condomínios do Programa Casa Verde e Amarela, em Nova Iguaçu¹³, e a exploração de serviços de segurança, sinais de TV a cabo clandestinos e serviços de internet da empresa I.B.I. Banda Larga nos conjuntos residenciais Bolzano, Pádua, Parma, Rotonda e Volterra, que ficam na Estrada Calundu, no bairro Nossa Senhora do Carmo, em Caxias, onde moram cerca de 8 mil pessoas¹⁴.

Considerações finais

Com base nestes dois aspectos, pretende-se argumentar que as milícias e suas práticas de controle territorial por meio da coação física ou psicológica, mas também pela adesão e legitimação de parte da população, impedem o surgimento de sujeitos coletivos com a capacidade de conquistar o direito à cidade e exercerem seus direitos de cidadania.

O fenômeno das milícias gera inúmeros paradoxos que precisam ser aprofundados. Por exemplo, a conquista do acesso à moradia, promovida pelo Programa MCMV, é acompanhada, paradoxalmente, pela despossessão do direito à cidade, na medida em que os moradores passam a viver sob a tirania e o controle armado das milícias.

Assim, na perspectiva propositiva e levando em consideração os aspectos abordados neste artigo, terminamos fazendo alguns breves apontamentos para o enfrentamento das milícias e de seu controle sobre os territórios populares, tendo como referência o direito à cidade:

  1. Torna-se necessário a adoção de estruturas de cogestão público-comunitária para uma gestão territorial democrática, desmercantilizada e desmilitarizada que se contraponha ao controle das milícias sobre os territórios populares.
  2. Implantação de programas de provisão pública dos serviços urbanos nos conjuntos Minha Casa Minha Vida, como gás, creche, educação, mobilidade, etc., de forma a enfrentar o modelo de negócios dos grupos milicianos.
  3. Definição dos condomínios do MCMV como AEIS, visando uma intervenção pública de requalificação urbanística da área do seu entorno.
  4. Requalificação do sistema viário, ligando os conjuntos do MCMV com as centralidades próximas, agregando ciclovias e garantindo o transporte público, de forma a tirar o controle dos serviços de mobilidade dos grupos milicianos.
  5. Criação de mecanismos de fiscalização sobre os processos de apropriação privada de terrenos públicos e sobre as construções irregulares em áreas de proteção ambiental em áreas controladas por milícias. Isso também requer criar condições de segurança para a atuação da fiscalização urbanística que é realizada pelo município.
  6. Desmilitarização das políticas de segurança pública, com o fim das operações militares em favelas. É preciso reconstruir o tecido associativo dos territórios populares a partir de políticas de segurança pública não militarizadas, não discriminatórias e baseadas na garantia dos direitos humanos, liberando as populações do domínio de grupos violentos, seja associado ao tráfico de drogas, seja de grupos milicianos. O fortalecimento do tecido associativo é um pressuposto para o exercício da autonomia política e para a representação legítima da população junto ao poder público, e uma condição fundamental para a implementação de políticas de desenvolvimento urbano mais sustentáveis e inclusivas.

Acesse o relatório completo, CLIQUE AQUI.

¹ A leitura de seus resultados é feita de forma simples: quanto maior for o HH, mais elevada é a concentração, portanto, menor a concorrência entre os produtores. Utilizado na análise de votos, o índice HH por ser interpretado para avaliar o grau de concorrência ou de concentração de votos nos locais de votação. O índice é calculado a partir da soma dos quadrados das quotas de mercado (market share). No nosso caso, as quotas se referem ao percentual de votos que cada candidato obteve no local de votação. Os índices podem variar de 0 a 1, com valores mais próximos a 0 indicando um número maior de agentes (mercado competitivo) e, quanto mais próximos a 1, indicando que há um mercado dominado por poucos agentes.

² O candidato chegou a ser preso em 2011 por suspeitas relacionadas à atividade miciliana na Zona Oeste. Cf. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2607201113.htm

³ Cf. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/11/06/policia-civil-faz-operacao-contra-a-milicia.ghtml, acessado em julho de 2022.

⁴ Cf. Acervo O Globo. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com. Acessado em setembro de 2022.

⁵ Cf. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/08/16/milicianos-constroem-casas-em-area-de-preservacao-ambiental-em-guaratiba.ghtml, publicado em 16/08/2021 pelo portal G1-O Globo. Acessado em julho de 2022.

⁶ Cf. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/12/imovel-desaba-na-zona-oeste-do-rio.ghtml, acessado em julho de 2022.

⁷ Cf. https://www.bbc.com/portuguese/geral-47899484, acessado em julho de 2022.

⁸ Cf. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/08/31/milicia-aterra-trecho-da-lagoa-de-jacarepagua-para-construir-imoveis-irregulares-veja-imagens.ghtml, acessado em julho de 2022.

⁹ Cf. https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2021/10/6260369-condominios-erguidos-pela-milicia-sao-demolidos-no-parque-estadual-da-pedra-branca.html, acessado em julho de 2022.

¹⁰ Cf. Jornal Extra, publicado em 29/01/17, https://extra.globo.com/casos-de-policia/familias-expulsas-de-condominio-do-minha-casa-minha-vida-por-traficantes-ganham-novos-apartamentos-20840538.html

¹¹ Cf. Jornal G1/O Globo, em 07/04/2014, https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/04/expulsos-por-milicia-do-minha-casa-minha-vida-denunciam-assassinatos.html

¹² Cf. Agência Brasil, em 12/02/2019, https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-02/policia-apura-ocupacao-ilegal-de-imoveis-do-minha-casa-minha-vida

¹³ Cf. Jornal G1, em 11/08/2021, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/08/11/moradores-denunciam-extorsao-de-condominios-do-antigo-minha-casa-minha-vida-por-milicianos-em-nova-iguacu.ghtml

¹⁴ Cf. Jornal Extra, em 17/08/21, https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacao-da-policia-civil-mira-pms-chefes-de-milicia-que-atua-em-condominios-do-minha-casa-minha-vida-em-caxias-25158374.html

REFERÊNCIAS

CANO, Ignacio; DUARTE, Thais. No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012.

CANO, Ignácio. Seis por meia dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas ‘milícias’ no Rio de Janeiro, In: JUSTIÇA GLOBAL. Segurança, tráfico e milícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008.

CENPE – Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. As  Milícias e a Exploração de Terras na Região do Mendanha: estudo de caso. Rio de Janeiro, CENPE, outubro de 2020.

MANSO, Bruno Paes. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.

MISSE, M. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, p. 13–25, out. 2011.

SOUZA ALVES, J. C. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. [s.l.] APPH, 2003.