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Evendo cultural na Ocupação Lanceiros Negros, Porto Alegre (2016)

Evento cultural na Ocupação Lanceiros Negros, Porto Alegre (2016) | Crédito: Mídia Ninja/Reprodução

A disputa por espaços centrais nas metrópoles não é necessariamente um processo espacial novo. Neste artigo, apresentado no XVII ENANPUR, Paulo Roberto Soares e Nana Sanches analisam as ações de movimentos sociais na ocupação de prédios abandonados. Segundo os autores, ao ocuparem equipamentos urbanos sem função social, a população civil organizada coloca em cheque um planejamento urbano que relega à propriedade privada um poder de decisão excessivo. Além disso, o retorno de famílias das periferias para o centro demarca disputas pelos espaços com urbanização consolidada, pelo acesso à equipamentos públicos e pelo direito à cidade. O foco da análise as ocupações Saraí, Utopia e Luta, 20 de Novembro e, em especial, a Ocupação Lanceiros Negros, todas localizadas no centro da cidade de Porto Alegre.

O artigo “Políticas de Habitação Popular no Centro de Porto Alegre/RS: entre o Estado e a organização social” foi apresentado na Sessão Temática “Habitação e a Produção do Espaço Urbano e Regional”, durante o XVII ENANPUR (São Paulo 2017). De autoria do professor Paulo Roberto Rodrigues Soares, coordenador do Núcleo Regional Porto Alegre da Rede Observatório das Metrópoles; e de Nana Sanches, pesquisadora também do Núcleo PoA.

Divulgamos o artigo com o propósito de oferecer subsídios teóricos e analíticos sobre as ocupações urbanas — e o caso especial da Ocupação Lanceiros Negros, já que as 70 famílias foram removidas do prédio público no centro de Porto Alegre no dia 14 de junho de 2017.

ABSTRACT

In Brazil, the housing problem affects mostly poor families. Presently, one of the processes we can analyze through this perspective is the occupations of empty building in central areas of brazilian metropolis. This phenomenon is related to the high cost of livelihood and the remotional politics that displace poor populations to the suburbs, far from city capitals. In Porto Alegre, capital from Rio Grande do Sul’s State, it’s not different. To change that scene, many people organize themselves in social housing movements to guarantee their access to decent housing. The historical centre of Porto Alegre already has occupations that questioned the housing politics in all government levels. The main goal of this paper is understand these movements. For that, we will compare public housing politics that are maintained by municipal, state and federal governments with those that are proposed by the organized civil population, so we can analyze the benefits of the popular participation and the effects of direct action for the achievement and consolidation of social rights. Our leading analysis will be trough the case of the occupation named Ocupação Lanceiros Negros. Located in the historical centre of Porto Alegre, the Ocupação Lanceiros Negros has become a guide for the public housing politics that comes from the organized population. In this particular occupation, lives seventy families that comes from many parts of town and, among them, families that come from Vila Chocolatão, community removed from the centre in 2011. The regress of these suburban families to the centre set out the dispute for urban spaces that already has public equipments and also lights up the right that we all have to the city.

 

INTRODUÇÃO

Por Paulo Roberto Soares e Nana Sanches

A disputa por espaços centrais nas metrópoles não é necessariamente um processo espacial novo. A história da urbanização é marcada por diferentes projetos de planejamento implementados nos centros de metrópoles em diversos países do mundo que tiveram consequências para as populações locais. Independentemente do planejamento técnico adotado como premissa para uma melhor conformação espacial metropolitana, diversos agentes espaciais atuaram na produção do espaço urbano. As tipologias que classificam e caracterizam tais agentes foram analisadas por diversos autores e autoras da Geografia, mas este trabalho terá enfoque em uma categoria em particular: os movimentos sociais, agentes relativamente novos na história do processo de produção do espaço urbano brasileiro.

Indissociavelmente, agentes socioespaciais e processos sociais materializam as particularidades inerentes ao período histórico no qual estão inseridos. Compreender este período, assim como a atuação dos movimentos sociais de luta por moradia é o principal objetivo deste trabalho. O processo urbano que rege a organização espacial das metrópoles é marcado pela hegemonia do capital financeiro. Diferentemente da dinâmica do capital industrial, o capital financeiro demanda uma reprodução instantânea, mormente a partir da apropriação de riquezas e espaços cada vez mais longínquos dos centros de poder mundiais. O Brasil configura uma dessas regiões mundiais no qual o capital financeiro se instalou tendo o mercado imobiliário como um dos principais motores neste panorama econômico.

Para que isto ocorresse, agentes locais tiveram um papel fundamental, seja implementando o projeto neoliberal de urbanização, seja questionando-o. É necessário compreender este processo. Para tanto, buscamos comparar a atuação dos movimentos sociais no que concerne à aplicação de políticas públicas de habitação com a atuação dos agentes estatais, responsáveis juridicamente pelo provimento e aplicação de políticas públicas. Esta análise comparativa traz como premissa que as disputas territoriais pelos centros urbanos envolvem classes socioeconômicas distintas que em casos extraordinários conseguem atuar conjuntamente para melhor solucionar conflitos urbanos.

Se de um lado, carecem ações estatais que dêem resolução à falta de moradia nas metrópoles, por outro, os movimentos sociais buscam através da organização da sociedade civil resolver, de forma imediata, tal questão através da ocupação de prédios e terrenos públicos ou privados que não cumprem função social. Embora a promulgação do Estatuto das Cidades (Lei Federal No 10.257) completar quinze anos no Brasil, a função social da propriedade ainda é um fator negligenciado pelos agentes jurídicos e órgãos de segurança. Daí decorrem a remoção de diversas ocupações irregulares, assim como a criminalização dos movimentos sociais.

Ao ocuparem equipamentos urbanos sem função social, a população civil organizada coloca em cheque um planejamento urbano que relega à propriedade privada (e os agentes espaciais relacionados a ela) um poder de decisão excessivo. Em verdade, as ocupações demonstram a necessidade de uma ampla participação popular não só na construção das cidades, mas também em seu planejamento.

De forma geral, as organizações e movimentos sociais tem levado o olhar acadêmico a compreender melhor as experiências e propostas trazidas por estes. Aqui, analisaremos as ocupações SaraíUtopia e Luta20 de Novembro e, em especial, a Ocupação Lanceiros Negros, todas localizadas no centro da cidade de Porto Alegre. Estas são ocupações que além de darem função social a prédios vazios, resgataram diversas pessoas que encontravam-se em situação de exclusão, sem acesso à moradia e a equipamentos urbanos tão bons quanto os que existem concentrados no centro da cidade.

Ocupação Lanceiros Negros destaca-se por apresentar um novo projeto de habitação solidária, equipamento que não existe em Porto Alegre. No início de 2016, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), responsável pela organização da Ocupação Lanceiros Negros apresentou, em conjunto com as famílias da Ocupação e entidades acadêmicas, o projeto Casa de Acolhimento Lanceiros Negros, um local que serviria a famílias que encontram-se em situação de vulnerabilidade e que, na Casa de Acolhimento encontram diversos equipamentos para que seu resgate social possa ocorrer de forma plena. No prédio em que vivem, os moradores da Ocupação Lanceiros Negros mantêm uma cozinha coletiva, um refeitório, uma biblioteca, uma creche e lavanderias comunitárias.

Podemos dizer que estas ocupações demonstram o poder de organização da sociedade civil em garantir direitos e ainda, mostram que diversos saberes podem contribuir para a formação de metrópoles mais igualitárias. Em cidades marcadas pela injustiça social, pelo abandono de patrimônios públicos e culturais, estas experiências se colocam como sopros de um possível regresso a objetivos que já foram pauta para todos que trabalham com Geografia Urbana como o exercício da cidadania e a busca pela democracia participativa real.

A QUESTÃO HABITACIONAL NO BRASIL

O crescimento das cidades brasileiras ocorrido principalmente à partir de 1950 foi acompanhado pela impossibilidade de garantir condições dignas de habitação. À época, os núcleos industriais do país absorviam mão-de-obra provinda de diversas regiões, aumentando drasticamente o número de ocupações irregulares. Atualmente, mais de seis milhões de famílias vivem sob condições precárias de moradia. Este é o último dado relativo ao índice de déficit habitacional no Brasil, de acordo com a Fundação José Pinheiro (2014).

Efeito colateral da falta de políticas públicas consequentes, as ocupações alastram-se principalmente nas metrópoles do país. Ainda de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, mais de 11 milhões de brasileiros viviam em ocupações irregulares. Só em São Paulo, a estimativa é que haja falta de moradia para 230 mil famílias, ao mesmo tempo em que 90 prédios encontram-se abandonados só no centro da cidade (Secretaria de Habitação de São Paulo, 2015). Também resulta nos mais de 1600 mandados de reintegração de posse expedidos hoje na capital. Este é o panorama, fruto da negligência do poder estatal. Mesmo com a realização de políticas públicas como o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), implementado desde 2009, o Brasil não conseguiu diminuir drasticamente a quantidade de pessoas que configuram os dados de déficit habitacional e/ou que vivem em conjuntos subnormais. Estes dados não abarcam famílias que moram em áreas de confronto do narcotráfico, também consideradas indignas.

ASSIM, TRAZEMOS OS SEGUINTES QUESTIONAMENTOS: O QUE HÁ POR TRÁS DESTE CENÁRIO? QUEM SÃO OS RESPONSÁVEIS PELO PANORAMA ASSOMBROSO QUE RESULTA EM FALTA DE MORADIA E NUMA SEGREGAÇÃO RESIDENCIAL TÃO AGUDA EM NOSSAS METRÓPOLES?

Constitucionalmente, a habitação é um direito social que deve ser garantido pelo Estado (Artigo 6o da Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Assim, historicamente dois grandes programas habitacionais federais foram implementados no Brasil: o primeiro durante a Ditadura Civil Militar (iniciada em 1964), realizado através do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Financeiro de Habitação (SFH); e o segundo, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), ambos utilizando recursos públicos do Fundo de garantia por Tempo de Serviço (FGTS), repassados e administrados pelos poderes municipais. Foram programas que tiveram grande impacto na malha urbana das cidades onde foram efetivados, seguindo a lógica da análise de Sposito (2012). De acordo com a autora, atualmente a produção do espaço no contexto brasileiro vem combinada com a transformação do espaço rural em urbano. Tais espaços, localizados nas periferias urbanas, são áreas de baixo valor agregado que alcançam elevado valor de troca com a mudança jurídica que transforma um espaço rural em urbano. De fato, os condomínios, prédios e casas construídos a partir destes programas criaram verdadeiros cordões de expansão urbana, uma vez que grande parte dos projetos ocorreu nas periferias metropolitanas.

A década de 1960 foi marcada pela produção habitacional voltada para o benefício da classe média através da política autoritária do BNH. Na década de 1970 e 1980, o processo de urbanização pode ser caracterizado pela expansão das favelas nas metrópoles, consequência direta da restrição ao acesso à moradia. Neste período, a responsabilidade da produção habitacional passou às prefeituras municipais. Assim, as prefeituras que tinham mais recursos garantiram melhores condições da construção de conjuntos populares. Outro fator que marca a década de 1980 e o início de 1990 é a experiência da produção habitacional de autoconstrução, sobretudo nos estados de São Paulo e Minas Gerais (RUFINO, 2015).

Desde então, as crises financeiras internacionais influenciaram a manutenção de programas pró-moradia, ora extinguindo-os quase por completo, ora os impulsionando. Em 1990, a adoção de medidas de austeridade fiscal reduziu praticamente por completo o financiamento de habitação popular, fato que mudaria sensivelmente na década de 2000, em especial ao seu final, quando um novo Plano Nacional de Habitação foi criado. O início do século XXI é marcado pelo PMCMV, em outra conjuntura do capital financeiro. A crise que inicia-se em 2008 nos Estados Unidos alastra-se pelo mundo e, como resposta à crise, o governo federal brasileiro acatou a proposta do setor da construção civil em detrimento do que vinha sendo proposto por movimentos e entidades sociais, apostando na capacidade econômica da produção de habitação em grande escala. Assim, o PMCMV tinha dois objetivos principais: dinamizar a economia interna do país através da construção civil e diminuir os índices do déficit habitacional (AMORE, 2015), fatores alcançados parcialmente. A construção civil atrasou os efeitos da crise financeira de 2008. Contudo, o PMCMV não conseguiu diminuir drasticamente os índices de déficit habitacional. De acordo com dados do IBGE, em 2007 o déficit era estimado em 7,2 milhões de famílias. Hoje, como citado anteriormente, este índice alcança em torno de 6 milhões.

De forma geral, tanto a existência de políticas públicas habitacionais quanto a falta destas criaram novas áreas urbanas e periurbanas com alguma estrutura de equipamentos e em regiões desvalorizadas das cidades. Essas regiões passaram a atrair populações carentes, o que resulta na formação de mais ocupações irregulares. Além da expansão urbana provocada por tais projetos, outro processo que marca o início deste século é o retorno de populações sem moradia para as áreas centrais das metrópoles, principalmente em áreas abandonadas dentro dos centros urbanos. Nestas áreas, podemos encontrar ainda e apesar do processo de gentrificação, prédios e terrenos ociosos. São antigas fábricas, indústrias e prédios públicos que, ao longo do tempo, perderam sua função.

Coloca-se, assim, outro questionamento, referente ao déficit habitacional: existe falta de moradias nas nossas metrópoles? O conceito de déficit habitacional traz esta conotação, embora se trate da mensuração de pessoas que vivem em habitações inadequadas e insalubres, não incluindo pessoas que estão em condição de rua, outra temática importante para os estudiosos da geografia urbana. O que se coloca como fato é a existência de milhares de habitações vazias nos centros urbanos, em detrimento da especulação financeira ligada ao setor imobiliário. Não faltam casas, nem terrenos e nem recursos para eliminar o déficit habitacional no Brasil. Entre as causam que evitam o fim do déficit estão a falta de implementação jurídica que condicione a função social da propriedade a prédios e terrenos vazios, o desregulamento do preço dos aluguéis e o poder da instituição privada no planejamento e implementação de políticas urbanas.

Acesse no link a seguir o artigo completo “Políticas de Habitação Popular no Centro de Porto Alegre/RS: entre o Estado e a organização social”

 

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