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Bairro Caximba. Foto: Daniel Castellano (Prefeitura de Curitiba).

Marcelo Nogueira de Souza¹

Compreender os impactos da desigualdade gerada pela segregação socioespacial em Curitiba é um dos objetivos do grupo de pesquisa “Políticas sociais: análise comparada das experiências brasileiras”, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A análise que segue apresenta um recorte de nossas pesquisas com foco nas possíveis estratégias de enfrentamento da COVID-19 – como a adoção do Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde (IVAB) para o remanejamento de profissionais do Programa Saúde da Família (PSF) – adotadas pela Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba e seus impactos na população dos bairros periféricos aqui analisados (Sítio Cercado, Campo de Santana, Umbará, Tatuquara e Caximba).

Em 19 de março de 2020, em coletiva de imprensa sobre o enfrentamento da pandemia de COVID-19², o então ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, destacou a importância da atenção básica em saúde, considerada a porta de entrada do SUS, para evitar que as transmissões se alastrem, especialmente em comunidades mais pobres, e para que os hospitais não entrem em colapso devido à pandemia do novo coronavírus. Durante a entrevista, o ex-ministro ainda destacou que os agentes e os médicos de saúde da família eram fundamentais no enfrentamento à COVID-19.

O Programa Saúde da Família (PSF), considerado fundamental no enfrentamento da pandemia de COVID-19, teve início em 1991 com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) que tinha o objetivo de contribuir para a redução da mortalidade infantil e materna, com foco nas regiões Norte e Nordeste, e com o objetivo de ampliar a cobertura dos serviços de saúde para áreas mais pobres e desvalidas. Ou seja, a gênese do Programa Saúde da Família (PSF) se insere, também, no contexto de estudos e pesquisas que associam a organização social do território às inúmeras formas de desigualdade. De acordo com Rosa e Labate (2005), trata-se de uma estratégia que possibilita a integração e promove a organização das atividades em um território definido com o propósito de enfrentar e resolver os problemas identificados.

Em 2008, através da Portaria 154, foram implantados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs), com o objetivo de atuar e reforçar 9 diretrizes na atenção à saúde: a interdisciplinaridade, a intersetorialidade, a educação popular, o território, a integralidade, o controle social, a educação permanente em saúde, a promoção da saúde e a humanização (BRASIL, 2009, grifos nossos).

Curitiba aderiu ao PSF em 1995, em sintonia com a regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS). Existem, até o momento, dois modelos de US na Atenção Primária em Saúde (APS) em Curitiba. Um se refere ao das unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF), e o outro, ao modelo tradicional de Unidade Básica de Saúde (UBS. Ambos possuem equipes multidisciplinares, mas diferem na organização do atendimento, no perfil das equipes e na distribuição territorial. No modelo tradicional, os médicos da UBS atendem a população por segmentos, de acordo com sua especialidade, em pediatria, clínica médica e obstetrícia e ginecologia. Nas unidades da ESF, os médicos são especialistas na saúde da família e comunitária, trabalham em tempo integral, atendem as pessoas em todas as fases do seu ciclo de vida e conhecem as famílias da sua comunidade.

De acordo com o site da Secretaria Municipal de Saúde³, a Rede Municipal de Saúde conta, atualmente, com 111 Unidades Básicas de Saúde, sendo sessenta e sete UBS com Estratégia de Saúde da Família e quarenta e quatro UBS tradicional, nove Unidades de Pronto Atendimento, treze Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cinco unidades especializadas/especialidades médicas, três Centros de Especialidades Odontológicas, dois Hospitais, um Laboratório de Análises Clínicas, uma Central de Vacinas, cinco Residências Terapêuticas, um Centro de Zoonoses e sessenta e oito Espaços Saúde. Estes equipamentos municipais de saúde de Curitiba estão distribuídos, ainda, de acordo com dez distritos sanitários: Matriz, Boa Vista, Santa Felicidade, Portão, Cajuru, Boqueirão, Pinheirinho, CIC, Bairro Novo e Tatuquara. Importante destacar que, desde julho de 2018, a Secretaria Municipal da Saúde deu início a um processo de readequação da distribuição de profissionais na rede de atenção básica com o alegado objetivo de corrigir distorções, priorizando as comunidades mais carentes e com maior necessidade de serviços da área.

Para tanto, a Secretaria conduziu um amplo estudo com base no Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde (IVAB) elaborado de acordo com o Índice de Vulnerabilidade das Famílias do Paraná (IVF-PR) do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) e da população do Censo do IBGE – 2010 por área de abrangência utilizando os dados do cadastro único do Governo Federal. Desde então, o IVAB é utilizado como estratégia para promoção da equidade no Sistema Único de Saúde em Curitiba, definindo a distribuição dos recursos do SUS Curitiba e norteando as ações de saúde no município.

De acordo com o Decreto nº 638, de 21 de junho de 2018, que institui o Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde (IVAB) na Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba, o IVAB é calculado pela média aritmética entre os índices de quatro dimensões: adequação do domicílio, perfil e composição familiar, acesso ao trabalho e renda, condições de escolaridade. A partir do IVAB, as Unidades Municipais de Saúde são ranqueadas sob a lógica de intervalos regulares com base no conjunto de dados ordenados de forma crescente, e divididas em três grupos a partir do cálculo dos tercis. As Unidades Municipais de Saúde localizadas no tercil 1 são denominadas como de baixa vulnerabilidade (unidades de saúde com percentagem menor que 3,91%), no tercil 2 como de média vulnerabilidade (unidades de saúde com percentagem maior ou igual a 3,91% e menor que 7,80%) e no tercil 3 como de alta vulnerabilidade (unidades de saúde com percentagem maior ou igual 7,80% até o limite superior, que pode atingir 100%).

A Figura 1, abaixo, apresenta o mapa com a distribuição das unidades de saúde de acordo com o Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde (IVAB).

Figura 1: Distribuição das unidades de saúde de acordo com o Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde (IVAB). Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba.

Como se pode notar, todos os bairros da região periférica de Curitiba, analisados no presente estudo (Sítio Cercado, Campo de Santana, Umbará, Tatuquara e Caximba), estão localizados em áreas consideradas de alto risco. Para uma melhor análise, a Tabela 1, abaixo, relaciona todas as unidades básicas de saúde dos bairros analisados.

Tabela 1: IVAB por Unidade Básica de Saúde dos bairros periféricos de Curitiba. Fonte: Prefeitura Municipal de Curitiba. Secretaria Municipal de Saúde. Ofício n. 642/2018. Dados trabalhados pelo autor.

Como se pode notar, 12 das 18 unidades básicas de saúde, apresentam IVAB indicador de alta vulnerabilidade (com percentagem maior ou igual 7,80%), o que representa 66,6% de todas as unidades analisadas. Chama a atenção o IVAB da Unidade Básica de Saúde Caximba, que é a única unidade do bairro e possui o maior IVAB de todas as Unidades Básicas do município, 77,795, índice muito superior às demais.

A título de comparação, a Tabela 2 apresenta as 10 unidades básicas de saúde com os menores índices de vulnerabilidade, de acordo com o IVAB.

Tabela 2: IVAB por Unidade Básica de Saúde dos bairros da região central de Curitiba. Fonte: Prefeitura Municipal de Curitiba. Secretaria Municipal de Saúde. Ofício n. 642/2018. Dados trabalhados pelo autor.

Todas as unidades de saúde melhor avaliadas pelo IVAB se encontram nos bairros da região central, todas com baixa vulnerabilidade (unidades de saúde com percentagem menor que 3,91%).

De acordo com o site de notícias da Prefeitura Municipal de Curitiba⁴, no momento de implementação do IVAB, Curitiba contava com nove unidades de saúde com baixo IVAB (baixa vulnerabilidade) e mesmo assim trabalhava com estratégia saúde da família: Mãe Curitibana, Ouvidor Pardinho, Bom Pastor, Camargo, Parigot de Souza, Campo Alegre, São Paulo, Pinheiros e Santos Andrade. Gradativamente, as equipes ESF destas nove unidades estão sendo transferidas para as unidades com alto IVAB, ou seja, com alta vulnerabilidade. As unidades de médio IVAB não sofrerão alteração do seu status. Para a Secretária Municipal de Saúde, Márcia Huçulak, “o que muda é que estamos priorizando, paras as unidades com alta vulnerabilidade, profissionais com larga experiência no cuidado das condições de saúde mais complexas. O regime de contratação, que conta com incentivos salariais, favorece a formação de vínculo desses profissionais nestas áreas mais carentes”.

Assim, considerando que as autoridades sanitárias são unânimes em destacar a importância do Programa Saúde da Família (PSF) no enfrentamento da pandemia de COVID-19 – programa cuja gênese se insere num contexto mais amplo de estudos e pesquisas que associam a organização social do território às inúmeras formas de desigualdade – a estratégia adotada pela Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, de transferir profissionais do PSF para áreas com maior vulnerabilidade social, iniciada em 2018, antes, portanto, do início da pandemia de COVID-19, se coaduna com as recomendações nacionais e internacionais que têm alertado para a seletividade social das medidas recomendadas de higiene e isolamento diante da realidade dos territórios periféricos urbanos, espaços com maior propensão à disseminação do novo coronavírus.

Importante destacar que o Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros (IPEA, 2015), já destacava a necessidade de um esforço para ampliar o entendimento das situações tradicionalmente definidas como de pobreza, buscando exprimir uma perspectiva ampliada complementar àquela atrelada à questão da insuficiência de renda. De acordo com o estudo, trata-se de noções, antes de tudo políticas que introduzem novos recursos interpretativos sobre os processos de desenvolvimento social, para além de sua dimensão monetária. Nesse sentido, a leitura desses processos, resultante desta “nova” conceituação pode dialogar e produzir efeitos sobre as propostas e os desenhos das políticas públicas, alargando seu escopo e colocando em evidência as responsabilidades do Estado, em todos os seus níveis administrativos, na promoção do bem-estar dos cidadãos. Trata-se de estudos que adquirem especial relevância diante da atual pandemia de COVID-19 e dos esforços das autoridades sanitárias para evitar o aumento no número de casos da doença em diversos países do mundo. São ações que, no entanto, têm se mostrado problemáticas, especialmente em países marcados por desigualdades históricas, como o Brasil, que privam os grupos populacionais mais vulneráveis do acesso a bens e serviços públicos considerados essenciais no enfrentamento da pandemia.

Como procuramos demonstrar no presente trabalho, os bairros periféricos aqui analisados encontram grandes dificuldades em função desse contexto de segregação espacial, evidenciando a necessidade de o Estado – principal provedor dos bens e serviços – estabelecer uma política mais efetiva de democratização dos mesmos, visando romper com as fortes desigualdades que marcam estes territórios vulneráveis. Assim, a estratégia da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba de readequar – com base no IVAB – a distribuição de profissionais na rede de atenção básica, priorizando as comunidades mais carentes e com maior necessidade de serviços da área atende às recomendações das autoridades sanitárias no tocante ao enfrentamento da atual pandemia de COVID-19. Consideramos que as fortes desigualdades que marcam os territórios vulneráveis demandam políticas específicas, levando-se em consideração que, pelo nosso histórico de desigualdades, a garantia legal de um direito universal (como a saúde) não tem se efetivado através de políticas universalistas que, muitas vezes, acabam promovendo o aumento destas desigualdades por, erroneamente, promover uma distribuição equânime de recursos a grupos, territórios e regiões com recursos diferentes.

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¹ Pós-doutorando em Sociologia (UFPR). Pesquisador do grupo de pesquisa “Políticas sociais: análise comparada das experiências brasileiras” e do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba.

² Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=530nK1vKsIc  

³ Disponível em: http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/a-secretaria/historico-da-secretaria.html

⁴ Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/saude-vai-fortalecer-atendimento-em-comunidades-carentes/46579

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. O SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios/Ministério da Saúde, Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde. 3 ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2009. 480 p.

CURITIBA. Diário Oficial Eletrônico. Atos do Município de Curitiba. Decreto nº 638, de 21 de junho de 2018, Institui o Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde – IVAB. 2018.

IPARDES. Nota técnica: Índice de Vulnerabilidade das Famílias Paranaenses: Mensuração a partir do Cadastro Único para Programas Sociais – CadÚnico. 2012.

IPEA. Atlas da Vulnerabilidade Social. IPEA, 2015. Disponível em: http://ivs.ipea.gov.br/index.php/pt/. Acesso em: julho de 2019.

ROSA, Walisete de Almeida Godinho; LABATE, Renata Curi. Rev. Latino-am Enfermagem. Novembro-dezembro; 13(6):1027-34. 2005.