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O metrô do Rio de Janeiro e a negação da metrópole

A cidade do Rio de Janeiro é uma grande metrópole com 11 milhões de moradores e profundamente desigual em relação às condições de mobilidade e, portanto, de acesso aos recursos disponíveis. Como as condições de acessibilidade aos mercados de trabalho e de moradia são socialmente desiguais, a distância casa-trabalho e o tempo e o dinheiro gastos nesse percurso são indicadores relevantes, embora não suficientes, para a compreensão dos mecanismos reprodutores das desigualdades socioterritoriais.

O artigo “O metrô do Rio de Janeiro e a negação da metrópole”, é de autoria da Luciana Corrêa Lago, professora associada do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do núcleo Rio da rede Observatório das Metrópoles.

 

O metrô do Rio de Janeiro e a negação da metrópole

Luciana Corrêa do Lago

A polêmica em torno do projeto de expansão da rede metroviária do Rio de Janeiro alcançou o debate público no final de 2011, quando um conjunto de falas sobre a chamada Linha 4 foi veiculado pela grande imprensa e pela internet. Os sujeitos dessas falas eram especialistas da matéria, representantes do poder público e de grupos de moradores dos bairros a serem diretamente afetados pelo referido projeto. Chamou-me a atenção a ausência de falas dos usuários e dos potenciais usuários do metrô expandido que representassem o interesse comum por um transporte público de massa.

Os comentários a seguir dizem respeito à construção dessa polêmica, ou melhor, às questões e falas excluídas dessa polêmica. O primeiro ponto refere-se ao sentido de “público” presente no termo “transporte público de massa”. Entendendo o termo como um bem ou serviço pertencente a todos de uma coletividade, com igualdade de condições de acesso, a questão fundamental, então, é desvendarmos o universo dessa coletividade urbana. Quem é o cidadão com direito ao metrô do Rio de Janeiro? É aquele morador da cidade que se move cotidianamente para o trabalho, para as compras, para a escola, para o médico ou para o lazer. Sendo assim, de qual cidade estamos falando? A manicure que mora no bairro da Posse, no município de Nova Iguaçu e trabalha no salão no Leblon é cidadã do Rio de Janeiro? Ela faz parte dessa coletividade com direito ao uso do metrô?

A cidade do Rio de Janeiro é uma grande metrópole com 11 milhões de moradores e profundamente desigual em relação às condições de mobilidade e, portanto, de acesso aos recursos disponíveis. Em geral, a intensidade da mobilidade diária no interior da metrópole resulta da articulação entre (i) a distribuição espacial de centros e sub-centros de oferta de trabalho, (ii) as condições de circulação – o sistema viário e o papel do transporte público com seus itinerários, sua periodicidade e suas tarifas – e (iii) a dinâmica imobiliária, responsável pela localização da moradia dos diferentes grupos sociais no território. Como as condições de acessibilidade aos mercados de trabalho e de moradia são socialmente desiguais, a distância casa-trabalho e o tempo e o dinheiro gastos nesse percurso são indicadores relevantes, embora não suficientes para a compreensão dos mecanismos reprodutores das desigualdades socioterritoriais.

Inúmeras pesquisas já apontaram as alterações em curso, desde os anos 90, na distribuição territorial dos recursos – sejam postos de trabalho, serviços públicos ou comércio – na metrópole do Rio de Janeiro. Com a dinamização econômica de determinados municípios periféricos, como Caxias e Nova Iguaçu, podemos afirmar que o mercado de trabalho formal e a dinâmica imobiliária empresarial são cada vez mais metropolitanos. Em outras palavras, os municípios periféricos estão menos periféricos ao abrigarem novas centralidades e novos fluxos de pessoas e de capitais. O mesmo podemos afirmar em relação à zona oeste do município carioca, quando enxergamos Campo Grande como uma centralidade e, portanto, como um lugar de origem e destino de fluxos diários.

O argumento central aqui é que os trajetos cotidianos realizados pelos moradores do Rio de Janeiro ultrapassam, hoje, o trajeto linear periferia – centro do Rio, sustentado pelo padrão monocêntrico de distribuição de recursos. A dinâmica metropolitana está mais complexa, o que dificulta a nossa compreensão das práticas cotidianas dos seus cidadãos, mas ao mesmo tempo, amplia o campo de possibilidades para novas interações e novas experiências urbanas.

A polêmica construída e veiculada pela imprensa em torno do projeto de expansão do metrô não está pautada por essa compreensão da metrópole e de quem se move e tem o direito de se mover na metrópole. A fala da presidente da Associação de Moradores do Leblon ao defender o traçado original da rede como mais democrático, sintetiza bem a visão de cidade predominante no debate público: “A maioria dos moradores do Leblon, por exemplo, não anda de metrô, diferentemente dos passageiros de outros bairros da zona sul”. O embate em torno da localização das novas estações e das possíveis conexões e traçados está circunscrito ao universo dos interesses dos moradores da zona sul do Rio e de sua extensão sócio-territorial, a Barra da Tijuca. A metrópole não está em pauta, o que bloqueia a visão da diversidade e da riqueza das interações e dos fluxos na cidade e impede a participação de milhares de cidadãos no embate público.

Um segundo ponto a ser comentado refere-se ao consistente discurso contra o projeto metroviário em execução pelo governo do Estado, elaborado pelo movimento Metro que o Rio Precisa, que agrega associações de moradores da zona sul e profissionais do setor de transportes. O discurso está centrado na polarização entre dois possíveis traçados para a expansão do metrô: o traçado “tripa” defendido pelo atual governo estadual e o traçado “rede” defendido pelo citado movimento com base no projeto original. O que pode ser desvendado através dessa disputa entre a circulação linear e a circulação em rede?

Se entendemos a democratização do acesso aos recursos disponíveis na cidade como ampliação do poder dos cidadãos em (re)definirem aqueles recursos necessários e desejáveis, então a disputa entre as duas formas de circulação guarda um caráter profundamente político. A rede é um sistema de linhas/fluxos conectados por nós, que permite mais de uma alternativa de percurso de um ponto ao outro. A rede nos permite cortar caminho ou, ao contrário, prolongá-lo, dependendo da motivação para o deslocamento. A rede amplia as possibilidades de escolha dos percursos e dos lugares aonde ir, portanto, a rede é mais democrática. Então, a quem interessa o traçado “tripa” ao longo da orla marítima?

Em qualquer cidade onde a produção do ambiente construído está subordinada à racionalidade de uma classe de agentes econômicos cuja razão de ser está na apropriação de sobrelucros gerados pela inovação imobiliária, temos como consequência um aglomerado urbano marcado por fronteiras móveis que acompanham os efeitos de tais inovações sobre o território. Barreiras e aberturas à circulação de trabalhadores, de consumidores e de capitais são permanentemente (re)construídas no interior da cidade como fontes de rentabilidade monetária e de poder. A Barra da Tijuca é a principal fronteira de expansão, não apenas das grandes empresas de incorporação imobiliária, mas do circuito econômico de eventos culturais e esportivos. Trata-se de um pólo de consumo diversificado, projetado para receber os consumidores de dentro e de fora da metrópole. O trajeto linear pela orla marítima em direção a tal polo deixa evidente a quem interessa o projeto de expansão do metrô em execução: a todos os agentes envolvidos com a reinvenção da cidade do Rio de Janeiro como polo internacional de consumo, sejam esses consumidores ou produtores.

Nesse quadro, não faz sentido os traçados em rede que potencializem novas alternativas de apropriação e uso da cidade e que ampliem as possibilidades de interação entre os cidadãos. Porém, essa é uma utopia possível a ser confrontada no embate verdadeiramente público, onde todos os membros da coletividade possam falar e ser ouvidos.

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